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O operador e o taxista sentados no carro disposto no centro da cena iniciam o dialogo que é um recorte do livro “A caixa de areia ou eu era dois em meu quintal” de Lourenço Mutarelli (2005, p. 109), a seguir transcrito.

OPERADOR – Outro dia me telefona a Helga.

TAXISTA – Com “H”, obviamente. OPERADOR – Obviamente. TAXISTA – Você é tão redundante.

Foto 46 – Diálogo no Deserto, 2012. Fonte: Acervo de fotos do “Ponte pra

OPERADOR – E você fala demais.

TAXISTA – Essa sua observação já não me atinge.

OPERADOR – Ah! Esse de “redundante” chega a ser ridículo! Posso continuar? Bom, como dizia antes de ser interrompido... Helga com “H”, me liga. Não nos víamos há vinte anos.

TAXISTA – Não me diga...

OPERADOR – Digo. E digo mais...Ela queria me rever. TAXISTA – NOSSA! Como você é marcante! (riso) OPERADOR – Sou inesquecível.

TAXISTA – Você é mais do que isso... Você é quase um trauma.

A conversa entre dois velhos amigos mostrava, por um lado, um contador de histórias que vivia se vangloriando de suas conquistas ilusórias e, por outro, aquele mais realista que questionava, que refutava o modo de ser do outro. Estamos diante de uma dramática mais tradicional, com dois personagens dialogando verbalmente numa situação de trânsito urbano onde o deslocamento é inviável e a alternativa é a troca de ideias, por meio da qual se revela a índole dos personagens, suas situações e reações diante do viver na sociedade.

Ele vai passar o resto da vida dele toda, se ele não se ocupar de outras coisas mais interessantes fora do trabalho, dirigindo um taxi para ganhar mais dinheiro, para poder viver melhor, para poder comer melhor, se vestir melhor, se aposentar melhor. E ai ele trabalha mais horas, dirige mais o taxi, e nenhuma hora desse dia ele faz Foto 47 – Histórias da Antuérpia, 2012. Fonte: Acervo de fotos do “Ponte pra Lua”

nada de bom. Tem um conflito aí: quanto mais horas ele dirige, mais dinheiro ele ganha, e menos tempo ele vive. Tem um cara que se relaciona com ele na peça, é o operador da central da empresa que vende o taxi (Entrevista com Kuarahy, 2018).

Enquanto o Operador, mais velho, se nutre de histórias do passado, de assuntos fúteis, conservadores e mantenedores da cultura vigente, o jovem Taxista é questionador, mas observador e realista e irônico:

TAXISTA – Eu só queria saber por que você inventa essas histórias? A vida tem que ser mais do que isso!

OPERADOR – Sabe? Eu estava me lembrando de uma outra namoradinha que eu tive... Helena. Helena com “H”.

TAXISTA – Eu sei muito bem por que você inventa essas histórias. OPERADOR – Vamos lá, sabidão! Então, me diga por quê!

TAXISTA – Você inventa essas histórias para acreditar que já foi amado. Você quer acreditar que já foi amado por alguém. Mas sou eu a única criatura que te aguenta. Eu sou o único ser que sente algo por você.

OPERADOR – E o que é que você sente por mim? Me ama?

TAXISTA – Você sabe muito bem o que eu sinto por você. OPERADOR – Me ama?!

TAXISTA – Eu sinto desprezo, Porque você é uma criatura lamentável... Você é triste... Patético...

Antes, porém, o diálogo entre o Taxista e o Operador toma rumos de caráter filosófico, o que vai justificar estas palavras finais.

OPERADOR – Você está aflito porque queria saber o final da história... a história de Helga.

TAXISTA – Ah! Cala sua boca!

OPERADOR – Mas foi você quem duvidou de que eu pudesse me calar.

TAXISTA – Está vendo como você não consegue ficar sem inventar as suas histórias? Tá vendo? Eu vou embora.

OPERADOR – Você nunca ouviu falar que os desertos se expandem? Será que você é tão ignorante que nunca ouviu falar isso?

TAXISTA – Claro que eu já ouvi isso.

OPERADOR – Nunca ouviu que os desertos caminham? Todos sabem que os desertos caminham não sei quantos metros ou quilômetros por ano. Não adianta fugir. Mais cedo ou mais tarde, o deserto encontrará você. (PAUSA)

TAXISTA – Você me parece um tanto calado hoje... Por que não conta uma história?

OPERADOR – Não sinto vontade. Por que não conta você? TAXISTA – EU?!

OPERADOR – É. Você. Conte você. (PAUSA)

TAXISTA – Eu?! Uma história? (PAUSA) Era uma vez... É... É... É... Eu nunca contei uma história...

OPERADOR – Mostre-me sua visão do mundo. Apresente-me o mundo a partir do seu ponto de vista. Exemplo: Daqui, do meu ponto de vista. Posso ver você e o deserto.

TAXISTA – Peguei! Entendi! Claro, claro! Hum! Hum... (PAUSA) Daqui do meu ponto de vista, posso ver você e o deserto. OPERADOR – Ora, ora, isso é plágio.

Esta cena termina com a máxima de outro autor, o físico chileno, Jose Javier Saéz Acuña (2005, p. 1), presente no texto “Paradoxo do pensamento científico – Artista num monólogo sobre o Universo”, que diz:

OPERADOR – Existe uma parte de mim que eu conheço e você conhece Existe uma parte de mim que eu conheço e você não conhece

Existe uma parte de mim que você conhece e eu não conheço Existe uma parte de mim que nem eu e nem você conhecemos.

O texto marca a saída do Operador e do Taxista, que carregam o carro para o canto direito do fundo do palco, o que finaliza a primeira cena denominada “Deserto”.

Ao fazer alusão ao deserto durante o diálogo, os dois personagens estão se referindo à cidade de maneira metafórica – a Babilônia.

Nas palavras do diretor:

O cara está no taxi e ele tem um amigo, mas o amigo trabalha na empresa e ele está abaixo do amigo na empresa, na relação do momento em que se dá a ação. Um dos personagens está na operação do rádio, tem um status maior em relação a empresa que o motorista do taxi. Ele também tem uma função e uma cobrança maior que a do motorista. O cara também tem um elemento de risco no trabalho dele. Se ele não trabalha bem, ele está colocado num sistema de pressão muito grande, diante da empresa. Ele fica no campo de batalha, ele está entre os motoristas de taxi ali na trincheira prontos pra morrer no front do dia-a-dia na rua... Esse cara está no sistema de pressão contra o único cara que é amigo dele, que a gente vê nessa cena, num texto que é recorte de um texto do Lourenço Mutarelli, muito rico, um diálogo super interessante, que a gente revela a amizade dos dois (Entrevista com Kuarahy, 2018).

Foto 48 – Diálogo no táxi, 2012. Fonte: Acervo de fotos do “Ponte pra Lua”