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Modelo ecológico para compreender a violência

CAPÍTULO 4 ESCOLA EMANCIPATÓRIA

4.1. ACOLHENDO A COMUNIDADE

Acolher a comunidade pressupõe o envolvimento desta no âmbito da organização escolar, o que fortalece o seu sentimento de pertença no processo de construção do espaço público. Essa participação passa pela definição e elaboração dos objetivos, pelo contributo a nível das intervenções e estratégias de ação e pelo estatuto de ator do processo de avaliação. Desta forma, a escola consolida a sua identidade histórica e combate práticas de exclusão, como o preconceito, o estigma e o racismo, que não só povoam os espaços escolares como, frequentemente, emanam do seu seio.

Esse processo histórico está claramente documentado nos trabalhos de Ramos & Queiroz (2014), Silva (2014) e Trigueiro & Camasmie (2014) relativos ao acolhimento das famílias, reunidos na obra A escola e o mundo do aluno: estudos sobre a construção social do aluno e o papel institucional da escola, com base em estudos levados a cabo em algumas favelas do Rio de Janeiro.

Ramos & Queiroz (2014) investigaram, concretamente, a distância entre a escola e o mundo do aluno, que subsiste, e a fragilidade institucional que pouco tem contribuído para a inserção do sujeito no mundo globalizado. Os autores deram especial atenção à socialização democrática das novas gerações, a partir da hipótese, por eles formulada, de que a escola tem muita dificuldade em estabelecer um padrão de relacionamento mais igualitário com os pais. Este aspeto é responsável por dificuldades graves de diálogo com o referido público e obstaculizam uma atuação mais institucional que faça das crianças e adolescentes alunos.

Os resultados a que chegaram desconstroem o mito da “omissão parental” e mostram que a família popular, (multifacetada), alimenta uma expectativa elevada em relação ao trabalho escolar e ao papel que ele pode desempenhar na vida dos seus filhos, mostrando-se disposta a participar mais plenamente do quotidiano da escola. As evidências apontam, igualmente, que a família tem uma leitura crítica da escola, percebendo-a como uma instituição distante da sua realidade; por isso mesmo, desejam vê-la mais próxima e mais presente no seu quotidiano, partilhando com ela o trabalho de educar os seus filhos para a vida em sociedade.

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Esta noção é subscrita por Silva (2014) para quem as famílias dos estratos mais baixos confiam na escola e evidenciam um grande respeito pelos professores. No entanto, no seu entender, ironicamente, essa confiança é interpretada, pelos agentes pedagógicos, como sinónimo de desinteresse e omissão parental. A relação estabelecida entre a instituição escolar e as famílias de meios populares pauta-se pela descontinuidade e a escola tende a funcionar monoculturalmente, o que é um equívoco, pois o termo meio cobre uma heterogeneidade significativa de situações e grupos e o termo escola remete para uma pluralidade de escolas concretas, onde as crianças se inserem. “As escolas não são iguais, variando, por vezes, significativamente em função do seu ethos ou cultura particular, mesmo quando sujeitas a uma estrutura e um currículo nacional” (Silva, 2014, p.415).

Ainda segundo o autor, a relação entre a escola e as famílias dos meios populares é uma relação de dominância e subordinação de códigos linguísticos, em que os códigos mais vastos da primeira calam os códigos restritos dos grupos dominados, traduzindo-se, na prática, em múltiplas situações de falta de comunicação e equívocos.

Trigueiro & Camasmie (2014, desenvolveram uma pesquisa de observação das reuniões de pais, em algumas escolas da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, e comprovaram a ausência de diálogo. De um modo geral, as reuniões estavam subordinadas a um tipo de relação assimétrica entre os profissionais da escola e os responsáveis, com muito pouca abertura para o diálogo, obedecendo a dois formatos: ou eram reuniões centralizadas, conduzidas pelo diretor ou algum profissional da escola, em que os responsáveis eram colocados num mesmo espaço; ou descentralizadas, em que, após a apresentação feita pelo diretor, os familiares eram encaminhados para outros espaços escolares, geralmente as salas dos filhos, sendo a reunião conduzida pelo professor. De acordo com as observações realizadas, o efeito produzido não estimulava os pais, embora os assuntos constantes da agenda se referissem à disciplina, desempenho e assiduidade dos filhos.

Com base em dois estudos de Davis (1989), relativos à falta de comparência dos pais oriundos de estratos sociais mais baixos às reuniões escolares, Silva (2014) procurou encontrar respostas que justificassem essa ausência.

Uns alegaram que chegaram a ir lá no passado e que quando eram chamados já sabiam o que iam ouvir (leia-se: queixas acadêmicas e disciplinares sobre seus filhos). Naturalmente isto levanta a questão de se é possível uma (qualquer) relação funcionar apenas na base dos aspectos negativos; outros remetiam para a incompatibilidade com os horários de atendimento na escola (o que, sendo uma questão pertinente, os

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pesquisadores sabiam que não seria a razão de fundo, pois muitos docentes convocavam reuniões fora do horário laboral e estavam disponíveis para recebê-los em horário a combinar; Outros, ainda afirmavam não entender a linguagem dos professores; Finalmente, havia os que tinham a humildade de confessar que nem sabiam falar com outros pais que iam às reuniões (Silva, 2014, p. 419).

Silva (2002) defende que o mito da omissão parental não passa disso mesmo, de um mito, pois existe um grupo ativo e maioritário de pais, que, perante as dificuldades linguísticas dos filhos, lhes dão apoio em casa, numa espécie de envolvimento invisível, convertendo-se no que Toomey (1989) designa por maioria silenciosa.

Todo o processo só é possível a partir de uma atitude de “dialogar horizontalmente”, ouvir e entender as expectativas e anseios, sensibilizar-se com os s medos, partilhar os horizontes, respeitar as singularidades e do convite à participação efetiva na construção da escola democrática e emancipatória.

Uma boa relação entre escola e família acontece quando: Há diálogo sobre a organização do cotidiano escolar, sobre o que e como os alunos estão aprendendo e sobre como os pais ou responsáveis podem apoiar o trabalho pedagógico da escola, pois isso aumenta significativamente as possibilidades de aprendizado; são oferecidas condições de participação em reuniões e horários que possibilitem a presença do pai, da mãe ou do responsável; É criado um clima amistoso que torna a escola mais receptiva; as reuniões são prazerosas, não se restringem a queixas e pedidos para auxílio nas tarefas de casa; os pais são ouvidos e suas falas consideradas; são criadas condições para que os pais possam participar de outras instâncias deliberativas da escola; são desenvolvidas diferentes estratégias de aproximação com os pais: visitas domiciliar, bilhete, e-mail, carta, telefonema e os pais são convidados para oficinas, exposições, feiras e eventos festivos (Silva, 2002, p.42).

Brzezinski (2010) resume bem este processo quando afirma que a escola que se abre à participação dos cidadãos não educa apenas as crianças que estão na escola; cria a comunidade e ajuda a educar o cidadão que participa na escola, converte-se num agente institucional no processo de organização da sociedade civil. Uma posição partilhada por Ventura, Ramos & Burgos (2014) que defendem que a interação entre escola e a sua periferia é de extrema importância para o fortalecimento duma cultura escolar e para a sociabilidade da vizinhança que, quando bem resolvida, torna a escola mais atraente, cidadã, e converte-a num referencial para a vida local.

Ventura, Ramos e Burgos problematizam a noção de região escolar, que permite vislumbrar novas possibilidades de articulação entre a escola e diversos atores sociais na comunidade, inclusivamente a possibilidade de um trabalho conjunto com outras escolas, grupos culturais e a revitalização dos espaços de encontro, como praças, ruas, paragens de

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autocarro, igrejas, expressões artísticas locais, dimensões esquecidas que necessitam de ser resgatadas, devendo a escola ser, também, protagonista desta construção histórica. É o que os autores descrevem como propósito universalista da escola, em sintonia com a singularidade do seu público e da sua vizinhança.

Uma escola preparada para lidar de forma mais plena com a ecologia do lugar, explorando melhor suas potencialidades e compartilhando com outros atores suas dificuldades poderá enfrentar de forma mais ativa a enorme complexidade envolvida na operação de educar crianças e adolescentes moradores de territórios populares com longo histórico de segregação e de exposição à violência urbana, e terá melhores condições para organizar comunidades de aprendizagem dentro e fora dela para compartilhar sucesso e dificuldades em suas estratégias de ensino (Ventura, Ramos, Burgos, 2014, p. 125).

A escola deve ser consolidada como espaço de aprendizagem do aluno e da comunidade, acolhendo os diferentes espaços de aprendizagem, naquilo que Canário (2013) designa por convivialidade: uma teia de relações sociais tensa, interativa, entre várias gerações assimétricas, entre pessoas que sabem coisas diferentes, e em que todos os saberes são valorizados. A criação de redes de partilha de conhecimento e de difusão de informação propicia as condições favoráveis para as pessoas funcionarem, simultaneamente, como ensinantes e como aprendentes.

De resto, segundo Sposito (2001), é nos espaços democráticos da convivência com as diferenças entre idades, ciclos de vida e gerações que se pode caminhar ao encontro de projetos comuns, capazes de oferecer novos e múltiplos caminhos para a prática educativa. Portanto, um projeto emancipador, comprometido com a transformação da escola estatal em escola pública estatal deve entrar na dinâmica da sala de aula e compreendê-la como espaço de interatividade, diálogo e, acima de tudo, diversidade.