• Nenhum resultado encontrado

2.1 ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE

2.1.1 A Atenção Primária à Saúde no Brasil: o Programa Saúde da Família

2.1.1.1 O Processo de Trabalho no Programa Saúde da Família

É importante observar que o Programa Saúde da Família representou uma condensação de pressupostos teóricos desenvolvidos algumas décadas antes de sua formulação, os quais se referiam a diferentes modos de organização das práticas e processos de trabalho nos serviços de saúde. Um destes acontecimentos, como já abordado, foi o da Vigilância à Saúde.

Outro aporte teórico provém do que se convencionou chamar Ações Programáticas em Saúde, modelagem esta que vem orientando consideravelmente os processos de trabalho no PSF. Esta lógica de organização de serviços de saúde se baseia na “incorporação, ao modelo

clínico dominante (centrado na doença), do modelo epidemiológico, o qual requer o estabelecimento de vínculos e processos mais abrangentes” (BRASIL, 1996, p. 15).

Esta incorporação da Epidemiologia na estruturação dos serviços de saúde se assenta no fato de que “a execução propriamente dita do trabalho, à medida que se concebe sobre o coletivo,

deve necessariamente implicar mecanismos de controle e supervisão voltados para o coletivo [...]” (GONÇALVES, 1994, p. 94), onde, com respeito à racionalidade tecnológica do

31

trabalho, a Epidemiologia teria condições de gerenciar a Clínica, sendo o inverso não verdadeiro. Com isto:

Pode-se submeter os atos clínicos individuais a controles do tipo avaliação de eficácia e de eficiência que dão parâmetros lógicos, no plano coletivo, para decidir como, quantos, onde, com quais características técnicas os atos clínicos serão cabíveis ou não (GONÇALVES, 1994, p. 94).

A partir destas perspectivas, o processo de trabalho do PSF é voltado para uma população adscrita a determinado território, direcionando o cuidado aos problemas enfrentados pela comunidade de forma ativa e continuada. A atuação no território se dá através de cadastramento das famílias residentes no mesmo, realização de diagnóstico situacional dos principais problemas epidemiológicos e estruturais da comunidade, planejamento e programação das ações de acordo com este diagnóstico e enfrentamento dos problemas identificados de forma integrada em equipes multiprofissionais e em parceria com instituições e organizações sociais, de preferência as localizadas na área de abrangência da Unidade de Saúde Família - USF (BRASIL, 1997; 2006a).

O território de abrangência de cada USF é dividido em áreas que serão de responsabilidade de uma Equipe de Saúde da Família, a qual deverá ser composta por no mínimo um médico, um enfermeiro, um auxiliar ou técnico de enfermagem e no máximo 12 agentes comunitários de saúde (ACS), todos trabalhando em regime integral. Preconiza-se que cada equipe cuide de no máximo 4.000 pessoas, sendo que a média recomendada é de 3.000 habitantes. Os ACS, em contrapartida, acompanhariam no máximo 750 pessoas, sendo coordenados pelo enfermeiro da equipe (BRASIL, 2006a).

O PSF assume a família como objeto principal de atenção, entendida em seu contexto social e comunitário, o que inclui a compreensão do espaço (território) de vida e de relações intra e extra familiares experimentadas pelos indivíduos em seu cotidiano, assim como as condições materiais e simbólicas de vida da população. Esta visão permitiria “uma compreensão

ampliada do processo saúde/doença e, portanto, da necessidade de intervenções de maior impacto e significação social” (BRASIL, 1997, p. 8), sobre os fatores de risco aos quais a

população está exposta.

O cadastramento das famílias residentes no território adscrito é realizado pelo ACS, o qual teria o objetivo de identificar os membros de cada família, as condições de moradia e de

saneamento, bem como identificar as morbidades referidas por cada pessoa, municiando a equipe e o sistema como um todo com informações relevantes para o planejamento das ações através do Sistema de Informação da Atenção Básica – SIAB (BRASIL, 1997).

As ferramentas disponíveis para as equipes enfrentarem os principais problemas de saúde da população são: as consultas médicas e de enfermagem, onde o foco está majoritariamente voltado para o indivíduo; as visitas domiciliares, cujos objetivos é monitorar a situação de saúde da população seja através da identificação de fatores de risco para o adoecimento, seja através de busca ativa de casos e que deve ser realizada por todos os membros da equipe a depender das necessidades de saúde das pessoas; realização de reuniões de grupos com a participação da comunidade com enfoque na educação e promoção em saúde e na prevenção de agravos (BRASIL, 1997). Outras formas de atuação podem ser implementadas e dependerá da criatividade e disponibilidade das equipes e da comunidade, como por exemplo, os conselhos gestores locais, a participação em organizações comunitárias, entre outras.

A atuação em equipe multiprofissional no PSF visa aumentar o poder de enfrentamento dos determinantes do processo saúde e doença a partir da integralidade das ações e com ênfase na prevenção, nunca se descuidando do atendimento curativo. A assistência deve contemplar as clínicas básicas de pediatria, ginecologia e obstetrícia, clínica médica e clínica cirúrgica (pequenas cirurgias em ambulatório). A parceria com a comunidade é fundamental para este intento, contribuindo para um empoderamento comunitário e individual, e permitindo a identificação das possibilidade locais e uma adequação das práticas ao contexto local. (BRASIL, 1997).

A programação da assistência prestada pelas equipes deve estar de acordo com o diagnóstico situacional realizado e sempre que possível deve ser pactuada com a comunidade, que segundo os documentos oficiais do programa deve estar presente em todos os momentos do planejamento das equipes de saúde. Por outro lado, o Ministério da Saúde, respeitando as realidades locais, preconiza uma série de ações estratégicas para todo o território nacional, a saber: eliminação da Hanseníase; controle da tuberculose; controle da hipertensão arterial; controle do diabetes mellitus; eliminação da desnutrição infantil; saúde da criança; saúde da mulher; saúde do idoso; saúde bucal; e promoção da saúde (BRASIL, 2006a).

33

No entanto, tal maneira de pensar, formular e organizar os serviços de APS é criticada principalmente pelo seu caráter excessivamente normativo, onde são impostas fortes amarras ao trabalho dos profissionais, diminuindo a potência instituinte do trabalho vivo produzido na relação de cuidado estabelecida com os usuários (MERHY, 2002). Para Franco e Merhy (2003), apesar do PSF demonstrar potencialidades para a reconfiguração do modelo de assistência à saúde, não há garantias da ruptura com o modelo hegemônico médico-centrado já que este “aposta em uma mudança centrada na estrutura, ou seja, o desenho no qual opera

o serviço, mas não opera de modo amplo nos microprocessos do trabalho em saúde, nos fazeres do cotidiano de cada profissional, que em última instância é o que define o perfil de assistência” (p. 105).

Estes microprocessos do trabalho em saúde estariam centrados no que Merhy (2000), chama de tecnologias leves, ou seja, tecnologias em saúde baseadas na relação interpessoal produzidas somente em ato, quer dizer, no momento do encontro entre usuário e profissional de saúde. Os modelos assistenciais se conformam, segundo o autor, na articulação entre as tecnologias duras, que são os aparelhos ou instrumentos utilizados no processo de atenção à saúde, as tecnologias leve-duras representadas pelo conhecimento técnico-científico do profissional de saúde e, por fim, as tecnologias leves. É na ênfase dada a cada uma destas “valises” que se delineará as diferentes modelagens de produção em saúde (MERHY, 2002).

As tecnologias leves se expressariam na singularidade do cuidado, no acolhimento do sofrimento, não somente em sua forma física e orgânica, mas também subjetiva e social, na responsabilização dos trabalhadores pelo cuidado ao usuário e na humanização dos serviços de saúde. Seu objetivo seria a melhoria da qualidade de vida das pessoas e na criação de vínculos subjetivos e autonomia para o auto-cuidado, o que também inclui diagnosticar disfunções orgânicas e realizar procedimentos, diagnósticos e terapêuticos, sem restringir-se nestas ações. Estas tecnologias são enfatizadas em uma modelagem tecnoassistencial conhecida como Em Defesa da Vida (COELHO, 2008).

Neste sentido, o acolhimento poderia ser definido como “a comodidade e o trato humanizado

que o serviço oferece ao usuário, além da dimensão operacional, de escuta das queixas e necessidades de saúde, buscando uma atenção resolutiva por meio da articulação dos serviços da rede” (BRASIL, 2005a, p. 29), sendo esta a definição presente nos documentos

oficiais do Ministério da Saúde com relação à Política Nacional de Humanização – HumanizaSUS (BRASIL, 2008a).

Esta política surgiu em 2003, com o intuito de efetivar e fortalecer os princípios do SUS, qualificar a gestão e a assistência à saúde da população e incentivar trocas solidárias entre usuários, trabalhadores e gestores. Com relação ao conceito de humanização, esta política frisa que:

No campo da saúde, humanização diz respeito a uma aposta ético-estético-política: ética porque implica a atitude de usuários, gestores e trabalhadores de saúde comprometidos e co-responsáveis; estética porque relativa ao processo de produção da saúde e de subjetividades autônomas e protagonistas; política porque se refere à organização social e institucional das práticas de atenção e gestão na rede do SUS. O compromisso ético-estético-político da Humanização do SUS se assenta nos valores de autonomia e protagonismo dos sujeitos, de co-responsabilidade entre eles, de solidariedade dos vínculos estabelecidos, dos direitos dos usuários e da participação coletiva no processo de gestão (BRASIL, 2008a).

A responsabilização, outro pilar do modelo Em Defesa da Vida e do HumanizaSUS, por sua vez poderia ser definida como:

as equipes assumem como sua responsabilidade contribuir para melhoria da saúde e da qualidade de vida das famílias na sua área de abrangência. Para isto devem desenvolver esforços para oferecer atenção humanizada, valorizando a dimensão subjetiva e social nas suas práticas, favorecendo a construção de redes cooperativas e da autonomia dos sujeitos e dos grupos sociais (BRASIL, 2005a).

Outros processos também estão presentes no PSF e fazem parte de múltiplas escolas da saúde pública brasileira como, por exemplo, o estabelecimento de ações intersetoriais a nível local; facilitar o acesso a informações relacionadas ao processo de adoecimento da população; estimular a organização comunitária para um efetivo controle social; e fazer com que a saúde passe a ser reconhecida com direito de cidadania e expressão de qualidade de vida (BRASIL, 1997).

Assim, foram descritas as principais características do processo de trabalho do PSF, bem como as fontes teóricas e práticas destas, mostrando o fértil terreno de onde surgiu o ideário do programa, cabendo agora entrar no campo da avaliação em saúde e sua aplicação na APS.

35