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Na fala do nosso diretor Kuarahy, podemos vislumbrar como aconteceu a seleção dos respectivos textos:

Meu plano era fazer a peça dar certo, vamos fazer a peça acontecer. Pensei numa maneira bem simples: vamos ensaiar uma cena a cada dia, quando as cenas tiverem mais ou menos a gente faz um corrido e ai a gente apresenta. Temos que descobrir qual é o material fundamental que está nos movendo e a gente acabou descobrindo

que o Harold Pinter tinha vários textos que a gente podia utilizar, que tinham um universo de absurdo, um universo nonsense mas extremamente crítico. Questionador, da maneira como a gente vive esse universo moderno, atual, urbano, que não é muito diferente hoje em dia da época que o Harold Pinter escreveu. Muitas coisas são exatamente as mesmas questões, elas se mantem., que é viver nesse capitalismo global, sufocado pela experiência das grandes cidades, e uma sensação de impotência e apatia muito grande (Entrevista com Kuarahy, 2018).

No período inicial do processo criativo, o grupo dedicava uma parte do dia de ensaio ao trabalho de mesa, ou seja, o momento de recolhimento e leitura de diferentes textos. Os textos eram trazidos aleatoriamente pelos integrantes do grupo.

Kuarahy ressalta a decisão do grupo:

Vamos pegar esses textos, fazer um recorte neles, e conseguir desenvolver com os textos uma narrativa única onde cinco atores estão colocados em cada momento da peca num espaço específico numa linha temporal continua. Assumir que não vai ter metáfora, tempo voltando, e não é “isso é sonho” ou “aquilo é realidade”, porque quando a gente começa um trabalho de colagem parece que vai realizar uma cena, então isso é subjetivo, onírico. A gente consegue assumir num certo ponto do processo que é um realismo do absurdo. É uma linha continua do tempo, onde tudo o que acontece na cena é realmente o que está acontecendo com as personagens e é um diálogo que vai pra frente. A partir daí ficou muito mais fácil ir fazendo as colagens. Bater o martelo e botar os pontos. A gente acabou fazendo cortes em todos os textos, fizemos alterações nos textos também, idades dos personagens, começo, meio e fim, do texto em si para servir à nossa narrativa – não necessariamente de forma linear (Entrevista com Kuarahy, 2018).

O trabalho de leitura e discussão resultou na seleção de partes dos seguintes textos: - “O vento que vem”, do dramaturgo português Luis Fonseca, uma peça teatral cuja estreia aconteceu em Lisboa no dia 12 de dezembro de 2000, na Comuna-Teatro de Pesquisa22. No processo de criação, a peça foi lida diversas vezes e dela extraída a fala do Homem 1, cena 5, p. 102, que se aplicou no prólogo da peça Árvore no Deserto. No porão, no diálogo entre o músico e o sócio, alguns trechos de Luis Fonseca permeiam as falas, como a da mulher da cena 3, p. 93. Da mesma obra foram utilizados trechos da cena 2, em especial nas falas do Homem 2 e do Homem 3, p. 82 e 83, respectivamente, durante a cena da dança do casal. Ao final da cena Estação Vitória, utilizou-se outro trecho, p. 94 da fala do Homem 1. Luis Fonseca é cineasta e dramaturgo português. Escreveu em 1998 a peça O Voo das

Borboletas, Os Dias que Nos Dão em 1999. A peça em questão foi encenada por Álvaro

Correia em 2002 e publicada pela editora Campo das Letras no livro “Cinco Peças Breves”, em 2002. Fonseca traduziu peças de Stephen Berkoff, Caryl Churchill, Sam Shepard, Harold Pinter, David Mamet, Edward Albee e Samuel Beckett. A informação de que Luis Fonseca

                                                                                                               

22  FONSECA, Luis. O Vento que vem. In: Cinco Peças Breves: Don Juan em Sua Companhia; Homem Mau; O

traduziu textos de Pinter não era sabida pelo grupo “Ponte pra Lua” durante o processo de criação da peça. Descobrimos em 2018, na fase final dessa dissertação.

O texto de Luis Fonseca, O Vento que Vem, a gente espalhou pela peça, e nos demos a liberdade de trabalhar com as falas daquele texto de forma não tão conectadas: no texto, a fala estava na boca de uma personagem, e a gente a cortou e a colocou na boca de duas ou mais personagens. Utilizamos das palavras que estavam contidas nesses textos, as palavras que nos serviam, e mudamos sim algumas propostas originais dos autores em relação ao discurso (Entrevista com Kuarahy, 2018).

- “A caixa de areia ou eu era dois em meu quintal”, de Lourenço Mutarelli23, de um livro apresentado pelo Teatro Nanquim, uma história em quadrinhos onde o grupo foi buscar falas para a cena do deserto, tendo utilizado trechos dos capítulos 1, 3, 5, 9 e 11, os quais alimentaram de forma divertida o diálogo do taxista com o operador. Lourenço Mutarelli nasceu em São Paulo em 1964. É escritor, ator, dramaturgo e quadrinista brasileiro. Escreveu

O Cheiro do Ralo (2002), Diomedes – a trilogia do acidente (trilogia publicada entre 1999 e

2002), A Caixa de Areia ou Eu Era Dois em Meu Quintal (2006).

- “Paradoxo do Pensamento Científico – Artista num Monólogo sobre o Universo”, de José Javier Saéz Acuña24. Um pequeno trecho desse texto foi trazido para a peça logo após a cena do deserto, com o intuito de proporcionar mudança no clima estabelecido nesta cena, que vinha de um espírito engraçado seguido de um momento de tensão. Trata-se de um trecho que Acuña alega autoria desconhecida (Anônimo). Javier Acuña, além de malabarista, músico e acrobata, é físico graduado na Universidade de Concepción (2003) e doutor em Física pela Universidade Estadual de Campinas (2009) na área de nanoestrutura e física aplicada. É professor adjunto do Centro de Ciências Naturais e Humanas da Universidade Federal do ABC.

- “Cenas Curtas”, de Harold Pinter25.Um primeiro trecho adaptado para a cena do porão foi “Monta-Cargas”, com dois matadores de aluguel confabulando, em um porão, mais um serviço. Outro texto, “Ponto de ônibus”, alimentou a cena de uma mulher de periferia que se sente agredida moralmente e entra em combate com alguns homens que também se encontravam no ponto de ônibus. Por fim, a cena de um taxista com o operador da central, que entram em um embate em relação a um serviço escuso que o operador pretende que o                                                                                                                

23 MUTARELLI, Lourenço. A Caixa de Areia ou Eu Era Dois em Meu Quintal. São Paulo: Devir, 2005.

24 ACUÑA, Jose J. S. Paradoxo do Pensamento Científico – Artista num Monólogo sobre o Universo. Escrito em

14/02/2001 em Santiago do Chile e traduzido pelo autor em português em 07/10/2005. Não publicado.

25 PINTER, Harold. A Festa de Aniversário e O Monta-Cargas. Tradução: Alexandre Tenorio. São Paulo: José

Olympio, 2016.

PINTER, Harold. Teatro 2. Lisboa: Relógio d’água, 2002.

taxista exerça, ao qual este se nega, retirado de Pinter, em especial “Estação Vitória”. Harold Pinter foi ativista político, ator, diretor, poeta, roteirista e dramaturgo britânico no século XX. Nasceu em 1930, e foi um dos representantes do “teatro do absurdo”. Ganhou o Nobel da Literatura em 2005. Escreveu peças reconhecidas, como Festa de Aniversário (The Birthday Party, 1957), O Porteiro (The Caretaker, 1959), Traição (Betrayal, 1978) e Volta ao Lar (Homecoming, 1965), que foram adaptadas ao cinema. Faleceu em 2008.

- “A árvore em fogo”, de Bertolt Brecht26. Foi mais uma das obras utilizadas no processo criativo da Árvore no Deserto, no início da dança acrobática final, cena denominada “Fogo na Babilônia”, tratando-se de um poema cuja metáfora da árvore que desaba foi utilizada nas condições insustentáveis da Babilônia. Bertold Brecht (1898-1956) foi poeta, dramaturgo e encenador alemão. Um dos maiores escritores da história do teatro, reconhecido e marcado por um teatro de cunho político, que comunica e opera junto aos interesses sociais. Devido a ascensão do nazismo, o autor tem diversos anos de sua vida no exílio, passando por vários países, no qual escreve boa parte de sua obra. Alguns de seus textos mais conhecidos são: Mãe coragem e seus filhos (1941), Ascensão e Queda da cidade de Mahagonny (1930) e

O Círculo de Giz Caucasiano (1948). Faleceu em 1956, em Berlim Oriental.

Importante acrescentar que todas as decisões foram tomadas no coletivo, com muitas conversas, discussões e reuniões, cada ator anotando no seu caderno da peça individual suas ações em cena. Nesse caderno anotávamos também nossas tarefas de casa, desde procurar um texto completo até decorar um recorte deste para a cena.

A gente conversou e estudou muito as cenas, ensaiando-as para fazer os principais cortes, as principais alterações nos discursos dos textos que nos serviram de base. Toda grande manobra que fizemos no texto em relação ao discurso dos autores, conversamos com o elenco, esclarecendo o que estávamos pensando, entendendo junto toda coisa que se transformava (Entrevista com Kuarahy, 2018).