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A burocracia226, longe de qualquer sentido pejorativo, teve, e não se pode dizer que ainda não tenha, a sua importância na consecução da atividade administrativa. Infelizmente, os seus termos não foram ainda devidamente alcançados pela Administração Pública brasileira e, no que se apresenta mais instigante, revela-se imperioso superá-los, tendo em vista a sociedade hodierna, antes mesmo de consolidá-los, como forma de empreender uma atividade administrativa consentânea com as adversidades do nosso tempo.

Menciona-se, desde já, uma advertência: inexistiu, no Brasil, uma nítida burocracia weberiana, pois, aqui, a burocracia adquiriu matizes próprios e odiosos do patrimonialismo, que remonta ao período colonial.

A temática da burocracia, devidamente decantada por Max Weber, é textualmente condensada na seguinte passagem: “Administração burocrática significa: dominação em virtude de conhecimento; este é o seu caráter fundamental especificamente racional” 227. Daí, a importância da profissionalização na constituição de uma Administração Pública burocrática.

225 Carlos Ari Sundfeld, op. cit., 2006, p. 40.

226 A tentativa de implantação o modelo burocrático, como tentativa de superação do modelo patrimonial, e

como marco do processo de modernização da Administração Pública brasileira, remonta à década de 1930 (BUENOS AYRES, Carlos Antonio Mendes de Carvalho. Administração Pública Brasileira e as Vicissitudes do Paradigma de Gestão Gerencial. Sociologia, Problemas e Práticas (SPP), Lisboa, nº 51, p. 29-52, mai./agosto 2006, p. 31).

227 WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. I. Trad. Regis

Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Rev. Téc. de Gabriel Cohn. 4 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009, p. 147, itálico no original.

Porém, antes de mencionar as características centrais do quadro administrativo burocrático, impende apresentar os arquétipos da dominação legal228, em que se afigura como tipo mais puro o modelo burocrático229.

Assim sendo, a dominação legal se fundamenta nas seguintes ideias: (a) todo direito, seja por imposição ou mesmo convenção, pode ser devidamente estatuído de modo racional com o propósito de alcançar fins ou valores, ou mesmo ambos, assim como ter a pretensão de ser respeito por membros de um grupo; (b) todo direito compreende um complexo de normas abstratas voltadas a determinadas intenções, conforme a forma de exercício da dominação legal; (c) a autoridade superior, enquanto manifesta o exercício de um poder, expressa um comando impessoal; (d) aquele que obedece ao comando expressa apenas uma obediência ao direito como membro de um grupo; e (f) a obediência à autoridade constitui, tão-somente, uma obediência à lei, conforme uma competência objetiva e racionalmente limitada devidamente estabelecida230.

Não se questiona o prestígio da racionalização substantiva e formal da lei no pensamento weberiano, e isso é assente na expressão de sua dominação legal, muito embora ele admita, tranquilamente, que a criação e a aplicação da lei podem ser irracionais231.

Max Weber apresenta, ainda, as categorias fundamentais de uma dominação racional, que são condensadas, aqui, nestes termos: (a) um exercício contínuo de funções oficiais devidamente vinculadas a regras específicas; (b) a determinação de competência, donde se observa a distribuição de serviços com o pertinente poder de mando e de aplicação de sanção ou exercício de meios coercitivos, o que faz exsurgir a figura da autoridade institucional; (c) o estabelecimento de uma hierarquia oficial, no qual se impõe um sistema fixo de controle e supervisão de cada autoridade institucional; (d) a observância de regras com vista a alcançar a maior racionalidade possível das atividades através da devida qualificação profissional dos agentes, quer dizer, mediante a especialização profissional; (e) a separação absoluta entre os agentes, os meios da administração e os seus resultados, tudo de modo a não comportar qualquer confusão patrimonial, e nem de ambiente, entre a instituição e o servidor; (f)

228 Max Weber considera dominação toda situação de fato, em que se manifeste a vontade do dominador ou dos

dominadores, de modo a influenciar, de forma socialmente relevante, as ações dos dominados, de tal maneira que suas ações representem o próprio conteúdo das volições do dominador ou dos dominadores (Max Weber, op.

cit., vol. II, 2009, p. 191).

229 Max Weber, op. cit., vol. I, 2009, p. 144. 230 Max Weber, op. cit., vol. I, 2009, p. 142.

231 Max Weber, op. cit.,2011, p. 73. Aliás, a própria noção de racionalização lógica não se afigura suficiente para

a devida concreção do pensamento jurídico, pois ela não absorve todos os elementos exigíveis para a resolução dos problemas jurídicos, em medida em que eles carecem mais do que o emprego de meras interpretações abstrativas, daí a importância da racionalização substantiva que se pauta numa interpretação em conexão discursiva com fatores externos às meras prescrições abstratas (Max Weber, op. cit., 2011, p. 74).

impossibilidade de apropriação do cargo pela autoridade institucional; e (g) a documentação dos processos administrativos, o que evidencia total desprestigio ao princípio da oralidade232.

Há, notadamente, uma preocupação em empreender uma extrema racionalidade na dominação legal, de modo a evidenciar a sua superioridade em face da perspectiva paternal ou patrimonial de exercício do poder.

Tratando-se mais especificamente sobre o quadro administrativo burocrático, em que se prestigia a posição e a atuação dos servidores, colhem-se da doutrina weberiana as principais características a seguir; (a) inexiste relação de pessoalidade, são livres e as obrigações são objetivas e decorrem do cargo ocupado; (b) o provimento dos cargos ocorre por nomeação e em obediência uma estrita hierarquia; (c) as competências funcionais são fixas; (d) adota-se o critério de livre seleção, quer dizer, não se vincula a parâmetros estamentais; (e) a seleção para ocupar os cargos prestigia a qualificação profissional devidamente certificada; (f) o percebimento de salários fixos e em dinheiro; (g) o exercício do cargo se dá como ocupação única ou principal; (h) há progressão funcional por tempo de serviço ou em virtude da eficiência, conforme critérios racionais definidos pelos superiores; (i) o trabalho é desenvolvido sem qualquer relação de apropriação dos meios administrativos; e (j) submetem- se a um rigoroso e homogêneo sistema de controle e disciplina233.

Tendo em vista as considerações acima, pretende-se que a burocracia ofereça uma via perfeita para a “[...] conduta do princípio de divisão do trabalho administrativo segundo considerações simplesmente técnicas, distribuindo tarefas individuais a funcionários com treinamento especializado e que, por meio da prática, estão sempre agregando valor a sua experiência234”.

A superioridade técnica235 da organização burocrática em face do modelo patrimonial236, ainda que incontestável, não se mostrou superior com relação aos problemas da gestão pública nas sociedades hipermodernas, mormente a partir da quarta parte do século XX.

Quer dizer, ainda que o modelo burocrático tenha sido o paradigma desencadeador do movimento internacional de reforma administrativa, operadas nas três décadas que seguiram à Segunda Guerra Mundial, e tenha, também, representado o modelo de Administração Pública

232 Max Weber, op. cit., vol. I, 2009, 142-143. 233 Max Weber, op. cit., vol. I, 2009, p. 144. 234 Max Weber, op. cit., 2011, p. 327.

235 Max Weber, op. cit., vol. II, 2009, p. 212 e 222; Max Weber, op. cit., 2011, p. 325.

236 Já que era o melhor modelo para evitar os graves e históricos entraves na Administração Pública brasileira

do Estado Social237, ele fora superado pela necessidade de um modelo de gestão mais flexível e dinâmico e, portanto, mais compatível com as constantes vicissitudes das complexas sociedades do nosso tempo.

Em que pesem os nobres propósitos quem encerram o modelo de Administração Pública burocrática, assim como o contexto histórico que fomentaram os seus esteios, não há como admitir a persistência238, na atualidade, salvo sobre uma perspectiva parcial239, do pensamento burocrático-weberiano acima ventilado.

Contudo, a manutenção parcial do modelo burocrático se deve a duas elementares razões: (a) o modelo, do ponto de vista político e jurídico, representa a afirmação do princípio da legalidade; e (b) possibilita a defesa dos direitos dos cidadãos através do controle judicial das ações administrativas, pois as condutas dos agentes públicos são, em tese, previamente estabelecidas em lei240.

As exigências materiais do Estado Social e o agigantamento da Administração Pública denunciaram as evidentes insuficiências do modelo burocrático. A envergadura operacional do Estado e suas diretrizes executivas não foram suficientes para atender às demandas do paradigma constitucional do Estado Social. Destarte, o modelo burocrático-weberiano é objeto de críticas pertinentes241, tais como:

(a) o cumprimento estrito de regras acaba por ceifar qualquer atividade criativa dos servidores públicos, pois o descumprimento do rito, ainda que este chegue ao limiar da estultice, configura uma infração funcional;

(b) assim, o seguimento ou mero cumprimento das normas se afigura mais importante que o próprio objetivo ou resultado a alcançar com a atividade administrativa desenvolvida,

237 Joan Prats i Català, ob .cit., 2005, p. 101.

238 Humberto Quiroga Lavié chega até mesmo mencionar que, por um lado, não há como prescindir da

organização burocrática; por outro, ela paralisa a gestão pública e a orienta até a ineficiência (LAVIÉ, Humberto Quiroga, Vida, pasión y muerte del derecho administrativo: en pos de su necesaria resurrección. In: MAC- GREGOR, Eduardo Ferrer; e LARREA, Arturo Zaldívar Lelo de (Coord.). La Ciencia del Derecho Procesal

Constitucional. Estudios en homenaje a Héctor Fix-Zamudio en sus cincuenta años como investigador del

derecho. Tomo XII. México-DF: Universidad Nacional Autónoma de México – UNAM, 2008, p. 363-367, p. 364). A visão trágica do modelo burocrático, tal como apregoa Lavié, em nada contribui para a evolução dos outros modelos, pois o que se revela permanente em qualquer perspectiva evolutiva de modelo de gestão é justamente o aspecto útil ou operativo do modelo superado.

239 Não se pode olvidar que a nossa Carta Política consagrou várias normas que evidenciam o modelo

burocrático, tais como o art. 37, caput, inciso I e art. 41, daí o porquê de afirmar que a superação de tal modelo é apenas parcial, o que não poderia ser diferente, uma vez que não há como desprezar os pontos positivos dos modelos já superados.

240 Joan Prats i Català, op. cit., 2005, p. 102. 241 Joan Prats i Català, op. cit., 2005, p. 103.

ocasionando, assim, um distanciamento entre a previsão abstrata e a efetiva realização material do Poder Público;

(c) o crescimento exacerbado das regulamentações, pretensamente impessoais e desejosamente racionais, acaba por representar um obstáculo ao reconhecimento de situações não previstas pelos atos normativos, uma vez que não se fomenta a discussão de novas possibilidades, mas, sim, o cumprimento irrestrito das disposições normativas existentes; e

(d) a rigidez das normas, ao contrário do seu pretendido propósito, resulta em ineficácia, pois padece da necessária dinâmica que encerra toda a atividade administrativa, isto é, sem a devida mutabilidade, e isso não pode ser olvidado, os comandos legais passam a exigir condutas que não concretizam os objetivos perseguidos pela sociedade. Logo, a tão pretendida racionalidade universal da burocracia pode não passar de mero cumprimento dos meios e, quiçá, um verdadeiro desprezo dos fins.

Naturalmente, outras críticas foram levantadas, principalmente demonstrando a anacronia do modelo burocrático com necessidade de uma gestão pública dinâmica e participativa, nestes moldes:

(a) a eliminação da atividade criativa dos servidores, já que devem cumprir estritamente os procedimentos legais vigentes, e sem quaisquer questionamentos, implica a perda de potencialidades para encontrar novas ideias capazes de melhorar a prestação do serviço público242;

(b) em qualquer organização há uma série de múltiplas relações espontâneas, que são desprezadas pelo modelo burocrático, capazes de promover uma verdadeira superposição em face das relações formais, fazendo com que apresente um peso fundamental nas condutas dos servidores243, inclusive contra os próprios desígnios do serviço público prestado. Daí a importância de cotejar meios para captar tais relações numa ambiência flexível de gestão administrativa, de maneira que, através delas, sejam viabilizadas novas conquistas ou mudanças no serviço público;

(c) a rigidez do pensamento burocrático impossibilita o trabalho em equipe, o que relativiza a importância das relações comunicativas no serviço público244; e

242 KLIKSBERG, Bernardo. Gerencia Pública en Tiempos de Incertidumbre. Madrid: Instituto Nacional de

Administración Pública - INAP, 1989, p. 65.

243 Bernardo Kliksberg, op. cit., 1989, p. 68. 244 Bernardo Kliksberg, op. cit., 1989, p. 70.

(d) a realidade imensamente cambiante da gestão pública moderna acaba por revelar a anacronia do modelo burocrático, pois a sua ortodoxia não fomenta a adoção de métodos ou procedimentos diversos dos regulamentados, ainda que eles sejam insuficientes quanto aos fins a serem pretensamente alcançados245.

À evidência, um dos mais sérios dilemas do modelo de Administração Pública burocrática se revela no fato de ele, em maior ou menor medida, a depender do rigor ou da formalidade excessiva, fomentar o surgimento de um sistema administrativo paralelo246, já que o desconhecimento do sistema ou a sua irrealidade acaba por estimular a sua violação, criando, assim, um universo paralelo com regras próprias e alheias às leis ou às regulamentações do Estado.

Ademais, a Administração burocrática possui um forte matiz antidialógico; quer dizer, ela é “sempre uma administração que exclui o público. A burocracia oculta, na medida do possível, o seu saber e o seu fazer da crítica” 247. Tal característica não se harmoniza com o modelo de Administração Pública que deve reinar no Estado Democrático de Direito, uma vez que nele há uma necessária relação dialogal entre a atividade administrativa e a sociedade civil.

Sobremais, o modelo burocrático não é capaz de alcançar os desejáveis níveis de eficiência da Administração Pública, uma vez que a racionalidade jurídico-formal, em per si, não resulta numa racionalidade material inerente às atividades administrativas, que demanda maior flexibilidade no atendimento dos seus fins. Isto é, a rigidez do perfil burocrático, inicialmente aconselhável, se mostra impróprio em face da miríade situacional que envolve o serviço público em geral, fazendo com que os resultados sejam tolhidos em face dos procedimentos, por vezes inócuos, a serem seguidos.

Disso resulta, em certa medida, a realização dum processo administrativo cego; quer dizer, aquele em que os procedimentos, a despeito de seguir uma pretendida racionalidade, não alcançam os fins últimos desejados pela sociedade e nem são capazes de salvaguardar os direitos dos administrados, uma vez que acentuam uma carga decisional nos resultados imprecisos dos próprios procedimentos.

Tudo isso revela um enorme custo à processualidade administrativa, pois o processo não pode ultimar qualquer fim, ainda que pautado nos procedimentos previamente definidos,

245 Bernardo Kliksberg, op. cit., 1989, p. 71.

246 GORDILLO, Agustín. La administración paralela. Madrid: Editorial Civitas, 2001, p. 101. 247 Max Weber, op. cit., vol. II, 2009, p. 225.

como expressão resolutória de conflitos. Exige-se mais que isso: o cumprimento das regras do jogo com resultados que não ponham em xeque a racionalidade sistêmica que deve reinar nas decisões administrativas.