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CAPÍTULO 1 NEOLIBERALISMO, EDUCAÇÃO E GESTÃO DEMOCRÁTICA

1.1. NEOLIBERALISMO E EDUCAÇÃO

A reconfiguração ganhou corpo na América Latina, principalmente na década de 1990, a partir da imposição de diretrizes gerais para a reforma educativa do continente, sustentadas em determinados pilares, como a redução dos gastos públicos, o discurso da qualidade e o aumento da produtividade do ensino, tendo por objetivo dar prioridade à educação básica e à

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viabilização de parcerias celebradas entre o estado e instituições e organismos não estatais, a fim de ratificar as determinações em processo.

A reconfiguração educativa, ou melhor, o neoliberalismo educativo, tal como refere Torres (1997), concretizou-se a partir de múltiplas reformas. Umas, mais abrangentes, envolveram todo o sistema educativo, outras, ocorreram mais no âmbito estadual, e outras, ainda, a nível local; contudo, foi nas unidades escolares que as grandes reformas aconteceram, conduzidas com mestria pelos agentes do estado, de comum acordo com as agências financiadoras, com base no pressuposto de que se tratava de um movimento amplo de deslegitimação político-ideológica do sistema público de educação, através da reorganização das instituições educativas, à luz das necessidades estritamente económicas - forma de mercado, gestão e performatividade – que, na sua transversalidade, se tornam elementos-chave para a transformação recente da educação.

No Brasil, a partir das décadas de 60 e 70, assistiu-se à construção dos pilares institucionais que haveriam de adaptar o país aos interesses do capital hegemónico. No referido período, consolidou-se o poder de governos militares ditatoriais que gastaram grande parte dos recursos estatais em armamento e obras faraónicas inacabadas, que resultaram no aumento da dívida externa, acentuando mais a crise económica.

Com o intuito de minimizar a crise, utilizou-se, como estratégia, a política de ganhar de tempo, isto é, a velha prática paliativa de recorrer a empréstimos financeiros, que em nada resolveu a situação; bem pelo contrário, a dívida aumentou para montantes incalculáveis. O efeito cascata da crise, juntamente com outros equívocos, obrigou à adoção de políticas de ajustamento económico, determinado de fora, pelos países ricos, representantes do capital hegemónico, através das suas agências financiadoras e reguladoras, como o FMI e o BM. Na década de 80, no final do governo ditatorial, as reformas na administração pública, apoiadas nos princípios gerenciais, e tendo como referência os modelos paradigmáticos do Chile, da Inglaterra e da Escola de Virgínia, ganharam corpo.

Nos anos 90, durante a governação de Fernando Henrique Cardoso, as medidas de reordenação do estado ganhariam um novo status com a criação, em primeiro lugar, de uma Secretaria da Presidência da República e a sua subsequente transformação no Ministério da

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Administração Federal e da Reforma do Estado (MARE). A reforma do estado transformou-se, assim, em prioridade política do governo federal3.

Na opinião de Minto (2010, p. 184), do ponto de vista histórico, as reformas tinham dois significados essenciais:

Com o fim da ditadura militar e a ascensão de importantes movimentos sociais, a capacidade das classes dominantes de impor sua hegemonia sobre as classes dominadas, por intermédio do estado foi colocada em xeque, pois se suprimira o poder autoritário e ditatorial por meio do qual as primeiras mantinham as segundas sobre controle; Em meio a esse contexto de mobilização social e contestação política, produziu-se uma constituição que garantiu a reconquista mínima de certos direitos sociais, o que significou um verdadeiro tropeço para as forças históricas do capital, instituindo o conflito invés do consenso. As reformas, portanto, visavam à desconstrução sistemática de todos os princípios constitucionais que haviam garantido esses avanços sociais.

As reformas estruturais na educação constam de um documento elaborado pelo MEC, durante a gestão do então ministro Paulo Renato de Sousa, sobre o planeamento estratégico para a educação pública do país e tinham, principais aspetos: a prioridade ao ensino fundamental, assente no princípio da equidade e da eficiência; a modernização gerencial, em todos os níveis e modalidades de ensino, bem como nos órgãos de gestão; a adoção de tecnologias de ensino modernas; a transformação do MEC numa instância de formulação, coordenação e acompanhamento de políticas públicas, na área educativa; e, a articulação de políticas e de esforços entre os três níveis da federação para obtenção dos melhores resultados.

A prioridade dada ao ensino fundamental, no Brasil e, também, na América Latina, foi forçosamente contemplada pelo Banco Mundial, como uma política social focada, e encarada criticamente pelos educadores como política compensatória, dirigida aos segmentos, grupos e indivíduos expropriados da economia de mercado. Azevedo (2007, p. 84) chama a atenção para a intencionalidade da referida política.

Implantada como componente da política geral de ajuste estrutural tem como objetivo aliviar a pobreza sem deixar de minimizar os gastos. Trata-se de desonerar o estado, repassando parte dos custos dos serviços públicos para os usuários e parte à iniciativa privada, que transforma esses serviços em produtos oferecidos no mercado.

3 Pereira (2008), em: Necessidades humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais é taxativa ao afirmar que FHC deu mostra que tinha

abraçado (embora negasse) o ideário neoliberal no que este tinha de mais ortodoxo ou fundamentalista, elegendo como principai s alvos de governo a redução da participação do estado nas atividades económicas e a desregulação do mercado. Por essa perspetiva, o estado não teria funções empresariais, cedendo lugar ao mercado, nem assumiria o papel do provedor social, dando vez à iniciativa privada mercantil. Ademais, o país deveria abrir-se ao capital estrangeiro, integrando-se ao sistema económico mundial.

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A reconfiguração do Estado ia de encontro aos anseios da democratização da sociedade brasileira, que, no processo de distensão, transição e abertura política, articulou e mobilizou setores progressistas da sociedade civil contra a ditadura militar. Na educação, o confronto entre visões antagónicas foi bastante evidenciado no processo constituinte, através do conflito que opunha o Fórum Nacional de Defesa da Escola Pública (FNDEP), a favor da exclusividade das verbas públicas, às escolas particulares, ao setor privado confessional e à Associação de Educação Católica, que defendiam a não-exclusividade das verbas públicas do setor público, tendo os últimos saído vitoriosos.

A conceção que melhor expressou a penetração da ideologia neoliberal na educação como um dos seus veículos essenciais foi elaborada pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado, no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado e contemplada na Constituição (MARE, 1995). Tratava-se da propriedade pública não-estatal, considerada a modalidade ideal de propriedade para a execução dos serviços ditos não exclusivos do estado e definida como organização sem fins lucrativos, trabalhando com os princípios básicos da administração gerencial, isto é, recebendo os recursos do estado e administrando-os de acordo com a lógica da eficiência do mercado, do baixo custo e da autonomia administrativa, entendida como a não interferência estatal no processo de realização de serviços.

Recentemente, ao fazer uma avaliação da educação básica, no Brasil, Freitas (2007) constatou que o princípio que emana das iniciativas nacionais de avaliação educativa, em larga escala, é, ainda, a regulação da noção do quase mercado, da ilusão do cidadão fiscal que é levado a acreditar que realiza o seu direito de cidadania ao escolher a melhor escola para os seus filhos, de acordo com as determinações da mão invisível do mercado. Esta atitude, na ótica da autora, configura uma competição no âmbito da própria estrutura administrativa estatal, alicerçada a partir da convergência de quatro princípios: o da orientação para resultados objetivos e mensuráveis, o da flexibilidade administrativa, o da autonomia gerencial e o da hierarquia gerencial. Estes princípios refletem soluções procuradas na experiência internacional recente da administração pública, à luz de três modelos teóricos: managerialism ou neo- taylorism, consumerism e public service orientation.

Importa ressaltar que, nos dois anos de gestão do Ministro Paulo Renato Sousa, a nova constituição foi alterada e a nova LDB foi sancionada sem veto. O CNE esteve em pleno funcionamento e os sistemas de resultados – SAEB, ENEM, Exames Nacionais de Cursos e CAPES foram consolidados. As intenções educativas declaradas transparecem na dimensão

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pedagógica da ação avaliativa estatal para o SAEB, nos objetivos fixados pela portaria nº 1.795- 94, organizados em torno de três eixos: cultural, político-administrativo e técnico-operacional. Freitas (2007) explicita a interligação entre os três eixos, como se pode ver no Quadro 2, que trata da dimensão pedagógica dos objetivos fixados para a avaliação da educação básica nos estados brasileiros, no período de 1992 a 2004.

O aspeto privilegiado no primeiro eixo foi o da mudança orientada pela intencionalidade de desenvolver e consolidar uma cultura avaliativa nos sistemas e escolas, tendo como foco padrões de qualidade e equidade e controlo social. No segundo eixo, o aspeto priorizado traduz- se na intencionalidade de normalizar processos avaliativos regulares e permanentes; estabelecer o que aferir, tendo como foco o desempenho dos alunos (aprendizagem e competência) e o desempenho dos sistemas de ensino; executar ações em colaboração, tendo como foco a articulação dos envolvidos e das suas ações e a mobilização-catalisação de recursos. O terceiro eixo é orientado pela intencionalidade de racionalizar a gestão dos sistemas e escolas, tendo como foco a criação e o uso de informações objetivas e oportunas.

Quadro 2 - Dimensão pedagógica dos objetivos fixados para a avaliação da Educação Básica em Estados

Brasileiros – 1992 a 2004.

Fonte: Freitas (2007, p. 167-8)

EIXO ASPETO INTENCIONALIDADE

Cultural Mudança Desenvolver nova cultura de avaliação

Político-administrativo

Promoção de aprendizagens estratégicas

Vivenciar novas formas e práticas de gestão

Formar/aperfeiçoar recursos humanos para a prática da avaliação educacional

Informar a reorientação da proposta pedagógica da escola.

Disciplinas de relações no sistema

Estabelecer a busca permanente de elevação da qualidade como objeto comum das ações na educação básica.

Informar a tomada de decisão

Informar a capacitação de recursos humanos

Controlo social Disponibilizar informações para a sociedade

Técnico-operacional Instrumentação

Produzir/ oferecer parâmetros, meios e ferramentas de aferição de desempenho e da qualidade nas redes públicas

Propiciar condições de articulação com o planeamento escolar, as ações pedagógicas para a qualidade e equidade

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Em relação aos sistemas de resultados a crítica de Andy Green (2002) é bastante esclarecedora ao denunciar a existência de uma obsessão com a medida de resultados e performances que torna os governos, prisioneiros de uma espécie de jogos olímpicos de nações que se colocam sob a forma de ranking os sistemas educativos em termos de eficácia. Alerta para o facto que no projeto de globalização estas relações se estabelecerem tendo como centro nevrálgico, sobretudo, os grandes projetos estatísticos internacionais.4