• Nenhum resultado encontrado

tomada pelo grupo foi a de optar por ter o ator Kuarahy Barretta Fellipe como diretor de nosso trabalho. Outra decisão importante foi abrir uma “caixinha” onde todos pagariam uma mensalidade acessível a todos, para garantir recursos em algum momento da produção. Ao mesmo tempo, decidimos iniciar os ensaios mais cedo, começando por um café da manhã coletivo. Nosso cronograma de trabalho envolvia ensaios do grupo às terças-feiras, das nove horas ao meio dia, e das quatorze às dezessetes horas. Das dezessete às dezessete e trinta havia o compromisso do grupo com a faxina do circo – o espaço do “NanoCirco” onde os ensaios eram realizados. O grupo também se reunia para ensaios às quintas-feiras, das nove horas ao meio dia.

Nos períodos da manhã das terças e quintas-feiras, durante todo o primeiro ano de trabalho, eram realizados alongamentos, aquecimentos e treinos de circo. O alongamento tinha duração de uma hora e meia, por mim conduzido, tratando-se da continuidade de um trabalho que o grupo já havia realizado em processo criativo anterior durante a montagem da peça “O Pequeno Príncipe”, que na ocasião era conduzido por Cláudia Millás21, que trabalhou com uma preparação corporal baseada na técnica de Klauss Vianna.

                                                                                                               

21 Claudia Millás é professora efetiva do Departamento de Artes Corporais da Universidade Federal do Rio de

Janeiro (UFRJ), doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Univerisdade estadual de Campinas (UNICAMP). Possui graduação em Dança pela mesma universidade. Atuou como professora substituta do curso de Graduação em Dança da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Foi fundadora e diretora do Coletivo Invertido e da Trupe Caiu do Céu, participou do Grupo “Ponte pra Lua” e atualmente é bailarina da Cia. Domínio Público com direção da Dra. Holly Cavrell.

Foto 42 – Ensaio, 2011. Fonte: Acervo de fotos do “Ponte pra Lua”

O alongamento para esse novo espetáculo tinha o intuito principal de despertar a consciência corporal, como também a capacidade de mover as articulações da coluna e dos membros de forma independente e de estar no tempo presente através da respiração.

Tínhamos a preocupação com o aumento da flexibilidade, ou seja, o aumento da amplitude angular articular, pelo que, mediante uma sequência de posições juntamente com a descrição anatômica, todos tomaram conhecimento do nome dos músculos, suas posições em relação aos ossos, pontos de origem e de inserção e de suas ações, ora como protagonistas, ora como antagonistas do movimento. Assim, para o corpo se movimentar temos um trabalho muscular global, sendo que as musculaturas trabalham em intensidades diferentes, correspondendo às necessidades da movimentação.

O aquecimento era conduzido pelo nosso diretor Kuarahy, com exercícios de rotação, flexão e extensão, adução e abdução das articulações, envolvendo uma série de repetições do mesmo movimento na mesma articulação, o que dava ao corpo um estado de prontidão, numa duração de meia hora.

Na hora e meia restante do período matutino, executávamos um treinamento de acrobacias de solo baseado na progressão pedagógica da ginástica olímpica, conhecimento por mim adquirido como bolsista PAD sob orientação do Professor Carlos Luz da PUC/Campinas.

Realizávamos uma sequência de deslocamento passando pelos diversos apoios dos pés e mãos, além de rolamentos como cambalhotas para frente agrupado (joelhos flexionados), cambalhotas para frente carpada (joelhos estendidos), cambalhota para frente terminando com as pernas afastadas, cambalhotas para trás, passando por cima dos ombros esquerdo e direito, cambalhotas para trás, passando por cima da coluna cervical com as pernas agrupadas, carpadas e afastadas. Esses tipos de cambalhotas eram realizados em linha, oito vezes cada tipo. Em seguida, realizávamos uma série de estrelas para a esquerda e para a direita, sempre corrigindo uns aos outros, no intuito de atingirmos uma melhor performance.

Outra acrobacia básica que executamos neste treinamento foram as piruetas, também para a esquerda e para a direita, de maneira a termos executado um giro de 360o graus em cada um dos três planos de movimentação, sendo a cambalhota um giro no plano sagital, a estrela um giro no plano anteroposterior e a pirueta um giro no plano transverso.

A seguir vinham os exercícios estáticos de equilíbrio: parada de três apoios, cabeça e mãos no chão e as pernas para cima; parada de mãos, só as mãos no chão e as pernas para

cima; “aviãozinho”, apenas um pé no chão e o corpo sustentado na horizontal como uma mesa. Na continuidade, os exercícios de equilíbrio foram unidos às acrobacias básicas, resultando sequências acrobáticas no solo, como, por exemplo, “aviãozinho”, parada de mãos, cambalhota à frente, estrela e pirueta, assim ocorrendo a intensificação dos treinamentos acrobáticos. Daí em diante, passávamos a utilizar um instrumento de segurança para o processo de ensino/aprendizagem das acrobacias, tipicamente circense, denominado “lonja”, que consiste num cinto de segurança afivelado na cintura do acrobata, de onde saem duas cordas nas laterais, que passam por roldanas presas na cúpula do circo e voltam às mãos do lonjeiro – o operador da lonja, que, ao segurar a corda, garante a segurança do acrobata. Com esse aparelho passamos a treinar o rodante, a reversão, o flic-flac, o mortal à frente e o mortal para trás, cujas acrobacias de alta intensidade tiveram um aumento progressivo no seu volume de execução ao longo do ano, e bem como em sua qualidade de execução, até não necessitarmos mais da lonja.

Às terças-feiras o almoço era coletivo e tinha como principal objetivo melhorar a alimentação do grupo, partindo do princípio básico do treinamento desportivo de ter como frentes de controle de treino: o estímulo, a suplementação e o repouso. Após o repouso do almoço, tomávamos um café e partíamos para as leituras de texto: peças teatrais, poemas, poesias, de fontes diversas, trazidos pelos integrantes do grupo de forma aleatória. Essas leituras levavam à seleção de alguns textos que eram separados para, num segundo momento voltarmos à sua leitura, cujo processo desembocou na escolha dos sete textos principais da peça Árvore no Deserto: fragmentos de textos dramáticos de Harold Pinter, de uma peça de Luis Fonseca, entre outros, que explicitarei logo adiante. Também no período da tarde, após essas leituras, passamos a desenvolver, sob a batuta do nosso diretor neste primeiro ano, o que chamamos de exercícios teatrais, quais sejam jogos para despertar a atenção e a prontidão, jogos de percepção do espaço, jogos de ação e reação.

A dança, enquanto técnica de movimentação e expressão corporal, foi também uma linguagem trabalhada nos períodos da tarde das terças-feiras, num trabalho conduzido pela bailarina Tatiana Benone, bacharel em dança pela UNICAMP, que fornecia uma informação sobre a qualidade de movimentos e dinâmicas diferenciadas, colocando o corpo acrobático novamente em cheque coordenativo, acrescentando ainda as possibilidades expressivas.

Assim, concluímos o primeiro ano de trabalho com um corpo muito próximo àquele que almejávamos para a peça, talvez a eficiência e precisão acrobática dada pelo treinamento circense, as possibilidades de jogo trazidos pelo teatro e o refinamento expressivo trazido pela

dança. Mas não tínhamos ainda nenhum esboço da mesma. Por outro lado, os almoços, cafés e arrumações e limpeza do espaço, mais os momentos de produção também nos aproximavam, ao menos um pouco, da sensação de família circense.

De acordo com nosso diretor, o processo criativo da Árvore

Começa na reunião em que decidimos fazer uma peça. Mas qual peça? Não sabíamos. Então decidimos colher material de todos os jeitos. Perguntamos a cada um: que cena você gostaria de fazer? Aí cada um deveria trazer um texto, um material, uma proposta de cena. Que personagem você gostaria de fazer? Aí cada integrante do grupo trazia uma proposta de personagem. Fomos então fazendo esses exercícios. Trazer a cena, a proposta, a personagem, entrevistar a personagem do outro, e descobrir que personagem ou que cenas no fundo seria descobrir que universo iríamos trabalhar para especificar o espaço da ação. Então, há uma busca muito grande neste começo para saber onde vai dar a narrativa, com quem, que peça é essa que estamos falando (Entrevista com Kuarahy, 2018).

No segundo ano dedicamo-nos mais intensamente à composição do espetáculo, mantendo as manhãs das terças-feiras iguais às do primeiro ano. Nas tardes desse dia desenvolvemos o que denominamos “jogos teatrais”, utilizando textos selecionados, diferentes dinâmicas de leitura, o que foi desembocando numa conformação cênica de forma ainda não recortada e não lapidada. As cenas foram recebendo, ao longo do ano, os aparelhos aéreos de circo, de modo que as leituras e os personagens dos textos foram experimentando diferentes movimentações nos aparelhos, ainda sem definição, de acordo com a vontade e a capacidade que cada ator já havia desenvolvido em aparelhos específicos.

Sobre o processo criativo da Árvore, para mim, ainda estava muito novo, pois era a primeira vez que eu estava fazendo algo além do mundo da música, além de só tocar em cena. Foi um processo longo que passou por muitos textos, muitas vontades... Mas muito interessante, pois essa mistura entre estar em cena como músico e ao mesmo tempo como acrobata e intérprete-ator, acho que foi o que me fez chegar neste personagem da peça. Este personagem era o Gus de “O Monta-cargas”, de Harold Pinter, mas não usávamos este nome em cena, pois nós o adaptamos para a nossa peça. A partir deste texto e desse personagem, eu fui chegando no personagem desta peça, que era essa mistura de músico, o próprio Gus – alguém que estaria ali humanamente dentro das cenas que a gente compôs (Entrevista com Murilo Dias, 2018).