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Os resultados mostram que os processos relacionados a acolhimento, humanização e responsabilização alcançaram boa implantação nos municípios estudados, principalmente no que concerne à escuta qualificada a populações de risco e disponibilização de espaços de escuta durante todo o funcionamento da USF. Não é possível, com os dados disponíveis, verificar se o acolhimento executado pelas equipes engloba todas as concepções possíveis em termos de atitude, habilidade e organização de serviço, embora Takemoto e Silva (2007) tenham encontrado uma predominância do acolhimento como atividade de organização do processo de trabalho das unidades de saúde com garantia de acesso e humanização da recepção.

O desenvolvimento de autonomia e auto-cuidado se mostrou presente no processo de trabalho das equipes de saúde, o que pode significar a inserção e cristalização de conceitos e práticas essenciais para a mudança de modelo de assistência na ESF.

Ramos e Silva (2003), também encontraram bons processos de implantação de acolhimento em unidades de saúde de Porto Alegre, sendo que os usuários valorizaram principalmente a boa recepção por parte dos profissionais, o respeito à sua condição humana e cidadã e a resolutividade dos diferentes encontros com os profissionais de saúde – seguranças, profissionais da recepção, enfermeiros e médicos. Os autores relacionaram a avaliação positiva dada ao acolhimento à satisfação com relação ao cuidado e a criação de vínculos entre usuários e serviço, o que está diretamente associado à qualidade do cuidado segundo a opinião da população. Houve, no entanto, a explicitação de alguns ruídos com relação ao acolhimento, como maus-tratos, indiferença e baixa resolutividade, embora não se sobressaíssem aos resultados positivos encontrados.

Chama atenção o grande percentual de respostas positivas quanto à disponibilização dos serviços sem restrição de horários por ciclos de vida, patologias ou grupos populacionais específicos. Vários trabalhos mostram a predominância da programação em saúde na organização da ESF (SOUZA; GARNELO, 2008), onde boa parte do tempo de atendimento à demanda se restringe a grupos populacionais específicos como hipertensos e diabéticos, idosos, gestantes e crianças, o que tem trazido constrangimentos ao atendimento da demanda

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espontânea e a outros grupos populacionais como homens e mulheres de meia idade (SCHIMITH; LIMA, 2004).

É importante o desenvolvimento de estudos que utilizem metodologias de observação direta da organização dos serviços nas unidades de saúde destes municípios e sondagem dos usuários e, caso se confirme este modo de organização do processo de trabalho, confirmaria a transição experimentada pela ESF nos municípios estudados com relação à configuração da atenção primária à saúde, o que não exclui a programação em saúde, mas a expande e qualifica.

De forma ilustrativa, estas metodologias de observação direta foram intensamente utilizadas para se avaliar o impacto da Atenção Integral às Doenças Prevalentes na Infância (AIDIP) na qualidade do cuidado ofertado às crianças por profissionais da APS, chegando-se a identificar estudos quase-experimentais, encontrando-se resultados satisfatórios, embora a maioria tivesse como problema metodológico a ausência de grupo-controle (AMARAL; VICTORA, 2008). Estas experiências podem servir de exemplo para o desenvolvimento da estratégia AMQ.

Por outro lado, a simples disponibilização de espaço de escuta aos usuários não significa que este seja qualificado e resolutivo. A média com relação à existência de critérios de estratificação de risco para atendimento imediato ou programado ficou abaixo do esperado, o que pode significar baixa qualidade do acolhimento nas unidades, embora presente em certa medida. A existência de protocolos de atendimento no acolhimento das unidades de saúde é fundamental para a resolutividade da atenção ofertada aos usuários e sua formulação e implementação é responsabilidade da gestão do sistema de saúde.

Estes dados são convergentes com os encontrados por Schimith e Lima (2004). Ao analisar o processo de trabalho de uma equipe de saúde da família do Rio Grande do Sul, as autoras observaram que a recepção das queixas dos usuários e a determinação de quais seriam encaminhados para atendimento médico eram realizados pelo auxiliar de enfermagem e se baseavam em critérios vagos e limitados como presença de sintomas chaves, como febre, ou pela disponibilidade de vagas na agenda do médico. O profissional de enfermagem não tinha participação ativa neste processo, explicitando a divisão social do trabalho na equipe de saúde e a fragmentação do cuidado, resultando em baixa resolutividade e insatisfação da população.

Outro ponto importante é a não disponibilização dos serviços da USF em horários alternativos, como a noite ou finais de semana. É sabido que o acesso de alguns grupos populacionais é restrito devido, dentre outros fatores, ao funcionamento das unidades de saúde exclusivamente em horário comercial, o que ocorre principalmente com homens e mulheres de meia idade (trabalhadores formais ou informais). Cria-se assim uma barreira para o acesso das pessoas que trabalham neste horário, principalmente em um país como o Brasil onde os direitos trabalhistas de grande contingente da massa trabalhadora não são garantidos de acordo com o disposto nas leis.

A disponibilização de horários alternativos de funcionamento das unidades de saúde, além de garantir acesso a determinados grupos populacionais e possibilitar a melhoria da qualidade de vida destes, também seria importante para diminuir a sobrecarga dos pronto-atendimentos ou hospitais da rede pública de saúde, problema crônico do sistema de saúde brasileiro. Uma alternativa que tem sido implantada em alguns municípios do Espírito Santo é a criação de unidades de saúde mistas, com a convivência de equipes de saúde da família e unidades de pronto-atendimento. Outros municípios optam por estender o horário de funcionamento das USF para além das 17 horas. É escassa a literatura científica nacional que possibilite a análise da efetividade destas ações por parte dos municípios e deve-se tomar o cuidado de não confundir os papéis dos diferentes serviços de saúde, colocando na APS a resolução do problema do pronto-atendimento.

Alguns obstáculos a estas alternativas para expansão do horário de atendimento das unidades de saúde já foram levantados, sendo que a violência talvez seja o principal deles, em particular em grandes centros urbanos, onde a violência urbana alcança níveis alarmantes e acaba por afetar diretamente o setor saúde. A falta de infra-estrutura e de recursos humanos também são fatores relevantes neste contexto. Muitos municípios não garantem recursos mínimos para o funcionamento adequado das USF em horário tradicional, tornando difícil a extensão deste para horários alternativos (OLIVEIRA; ALBUQUERQUE, 2008). Além disso, é comum a falta de profissionais para a composição das equipes mínimas de saúde da família e, quando presentes, são responsáveis por uma alta rotatividade, prejudicando a continuidade das políticas no campo da atenção básica (CAMARGO JR. et al., 2008).

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Por fim, os resultados mostram a carência de mecanismos institucionais de escuta de reclamações e sugestões por parte dos usuários, bem como a carência de mecanismos para o atendimento a estas solicitações. Quanto maior a participação da comunidade na organização da atenção básica, maior será sua capacidade de atender às necessidades de saúde da população e conseqüentemente maior será a satisfação dos usuários e a qualidade da atenção oferecida.

Alguns trabalhos mostram as dificuldades de inserção do PSF em alguns contextos, principalmente em comunidades em situação de exclusão social, com alta densidade demográfica e com poucos recursos estatais de amparo social, nas quais o PSF substitui um processo de trabalho prévio baseado em um modelo de pronto-atendimento (ESCOREL et al., 2002). Nestas comunidades, a demanda por atendimento é excessiva, gerando cansaço e desestímulo nas equipes de saúde. Grande parte da demanda é reprimida e ocorre um choque de desejos entre profissionais e usuários (OLIVEIRA; ALBUQUERQUE, 2008).

O argumento geralmente empregado pelos profissionais para explicar esta situação é a baixa capacidade de compreensão do papel da ESF pela população. Segundo estes profissionais, as pessoas só procuram a unidade para “tratar doenças e pedir receita”, sendo que o papel primordial da ESF esta “focado na prevenção e na promoção”. Para Schimith e Lima (2004), esta concepção de usuário por parte dos profissionais de saúde assenta-se em uma visão de que “o usuário deve cumprir o estabelecido pela equipe e de que são responsáveis pelas

falhas do programa” (p. 1491).

Sem articulação e participação popular na organização do serviço, torna-se difícil e complexo quebrar esse círculo de insatisfação. Uma simples ocorrência de atrito entre um usuário e os profissionais da recepção da unidade de saúde pode representar uma série de problemas com relação aos fluxos de assistência no serviço em questão e em todo o sistema de saúde municipal, como por exemplo, a ausência de acolhimento efetivo, falta de profissionais na equipe de saúde, problemas na integração da atenção básica com outros níveis de assistência, dentre outros (FRANCO, 2003). Possibilitar espaços de escuta destas opiniões, positivas ou negativas, possibilita disparar ciclos de melhoria da qualidade e processos de co- responsabilização usuário-trabalhador-gestor pela efetividade do sistema. E é esta co- responsabilização um dos pilares da humanização em saúde (BRASIL, 2008a; TAKEMOTO; SILVA, 2007).