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Apresento o estudo de caso do espetáculo Árvore no Deserto, mapeando o uso de diferentes linguagens cênicas enquanto estratégia de construção de uma dramaturgia performativa (no sentido do risco físico real que apresentam certos números circenses) e poética.

                                                                                                               

Na expressão dos acontecimentos registrados na vida dos personagens da peça, os momentos de acentuação e ápice de suas curvas emotivas27 são escritos pelo grupo a partir de acrobacias circenses. Um determinado pensamento na vida de um personagem proveniente de uma situação em que ele se encontra tende a gerar uma reação corpórea como forma de manifestação das sensações por ele vivenciadas. Esta manifestação se torna acrobacia em nossa escrita quando se trata de um pensamento expoente extremamente forte, momento em que as acrobacias se inserem como recurso motor expressivo de alta intensidade e de elevada emoção, capazes de proporcionar o acontecimento real da cena.

Tendo a cena como fiel da balança, foi com a sua composição poética que o grupo escolheu trabalhar uma linguagem teatral permeada de acrobacias, revestindo-se de um hibridismo de linguagens no qual a atuação e a acrobacia dialogam, sobrepõem-se e interagem de forma coerente em suas intenções, aos objetivos da cena, nem sempre paralelas, às vezes até antagônicas, mas sempre com o intuito de criar uma partitura de movimento de caráter poético, e não literal como um diapasão de determinação das ações.

Para a execução acrobática com excelência, faz-se necessário a busca de uma série de vetores corporais que são a manutenção angular articular de forma específica, por exemplo: estendida durante todo o tempo da acrobacia. Para a interpretação dos nossos personagens em cena, torna-se uma espécie de prisão expressiva dado ao rigor com a forma. Diante disto buscamos intercalar a liberdade vetorial com a quebra de linhas articulares, mais especificamente as articulações mediais dos membros, sendo elas joelhos e cotovelos, que encontramos na dança.

Ao contrário do que afirma Pencenat (2009), o grupo não trabalhou com a noção de “performance atlética” versus “performance de ator”, mas sim com uma composição hibrida de diferentes linguagens.

Juntar os personagens aos aparelhos circenses e às acrobacias foi de grande valia para o processo criativo do espetáculo, podendo-se dizer que foi também o momento de maior conflito, pois muitas vezes o corpo que executava uma técnica acrobática não era o mesmo corpo do personagem, destruindo, assim, o mesmo, ou seja, derrubando sua máscara. À princípio, isso excluía a acrobacia da cena ou o personagem da peça, o que passou então a ser a nossa pesquisa. Por exemplo, um personagem adulto, pai de família, gordo, que passa sua cena sentado com um copo de whisky e cigarro às mãos, se ele se levantar e fizer um mortal                                                                                                                

27 Curvas emotivas: quando o ser humano que se encontra em determinado estado emocional atinge uma situação

“do nada”, o personagem perde credibilidade e deixa de existir num contexto verossímil. Então, após diversas tentativas que certamente extrapolaram inúmeras vezes os limites aceitáveis da cena e da acrobacia, demo-nos conta de um caminho possível para inserir as acrobacias nas cenas. Pautados nessa diretriz, passamos a escolher as acrobacias para as respectivas cenas, o que consistiu na percepção de que estas não são todas iguais, pois cada uma delas tem o seu criador, seu momento histórico, sua representação e seu poder de expressão, com maior ou menor energia, mais ou menos cor, mais ou menos dinâmica de impacto. Dessa maneira, formam-se também os personagens e suas curvas emotivas ao longo das cenas, pelo que tratamos de buscar os momentos de encontro entre as curvas emotivas dos personagens e as faixas de energia das acrobacias. Ou seja, a acrobacia passou a ser utilizada elo grupo para transformar os estados do ator e criar a energia da cena. A percepção de que estas ondas poderiam entrar em ressonância, proveniente do trabalho com a dança, deu-nos a ordem das acrobacias durante a peça, norteando as sequências das cenas e trazendo aos textos uma ordem dramatúrgica. Fizemos, então, uma escolha pelos caminhos aos quais iríamos transmitir ao público nossa mensagem, que continha uma forte expressão de que “as coisas não vão bem”, principalmente nos centros urbanos, cuja única solução seriam as transformações internas de cada indivíduo em suas escolhas, pensamentos e ações no seu cotidiano. Deixamos, assim, para o final da peça o nosso número de pirofagia “Fogo na Babilônia”.

Junto com a criação do personagem, a gente teve o desafio de inserir a parte circense na peça, o que foi muito difícil, pois eu queria incluir algo sobre acrobacia de solo e a maneira foi pela dança. Tínhamos então muitos elementos da dança ligados à cena como uma outra forma de expressão dentro da peça, que, a meu ver, facilitou a inserção das acrobacias entre as cenas. A criação destas danças e a inserção das acrobacias refletia diretamente neste personagem. Uma coisa levava a outra. A gente começou a se apresentar e tudo foi ficando mais coeso, mais amarrado (Entrevista com Murilo Dias, 2018).

Assim, cada personagem teria suas acrobacias como ponto de fuga para a expressão de suas angústias e emoções vivenciadas em meio aos conflitos registrados em uma metrópole, tais como, trânsito, chuva, alagamento, acidentes etc., além dos embates sociais de classe, de gênero, de geração e de poder.

Juntamente com o contar da história de cada personagem, tem-se a descrição da situação em que ele se encontra, e os encontros das diferentes situações dos diferentes personagens transformam suas trajetórias. A inserção das acrobacias é circunstancial, uma vez que elas aparecem em uma determinada situação em função da cena, mas, ao inseri-las, elas passam a ser um fator de transformação da própria circunstância que vai mexer no

personagem, mudando sua trajetória no espaço e sua relação com o meio, e transformando radicalmente a atuação, no que concerne a sua relação interpretativa, por se tratar de uma outra linguagem a qual exige outro tipo de empenho e altera o “bios” do ator.

VII – O DESENVOLVIMENTO DAS CENAS E SUAS ACROBACIAS