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A processualidade constitui uma marca indelével do regramento da atividade estatal hodierna. Não há como negar isso. As autoridades públicas para exarar as decisões administrativas carecem de uma procedimentalização consolidadora dos direitos dos administrados, assim como a defesa de suas prerrogativas, e, por isso, faz uso dos expedientes processuais que o sistema jurídico faculta ou impõe, conforme o caso.

613 Raimundo Parente de Albuquerque Júnior, op. cit., 2010, p. 171. Afinal, não há como materialmente

diferenciar as atividades decisórias promovidas pelo Poder Judiciário das que são realizadas pelas autoridades administrativas numa ambiência processual.

614 Diogo de Figueiredo Moreira Neto, op. cit., 1977, p. 80.

Vive-se, portanto, a era da processualidade ampla616-617 caracterizada pela promoção dos esteios processuais em qualquer atuação estatal independentemente da origem do processo, se judicial, administrativo ou legislativo. Isto é, “se fala em processo quando se quer aludir à elaboração, pelo Estado, das normas jurídicas (processo legislativo), ou quando se visa destacar a aplicação daquelas pelos órgãos estatais (processo judicial e administrativo)” 618.

Ora, não há como negar que a processualidade não se esgota na instância judicial, justamente porque o fenômeno processual representa um instrumento para regularidade da atuação do Poder Público; logo, não pode limitar-se apenas à consecução dos fins do Poder Judiciário, mormente quando a “teoria processual constrói o processo, quer a partir do conceito básico da ação, quer a partir do conceito básico da situação (situação jurídica), quer ainda a partir do conceito básico de relação” 619. Portanto, a processualidade se insere tranquilamente em realidades distintas.

Aliás, o processo, até mesmo em função de sua natureza, é observado em todas as funções estatais, inclusive para contemplar novas realidades advindas justamente do alargamento do exercício dessas funções620. Portanto, apenas a raiz histórica do processo, que é inegavelmente vinculada à seara judicial, representa a única razão para justificar a tentativa de reduzir a ambiência processual aos pórticos dos órgãos do Poder Judiciário621.

Pois bem. A processualidade administrativa deve ser interpretada como uma expressão de segurança jurídica para a definição/concreção das decisões administrativas, pois prestigia o devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, da CF/88) e, claro, cria um parâmetro pretensamente preciso para atuação dos agentes públicos, tudo de modo a tentar evitar desvios decorrentes de manifestações pautadas em prognósticos meramente pessoais do gestor público.

Mas o que consiste essa processualidade na ambiência administrativa? O que ela encampa na seara administrativa? Quais são os seus verdadeiros propósitos?

616 MEDAUR, Odete. A Processualidade no Direito Administrativo. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2008, p. 25.

617 A processualidade ampla é reconhecida pela elementar constatação de que o processo é um instrumento do

Estado para a consecução dos seus fins; aliás, coteja-se até mesmo na existência de processos não-estatais (DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 13 ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 74), o que seria um bom e relevante exemplo os processos decorrentes das atividades desenvolvidas sob os esteios da arbitragem.

618 NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O Princípio da Boa-Fé e sua Aplicação no Direito Administrativo Brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 227.

619 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Revisão

Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 37.

620 MERKEL, Adolfo. Teoría General del Derecho Administrativo. Edición al cuidado de José Luis Monereo

Pérez. Granada: Editorial Comares, 2004, p. 273.

Antes de tudo, a processualidade é uma via destinada à perfectibilização da manifestação administrativa, devidamente exarada no ato que culmina o processo administrativo. Ela cumpre, portanto, a importante tarefa de carrear as importantes inferências axiológico-normativas do nosso sistema jurídico no processo de decantação das decisões ou escolhas públicas.

Dessa forma, a processualidade é uma expressão de transparência e de regularidade da atuação administrativa, porque ventila, na exigida claridade das intervenções sociais, as medidas e condutas dos agentes públicos no exercício da função administrativa e, desse modo, elas são concretamente entregues às diretrizes legais cobradas pela sociedade civil. Então, a processualidade é também um mecanismo para o exercício da cidadania622 e, consequentemente, um instrumento de participação administrativa.

Ademais, a fundamentalidade de determinados direitos constitucionais impõe a concreção de uma precisa via processual para concretizá-los, assim sendo, a processualidade é uma inarredável exigência operativa para a observância dos direitos fundamentais na ambiência pública e, quiçá, até mesmo na privada, hajam vista os prognósticos da pretendida eficácia horizontal dos direito fundamentais623.

Ora, de que serviriam as garantias constitucionais do processo se elas fossem apenas extensíveis à seara judicial, isto é, tivessem apenas cabimento numa eventual atuação corretiva da ordem jurídica e, por isso mesmo, fatalmente tardia, já que a tutela judicial não consegue exarar, a tempo e a hora, na maioria dos casos, uma tutela específica destinada aos jurisdicionados.

Odete Medauar salienta algumas razões que justificavam o entendimento de que o fenômeno processual deveria ocorrer apenas no exercício da jurisdição judicial, quais

622 Uma noção de cidadania arrima-se na identificação de três elementos constitutivos, quais sejam: (a) a

titularidade de direitos e deveres numa dada sociedade; (b) o sentimento de pertencimento a uma determinada comunidade política, donde se vislumbra, geralmente, uma ideia de vinculação à determinada nacionalidade, que é um conceito ordinariamente ligado a um Estado; e (c) a possibilidade de participar da vida pública e, dessa forma, contribuir para o regular exercício do poder (NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos. Revista do Direito Público da Economia (RDPE), Belo Horizonte, ano 05, nº 20, p. 153-181, dez. 2007, p. 171).

623 Nesse ponto é importante preservar o direito geral de liberdade dos cidadãos, o que não ocorreria se a

denominada eficácia horizontal dos direitos fundamentais fosse aplicada diretamente em face dos particulares. Isto é, a disciplina das relações privatísticas sob o dirigismo das normas de Direito Público faria com que praticamente todo ramo do Direito Privado sucumbisse. Então, a aplicação da eficácia horizontal contempla os devidos cuidados, senão pode levar a verdadeiros absurdos na conformação das atividades exercidas pelos particulares. Afinal, “[...] não faz sentido dizer que o particular não pode fazer ‘distinção de qualquer natureza’ que seria a necessária consequência caso fosse vinculado diretamente ao direito fundamental à igualdade previsto e destinado às três funções estatais no art. 5º, caput, da CF” (DIMOULIS, Dimitri; e MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 108).

sejam624, (a) a precedência dos estudos do processo no âmbito do processo judicial; (b) a visão privatística do processo, pelo menos até meados do século XIX, de modo que a jurisdição e o processo se destinavam apenas à tutela dos direitos subjetivos; (c) a preocupação na afirmação científica do direito processual, no qual se desenvolvia uma teorização solipsista do processo, o que dificultava enxergar, ou mesmo não permitia, a processualidade em outras funções do Estado625.

Aliás, tais fatores condicionaram até mesmo o pensamento dos administrativistas, uma vez que acenavam apenas pela existência do processo na seara judicial, sem falar que a atividade administrativa foi compreendida, por muito tempo, como uma atuação livre de regramentos, o que a tornava incompatível com a rigorosa disciplina processual. Portanto, trata-se de concepções ou entendimentos absolutamente anacrônicos em face do atual Estado Democrático de Direito.

Numa palavra: a processualidade é uma elementar decorrência do atual Estado de Direito que ornamentam os sistemas jurídicos ocidentais e demais povos civilizados, por conta da imperiosa razão de que o exercício dos poderes e das prerrogativas públicas deve ser regrado, senão passa a imperar o arbítrio na consecução do interesse público.

É dizer, o dever de juridicidade é inerente ao exercício de toda função pública. A regularidade do atuar estatal é determinada, em grande medida, pela processualidade carreadora de princípios e valores do nosso sistema jurídico; logo, seria um dislate restringir a processualidade ao vale da atuação judicial626.

Por conta disso, as garantias constitucionais do processo são verificadas em três planos627: (a) na jurisdição judicial; (b) no plano das acusações em geral, hajam vista os termos do art. 5º, inciso LV, da CF/88; e (c) no processo administrativo em que é desencadeada a jurisdição administrativa.

O que se pode questionar é o sentido da expressão “aos acusados em geral” contida no inciso LV, do art. 5º, da CF/88. Ora, na seara administrativa toda acusação demanda uma

624 Odete Medauar, op. cit., 2008, p. 17.

625 Em que pesem as considerações acima, Francesco Carnelutti, um dos expoentes do Direito Processual Civil

no século XX, admitia tranquilamente a atividade processual na seara administrativa, tanto que assinalava a existência de um verdadeiro Direito Administrativo processual (CARNELUTTI, Francesco. Instituciones de

Derecho Proceso Civil. Trad. Santiago Sentís Melendo. Tomo I. 5 ed. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas

Europa-América, 1959, p. 05 e 199), o que demonstra que a processualidade, e isso não revela qualquer novidade, é um fenômeno amplo e que se estende a todas as funções do Estado. O pretenso ar de novo, aqui, revela-se apenas no irrestrito reconhecimento da processualidade fora do processo judicial.

626 Ora, o processo representa um verdadeiro instrumento para o legítimo exercício do poder; logo, ele é

extensível a todas as atividades estatais, de maneira que a processualidade é ampla em virtude dos seus fins ou propósitos (Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, op. cit., 2007, p. 296).

atividade processual, o mesmo se diga, obviamente, à atividade judicial; então, cogita-se que a expressão pode referir-se também à atividade desenvolvida por particulares nas associações e demais entidades privadas; isto é, fora a da ambiência estatal.

Contudo, há o inconveniente terminológico, uma vez que, na seara privada, a ideia de pendências ou conflitos não se associa necessariamente à ordinária noção de acusados em geral e, muito menos, são necessariamente talhados numa ambiência processual. Então, por imprimir uma cômoda posição, a expressão possui um matiz processual penal ou disciplinar e, assim, os seus esteios se inserem totalmente na seara pública. Porém, não é ainda o melhor entendimento sobre a questão, pois na via privada há também acusações.

Destarte, em que pese à literalidade da expressão, e mesmo considerando que o art. 5º se prende precipuamente à ambiência publicística, defende-se que a dicção constitucional tem um sentido amplo, de modo a salvaguardar todas as situações em que envolvam conflitos de interesses no âmbito das entidades públicas ou privadas regidas pelo nosso sistema jurídico, pois, só assim, o comando constitucional garantístico compreende um universo maior de destinatários. Portanto, o núcleo da processualidade na seara privada encontraria, assim como na seara pública, o seu arrimo no inciso acima mencionado, senão a expressão representa, no mínimo, uma redundância628 dentro do contexto geral da disposição constitucional.

Em todo caso, ainda que se discuta a viabilidade da processualidade sob uma perspectiva garantística na seara privada, em virtude das limitações na aplicação dos fundamentos da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, não há como negar a sua ocorrência no âmbito da Administração Pública, até porque, do contrário, como poderia ser empreendido o devido processo legal no mar das concreções do Poder Público, isto é, na Administração Pública decisória e prestadora.

Aliás, Odete Medauar destaca a existência de um núcleo comum da processualidade629 assentado nos seguintes pontos630: (a) o processo é um fenômeno dinâmico; (b) uma sucessão encadeada de atos destinada a alcançar um resultado631; (c) sucessão necessária, o que se observa os permeios do devido processo legal no seu aspecto substantivo; (d) fenômeno

628 Em todo caso, em apoio à sempre (in)desejável claridade extremada ou apoteótica das normas de Direito

Público na terra tupiniquim, a expressão pode ser interpretada, tão-somente, para manifestar um reforço aplicativo em face das acusações ocorridas entre os litigantes nos processos judiciais ou administrativos.

629 O que já denuncia, evidentemente, diferenças entre os processos administrativos, judiciais e legislativos. O

que não podia ser diferente, tendo em vista o universo em que se desenvolvem as atividades processuais. Trata- se, portanto, apenas de uma identidade mínima entre eles (Raimundo Parente de Albuquerque Júnior, op. cit., 2010, p. 181).

630 Odete Medauar, op. cit., 2008, p. 27-32.

631 Aqui, resta bem evidenciada a procedimentalização processual, que é apenas um dos aspectos do fenômeno

diverso de ato, pois o ato é o feito da processualidade; (e) correlação com ato, tendo em vista a relação de inerência e instrumentalidade entre eles; (f) obtenção de um resultado unitário632; (g) pluripessoalidade necessária; (h) interligação de sujeitos em função dos direitos e deveres envolvidos; e (i) pertinência ao exercício de um poder.

O universo que cerca o exercício do poder estatal, administrativo, judicial ou legislativo, não ocorre avesso às determinações constitucionais e infraconstitucionais regradoras das condutas dos agentes públicos633, daí que a processualidade, além dos esteios normativos inerentes a qualquer sistema jurídico, deve contemplar os princípios gerais do Direito, positivados ou não, e os princípios constitucionais ou legais pertinentes a cada segmento da atuação do Estado.

Em outras palavras, sem os permeios principiológicos a processualidade pode resultar em decisões que, embora legais e consoantes com os cânones processuais normativos, não revelem o verdadeiro sentido de justiça, uma vez que são destituídos de substratos axiológicos. Afinal, e isso ainda constitui um propósito inquebrantável da atividade processual, “o núcleo de todas as teorias clássicas do procedimento é a relação com a verdade ou com a verdadeira justiça como objetivo” 634.

Portanto, a processualidade deve veicular a principiologia reinante no nosso sistema jurídico635 e mais que isso: deve imprimi-la nas relações jurídicas de contato entre o cidadão e o Estado, mormente nas relações jurídicas administrativas, donde, por muito tempo, imperou uma injustificável relação de sujeição calcada no falso entendimento de que a prossecução do interesse público permitiria ou mesmo imporia uma superposição apriorística de poder do Estado em face das pretensões dos cidadãos.

Ora, isso era de todo incompatível com a noção de direitos fundamentais do constitucionalismo moderno, de maneira que, com o devido aquilatar das teorias

632 Não se discorda que a decisão final deve ser marcada pela unitariedade; contudo, nada impede que o ato

administrativo, decorrente de um regular processo administrativo, concretize uma decisão que acabe por revelar situações jurídicas conflitivas em face de terceiros, o que faz com que a unitariedade descambe para situações jurídicas múltiplas inicialmente não desejadas ou prospectadas pela autoridade administrativa, haja vista a multipolaridade da atividade administrativa, mormente em matéria ambiental e urbanística. Assim sendo, em face de tais considerações, pode-se cogitar de atos administrativos que estabeleçam uma multiplicidade na unitariedade; quer dizer, que contenham disposições aplicáveis em face de terceiros e suas particularidades, a despeito das imperiosas considerações destinadas um cidadão em particular.

633 Não há razão, por mais pretensamente imperiosa, que justifique uma estratificação dos agentes públicos, em

função de determinadas características de uma ou outra carreira, para fins de observância do dever de juridicidade administrativa.

634 Niklas Luhmann, op. cit., 1980, p. 21.

635 Não constitui objetivo de este trabalho analisar, até porque demandaria demorada exposição em apartado, os

princípios constitucionais ou infraconstitucionais pertinentes à processualidade administrativa. Com relação aos princípios do processo administrativo, veja-se: RIBEIRO LIMA, Raimundo Márcio. Premissas Principiológicas e Garantísticas Indispensáveis a uma Regular Atuação da Administração Pública e o Silêncio Administrativo.

constitucionais, mormente no que concerne à força normativa da Constituição, assim como os seus inevitáveis reflexos no Direito Administrativo, mudaria significativamente o modo de compreender e empreender as relações entre o Estado e o cidadão.

Ademais, a processualidade deve ser adequada, pois, só assim, representa um instrumento democrático no seio da Administração Pública, pois ventila uma processualidade participativa636. Isto é, a exigência de uma processualidade participativa é justificada em virtude da intervenção política do cidadão no aperfeiçoamento das instituições públicas e de suas ações ou realizações, uma vez que há o partejar do interesse público sob o signo do diálogo e do consenso possível.

Então, a processualidade também é uma forma empreender as mutações do Direito Administrativo, pois constitui o canal necessário para desenvolver as novas concepções relacionadas ao exercício das atividades administrativas.

Dessas considerações resultam três claros momentos da processualidade: (a) o que impõe a processualidade como parâmetro legitimatório do exercício do poder administrativo, no qual o regramento da atuação administrativa é regularmente decantado num processo administrativo; (b) o que estabelece os direitos processuais dos cidadãos e da própria Administração Pública sob uma perspectiva substantiva, de modo a salvaguardar as conquistas processuais inerentes ao processo administrativo no Estado Democrático de Direito; e (c) o que absorve e regula a atividade processual sob o signo dos princípios constitucionais e infraconstitucionais pertinentes à atividade processual administrativa.

Revelam-se, assim, os três momentos da processualidade: o impositivo, o garantístico e o principiológico. Naturalmente, esses momentos não são estanques e nem se desenrolam no invariável círculo da sucessividade, uma vez que também pode imperar a concomitância, mormente entre os momentos garantístico e principiológico.