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CAPÍTULO 3 – DA CONCEÇÃO DE CONFLITO AO CONFLITO VIOLENTO: EM CENA AS MANIFESTAÇÕES DE VIOLÊNCIA

3.1. CONCEÇÕES DE CONFLITO EM MEIO ESCOLAR

A existência de conflitos é, segundo Jares (2002), uma realidade presente no dia-a-dia da organização escolar, constituindo um constante desafio para os atores escolares e para os diretamente responsáveis pela sua gestão. Trata-se, assim, de uma questão importante, que marca o quotidiano escolar e que faz com que o autor se interrogue até que ponto a existência de conflitos é uma das caraterísticas centrais e definidoras da dinâmica das relações interpessoais que constitui a escola, nomeadamente o conflito entre professores, entre professores e alunos, professores e pais de alunos, professores e a direção, alunos e alunos, pais e pais e entre a escola e os seus órgãos colegiados e a administração educativa ou municipal., desmentindo, em certa medida, uma aparente imagem de não conflitualidade.

A origem destes conflitos pode ser compreendida a partir da confluência de quatro fatores complementares - fatores ideológico-científicos, fatores relacionados com o poder, com a estrutura e, finalmente, com as questões pessoais e interpessoais - e exigem novos olhares

sobre as relações contraditórias de poder entre a estrutura maior do sistema educativo e a dinâmica celular, no interior da escola.

Os conflitos escolares refletem uma variedade de situações e conceções, como as ligadas às relações injustas que consolidam a intolerância, o racismo, as lutas entre etnias, a disputa pelo poder e pelo saber, e até situações ligadas às práticas de resistência e isolamento da própria escola.

Disputa de poder em função do lugar que se ocupa; do modo como se planeja e se decide os rumos da escola; disputa de saber de quem tem mais ou menos acesso ao saber e ao processo de conhecimento; disputa por razões de raça e etnia: preconceitos e discriminações contra os diferentes, não reconhecimento do outro como sujeito de direitos iguais; disputas de modo de ser e agir: busca ativa de experiências, necessidades de os jovens divergirem dos mais velhos ou de quem representa o poder como forma de afirmação ou de conquista de espaços; falta de respeito com as diferenças transformando as diferença naturais, as disputas normais pelo exercício do poder em problemas, em deficiências e desigualdades; relações injustas: privilégios de uns em detrimentos de outros; dificuldade para gerir a coisa pública de modo coletivo e não privado; falta de diálogo e isolamento da escola diante da comunidade para quem trabalha (Zenaide et al., 2003, p. 90).

As disputas que ocorrem no espaço escolar demonstram que os conflitos, com as suas especificidades e nuances, são próprios de todas as relações pessoais, interpessoais e do âmbito de todas as organizações, pelo que a escola não constitui exceção.

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Analisando o conflito, e tendo como foco o protagonismo juvenil na realidade brasileira, Tavares dos Santos, Didonet & Simon (1999) afirmam que a escola se transformou num locus de explosão de conflitos sociais, expressos por interações marcadas por estilos violentos de sociabilidade, fruto dos desencontros entre a escola e as bolsas de pobreza das grandes cidades, evidenciadas pela violência simbólica do saber escolar, que representa um poder hierarquizado e impositivo de um conjunto de valores. Entre os padrões de conduta de professores e alunos existe um descompasso, um grande abismo que se manifesta por formas menores e moleculares de conflitos e recusa do diálogo, o que pode degenerar em indisciplina e, mesmo, violência, indiciando a difícil convivência entre grupos sociais que utilizam códigos culturais diferentes e antagónicos.

Mais otimista, Míguez (2014) minimiza a situação, acreditando que, longe de se ter convertido num lugar extraordinariamente violento e sem controlo, a escola consagra, ainda, formas tradicionais de regulação dos vínculos que caíram em desuso, que fazem com que os agentes pedagógicos tenham dificuldade em fazer valer a sua autoridade relativamente às atividades e dentro dos espaços escolares. No seu percurso histórico, a escola tem resistido às mudanças e assume, como uma das suas principais funções, o papel de instância disciplinadora, intolerante nas suas determinações, endurecendo as suas regras, furtando-se ao diálogo e desconhecendo certas marcas da vida juvenil. Com efeito, a escola tem-se fechado sobre si mesma e reconfigurado o seu poder unilateralmente, gerando mal-estar, e transformando-se num espaço de injustiça, medo, insegurança e desesperança.

No mesmo tom,Meletti (2010) denuncia uma escola demasiadamente arraigada a velhas formas de atuação; assentando na cultura da violência, não consegue mobilizar-se de forma mais flexível perante o conflito e avançar em direção à dimensão da aprendizagem da convivência. Para o autor, o emergir do protagonismo juvenil, no contexto nacional, é uma prova cabal de que a sociedade brasileira se está a democratizar e que isso implica que a escola participe, também, ativamente, no processo, com um olhar crítico, uma gestão escolar partilhada e ações transformadoras.

Enfrentar o desacordo não significa entrar num processo destrutivo. Pallares (1982) frisa que o conflito não é um mal em si, embora a resposta das pessoas possa ser negativa, uma circunstância que pode ser percebida como uma ameaça, um perigo eminente, que mobiliza forças e gera uma situação de alerta, causadora de stress, desgaste emocional, suscetível,

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inclusivamente, de se transformar-se numa manifestação de violência. Convém não esquecer que conflito é uma situação de oposição consciente e natural entre duas partes e um processo natural da sociedade, que pode constituir um fator positivo de mudança e de desenvolvimento pessoal e social (Belmar, 2005). Contudo, se não for regulado ou resolvido adequadamente, pode redundar em ações de violência de diferentes tipos.

Kriesberg (2007) faz a distinção entre conflito negativo e conflito positivo. Relativamente ao primeiro, o antagonismo entre os participantes origina danos em, pelo menos, uma das partes envolvidas, e, quanto mais coercivos e violentos forem os meios impostos, mais destrutivo tenderá a ser o cenário final. Já o segundo tende a resultar de negociações cooperativas, pelas quais se encontra soluções mutuamente aceitáveis, através da persuasão entre os atores envolvidos, que reconhecem a legitimidade de todos.

De acordo com Diaz-Aguado (1983), a origem de muitos conflitos negativos que ocorrem nas salas de aula, no decorrer do processo de ensino - aprendizagem, pode estar na perceção e nas expectativas do professor relativamente ao aluno, as quais podem suscitar atitudes de apego, simpatia, apoio, mas, também, de indiferença, abandono e preconceito.

Nesta lógica, Esteves (apud Cervantes & Diez-Martínez, 2012, p. 99) descreve algumas das atitudes consideradas negativas, na relação professor-aluno:

Atuar com rigidez; querer impor ideias próprias; pretender determinar todos e um dos detalhes com máximo de rigor; negar as petições e sugestões; adiar contínua e indefinidamente as decisões; não tolerar as diferenças e impor a uniformidade; culpar os outros; impedir ou boicotar a participação; atacar a posição do outro; insistir, reiterativamente, em que se tem razão; passividade na participação; mostrar antipatia e incompreensão; pretender manipular o grupo ou alguns dos seus membros; aprofundar as divisões; atuar tiranicamente.

Valsiner & Cairns (1992) defendem que a questão fulcral não tem a ver com eliminar divergências ou diferenças, como forma de resolver conflitos, com excluir o diferente ou o divergente para instaurar a paz entre os iguais, mas, sim, com ser tolerante relativamente ao conflito e às possibilidades de negociação e ressignificação, por parte de todos os envolvidos; na sua opinião, a abordagem construtiva do conflito entre pessoas envolve a promoção do diálogo e a sensibilização de todos para a importância de se ter em conta e valorizar as diferenças e as necessidades de cada pessoa. Como diz Jares (2008), conviver significa viver com os outros, com base em determinadas relações sociais e códigos valorativos, forçosamente subjetivos, no marco de um dado contexto social. Nesse processo de convivência, entrecruzam-

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se relações de conflito, o que, de modo algum, significa uma ameaça; pelo contrário, conflitos e convivência são duas realidades sociais inerentes a todas as formas de vida em sociedade.

Essas diferentes formas de relação e códigos valorativos, fazem com que existam diferentes maneiras ou modelos de conviver, não apenas em sociedades diferentes, mas também dentro de uma mesma sociedade e ou grupo social. Uma mesma pessoa pode transitar por diversos modelos de convivência ao longo de um dia, em função dos diferentes contextos sociais em que se movimenta: familiar, vizinhança, trabalho, etc. (Jares, 2008, p. 26).

O conflito ocorre num contexto de interatividade e representa situações de incompatibilidade, devendo ser encarado através do seu valor positivo e representar a procura do equilíbrio entre atores que dialogam, convivem e cooperam. Quando o diálogo é impedido, passa a haver uma relação unilateral de poder preponderante e o confronto expressa-se por via da indisciplina, de incivilidade, violência e outras tensões psicológicas; por outras palavras, existe uma dupla potencialidade do conflito, pois este pode, simultaneamente, acentuar desacordos e soluções não consensuais, como a violência, ou contribuir para o fortalecimento dos vínculos sociais. Neste sentido, Lederach (1984) e Galtung (1978) sustentam que o conflito é um processo natural e necessário à vida humana e a toda a sociedade e que, dependendo da sua regulação, pode converter-se num fator negativo e destrutivo das relações, ou, pelo contrário, num fator positivo e estruturador dessas mesmas relações.

A ideia da dupla potencialidade do conflito é bem sintetizada por Brzezinski (2010) quando refere a escola como instituição social que reproduz, no seu interior, os conflitos da sociedade, mas que dialeticamente constrói uma prática político-pedagógica peculiar para não negar o conflito, transformando-o numa estratégia socializadora, pautada pelos princípios da justiça e do respeito mútuo entre as partes antagónicas. Sob esse prisma, as estratégias de intervenção devem estar alicerçadas no diálogo como condição propiciadora de construção de espaços multiculturais, na escola, condição essencial de reconhecimento do conflito como potencial criador de laços sociais e instaurador de esferas de poder e de regras coletivamente consentidas.

É particularmente interessante a posição de Burget (2005) que afirma que, numa

realidade geradora de conflitos e, também, de violência, o conflito não surge por diferença, mas por desigualdade, isto é, não tanto pela existência de diversidade, mas porque uma das diversidades quer impor algo a outra. Neste sentido, a desmistificação da palavra conflito, em âmbito escolar, pressupõe uma condição de justiça, a partir do reconhecimento do outro. Pois,

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como realça Schilling (2010), para que o objetivo principal da educação se concretize, e seja possível a convivência com o diferente, a tensão central da tarefa educativa terá de assentar na igualdade de todos em relação ao conhecimento, bem como nas diferenças entre as pessoas.

A partir da interatividade entre educador-aluno, Prairat (2001) postula que, quando reconhecemos que o conflito não é a violência, mas que esta é apenas um aspeto possível do conflito, abre-se um espaço ideal para o trabalho do educador, que, obviamente, não consiste em ocultar ou mascarar os problemas, mas em ensinar as crianças a forma de viver os confrontos que tendem a surgir na vida social e a resolvê-los de modo positivo.

Os postulados de Prairat (2201), encontram ressonância na construção coletiva de um espaço alegre e acolhedor na escola, referido por Meletti (2010, p. 12)

Para concretizá-lo é preciso estabelecer uma relação coletiva e cooperativa, realizar trocas e compartilhar experiências de sucesso ou de fracasso, associando bom humor, descontração e entusiasmo e a eficiência e a eficácia pedagógica. Somente assim, superando as barreiras que nos mobilizam e aterrorizam, seremos capazes de construir sistemas educacionais mais justos e igualitários, mais humanizados e humanizadores para os educadores e para cada criança, cada jovem e cada adulto que representam, na escola, a diversidade social e cultural existente no país.

Em síntese, quando alicerçado em valores essenciais à vida, num contexto voltado para a emancipação humana, o conflito é uma condição essencial do ser humano, faz parte do seu amadurecimento integral e da interligação das suas dimensões material, espiritual e moral. Neste sentido, é, também, papel da escola construir meios pacíficos para a resolução de conflitos, através do diálogo, da negociação, da reestruturação de estilos de vida e condutas, assentes na solidariedade, justiça e respeito ao próximo. Como diz Muller (2006, p. 100):

Cultivar a violência é de fato torná-la inevitável, mas é uma inevitabilidade criada apenas por nossa vontade mal orientada A violência é apenas uma possibilidade da natureza humana e, nesse sentido, é natural. Mas há outra possibilidade igualmente natural: o potencial humano para a generosidade. Se as pessoas são capazes de fazer o bem é porque sua natureza é livre. Os humanos são bons voluntariamente por uma decisão livre de vontade. É a liberdade que confere dignidade e sentido a uma existência.

Os argumentos e considerações anteriormente referidos consideram o conflito como um processo natural, necessário, e potencialmente criador das relações sociais, pessoais e de grupos e enquadram-se no paradigma crítico-conflitual não violento da educação, modelo amplo que engloba visões, conceções, pressupostos, e premissas das teorias críticas da educação, da pesquisa para a paz e dos pressupostos filosóficos e ideológicos da não-violência.

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No seu conjunto, recusam a visão negativa do conflito, enquanto diagnóstico das incompatibilidades, desacordos e divergências, entendidos como sintomas de disfunção patológica que urge detetar, combater, superar e, em último caso, destruir. Por outras palavras, rejeitam os argumentos solidificados da perspetiva tradicional negativa do conflito que, na contemporaneidade, se reveste como conceção ideológica positivista tecnocrata.

Podemos concluir, como Vinyamata (2005, p. 15), que:

É necessário conhecer o que acontece no organismo humano quando se sente medo ou angústia ou quando se atua de maneira violenta. E necessário também conhecer quais são os mecanismos sociais de transmissões do medo e da agressividade; as múltiplas formas da violência, do assédio moral e psicológico; as origens filosóficas de nossas satisfações ou as causas sociais e políticas da injustiça social; as repercussões conflituais que geram as mudanças e as maneiras de transformar os processos de mudança, conflito e crise em algo positivo. A angústia, o temor, o medo e o estresse se transformam em terror, se se dão em excesso, as sociedades e nós, pessoas perdemos nossa capacidade de autocontrole, de raciocínio, de análise e compreensão, e nos inclinamos para comportamentos agressivos que podem dar origem a formas violentas de comportamentos.