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Operando-se a consolidação de um Direito Administrativo amplamente entregue aos mais diversos fins do Estado130; quer dizer, dedicado a promover os meios imprescindíveis para tentar alcançar as exigências da sociedade moderna, no que impôs uma necessária estruturação do aparelho estatal; teve-se, como que inevitável, o desenvolvimento desse ramo jurídico, só que com as mesmas estruturas das suas vetustas configurações; premiando, assim, as resistências de suas decrépitas fundamentações, porém, e consequentemente, aprofundando a crise que assola a sua identidade ao longo do século XX, em particular, a partir da sua segunda metade.

Como resistir às mudanças ou aos aperfeiçoamentos em face de tantas vicissitudes de uma sociedade cada vez mais complexa? Qual seria o motivo da relutante permanência do Direito Administrativo dos mesmos quadrantes da época do seu nascedouro? A quem ou o que isso prestigiaria ou beneficiaria?

Inicialmente, deve-se mencionar que Estados com Administrações Públicas antidemocráticas ou altamente centralizadoras, por evidente, tendem a expressar suas ideologias políticas na atividade administrativa exercida. Logo, se a tônica do Direito Administrativo de antanho era adequado, melhor dizer cômodo, a esse tipo de gestão pública, por evidente, não fazia maior sentido deter-se a mudanças que, de algum modo, instabilizaria o desejado exercício autocrático do poder.

Vê-se, portanto, a razão maior da defesa do culto da permanência e não o entoar da mudança no Direito Administrativo, que sente, profundamente, como poucos ramos jurídicos, os ranços políticos de cada Estado.

Diante desse fato, não revela qualquer surpresa o desenvolvimento de institutos consagradores de uma quase absoluta supremacia estatal em face do particular, como se pode observar no instituto da desapropriação, nas cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos, nalgumas prerrogativas processuais etc.

Assim, tendo em vista os esteios principiológicos construídos pelo Conselho de Estado francês, bem como o aperfeiçoamento paulatino dos institutos administrativos através da jurisprudência, o Direito Administrativo ganhou fôlego no mundo, passando a açambarcar

130 No que se compreende a função do Estado no seu sentido de “tarefa ou incumbência, correspondente a certa

necessidade coletiva ou a certa zona da vida social”, já o outro sentido se revela “como atividade com características próprias, modo de o poder político se projetar em ação” (MIRANDA, Jorge. Funções do Estado.

enormes desafios na seara pública nos países influenciados pela escola francesa; todavia, os conflitos entre os seus fundamentos e a ambiência inovadora do século XX, advinda do progresso da atividade humana em geral, se revelaram sem maiores esforços. Logo, a marcha do dissenso e da insatisfação com os velhos instrumentos do Direito Administrativo ganhou corpo.

Explica-se: assentando-se na superioridade do interesse público, assim como na força vinculante das decisões administrativas, exsurgiu-se uma Administração Pública detentora de inegável supremacia em face dos particulares131 e tal característica, a despeito dos fins públicos a serem alcançados, consolidou uma roupagem autoritária à atuação administrativa e, de certo modo, assim permanecendo até os nossos dias.

Assim sendo, numa linha conservadora do interesse do Poder Público, como que num breve passo de considerações, a Administração Pública gozava do particular conforto dos esteios do princípio da legalidade, da sua supremacia em face do particular e, no que sempre se revelou temível, do poder discricionário sem nítidos limites132.

Ademais, a forte relação do Direito Administrativo com a esfera governamental, reconhecidamente unitária, autocrática e centralizadora133, acarretou sérios reflexos na compreensão dos seus institutos, já que eles absorviam os mesmos vícios da Administração Pública sem, contudo, transformá-la sob uma perspectiva democrática.

Dessa forma, todo o desenvolvimento do Direito Administrativo se voltou à consolidação dos instrumentos que permeavam algumas formas de privilégios ou prerrogativas do Estado.

Contudo, ainda que tais propósitos tenham se concretizados, eles sentiram o peso da vetustez dos seus fundamentos, já corroídos pelas mudanças sociais e constitucionais do século XX, especialmente no que se concerne a sua segunda quadra.

Uma evidência não pode ser negada: à medida que aumentavam os fins do Estado, no que desencadeou a sua crise134, e, consequentemente, a expansão do serviço público a ser

131 CASSESE, Sabino. La Globalización Jurídica. Trad. Luis Ortega, Isaac Martín Delgado e Isabel Gallego

Córcoles. Madrid: INAP/Marcial Pons, 2006, p. 180.

132 Sabino Cassese, op. cit., 2006, p. 181. 133 Sabino Cassese, op. cit., 2006, p. 182.

134 Marcelo Neves menciona que, a despeito de uma crise em escala mundial, há mais diferenças do que

semelhanças nesse fenômeno, especialmente quando se retrata a existência de sociedade de modernidade central e de sociedade de modernidade periférica. Naquelas, a crise resulta dos dilemas dos sistemas político e jurídico em atender, mediante expedientes adequados, às demandas de uma sociedade cada vez mais complexa; estas, por sua vez, a crise remansa num bloqueio dos sistemas político e jurídico em fazer operar a sua estrutura, donde evidencia uma atuação normativa negadora da constitucionalidade e da legalidade (NEVES, Marcelo. A Crise do Estado: Da Modernidade Central à Modernidade Periférica. Anotações a partir do Pensamento Filosófico e Sociológico Alemão. Revista de Direito Alternativo - RDAlt., São Paulo, vol. 3, p. 64-77, 1994, p. 75).

prestado em benefício da coletividade, mais se notava a anacronia dos cânones conceituais do Direito Administrativo.

Destarte, a crise135 não tardou em chegar. E por quê? Porque as prestações positivas fáticas e normativas136 exigidas do Estado Social fizeram com que fossem alargadas as linhas ordinárias da atuação administrativa, de modo que as velhas estruturas não tinham como atender às novas demandas advindas, em grande parte, das novas constituições137 ou reformas constitucionais, nas quais evidenciaram uma larga escala de deveres do Estado em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais.

Acresça-se, também, num evidente toque revelador das dificuldades próprias do Estado moderno, a complexidade crescente da sociedade a partir das primeiras décadas do século passado. E se isso já se afigurava muito, depois da Segunda Guerra mundial, com o exsurgir das sociedades hipermodernas, as tarefas incumbidas ao Poder Público cresceram exponencialmente.

Assim sendo, destacam-se, dentre outros, os seguintes sintomas decorrentes da crise do Estado social138: (a) a ineficiência estatal advinda da sua enormidade e complexidade destinada a servir à sociedade e, também, ser servida; (b) o recrudescimento da participação do cidadão na consecução das atividades do Estado; (c) uma horizontalidade nas relações entre o Estado e o cidadão, uma vez que aquele se despiu, ainda que parcialmente, da sua posição de superioridade; e (d) o Estado passa a ser visto com desconfiança pela sociedade.

135 No caso brasileiro, e sob o influxo das ideias da reforma administrativa promovida na década de 90 do século

passado, a crise do Estado foi de três ordens: (a) fiscal; (b) no modo de intervenção na economia e no segmento social; e (c) no aparelho do Estado (BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. A reforma do aparelho do Estado e a

Constituição brasileira. Brasília: Escola Nacional de Administração Pública – ENAP, 1995, p. 04).

136 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros,

2008, p. 201-203. A questão destaca uma perspectiva política muito clara: o dever de o Estado consolidar os direitos econômicos, sociais e culturais determinados pelo texto constitucional. Aliás, isso fazer operar um verdadeiro fenômeno de transmutação devidamente observado na submissão dos imperativos constitucionais em normas jurídicas efetivamente consagradoras do compromisso político encartado na Carta Fundamental, tudo, é claro, em função das possibilidades financeiras do Estado, o que acarreta inevitável tensão entre direito e política, haja vista a juridicização do processo decisório destinado a empreender as prestações positivas demandas pela sociedade (MENDES, Gilmar Ferreira. A Doutrina Constitucional e o Controle de Constitucionalidade como Garantia da Cidadania. Declaração de Inconstitucionalidade sem a Pronúncia de Nulidade no Direito Brasileiro. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, nº 191, p. 40-66, jan./mar. 1993, p. 51).

137 Não se revela preciso afirmar que as novas constituições ou reformas constitucionais sobre direitos

econômicos, sociais e culturais ocorreram apenas a partir da Segunda Guerra mundial, ainda que a partir dela tenha ocorrido uma maior positivação de tais direitos, mas antes, como serve de exemplo a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição Alemã de 1919, já existiam textos constitucionais que traziam um catálogo desses direitos.

138 SILVA, Vasco Manoel Pascoal Dias Pereira da. Para um Contencioso Administrativo dos Particulares.

Ademais, a intervenção do Estado na atividade econômica através das empresas nacionalizadas colocou em xeque o antigo arcabouço da prestação dos serviços públicos139, empreendendo, assim, novas possibilidades para a atuação do Direito Privado na Administração Pública; mas, por outro lado, revelando de forma ainda mais incontestável a incompletude do regime estrito de Direito Público. Aliás, há muito tempo já não se pode identificar, se é que algum dia isso foi possível, um regime puro sobre a atividade do Estado, especialmente porque os recursos do Direito Privado, por uma questão operacional, se tornaram cada vez mais frequente na consecução da atividade administrativa140.

Em conclave com tal adversidade, extrai-se o fato de que o sentido inverso também faz exsurgir novas demandas para a Administração Pública. Isto é, a privatização, em que se observa a prestação de serviços públicos pelos particulares e, assim, a alternância na titularidade de tal prestação, faz exsurgir toda uma teia de atividades de controle do Poder Público. Portanto, recrudesce a atividade fiscalizatória estatal141, até mesmo para definir os devidos marcos na proteção dos usuários dos serviços públicos e na promoção da qualidade dos serviços prestados142.

Na verdade, a crise do Estado Providência acarretou uma necessária discussão sobre a dinâmica da atuação administrativa do Estado, de maneira que o reformismo da Administração Pública se afigurou inevitável, sem falar no surgimento de novas temáticas relacionadas à gestão pública, tais como: (a) produtividade; (b) avaliação; (c) inovação; (d) transparência etc.; enfim, assuntos especificamente dedicados à modernização da Administração Pública143.

139 Nesse ponto, insta mencionar o famigerado arrêt Bac de Eloka, de 1921, uma vez que inaugurou a

possibilidade da gestão de serviços públicos através da disciplina do Direito Privado. No caso, uma balsa que transportava veículos, explorada pela Colônia Costa do Marfim, afundou com os veículos transportados e tal serviço era prestado em regime de igualdade com os particulares. Na ocasião, foram aplicadas as regras do direito comum, fazendo com que a jurisdição comum fosse competente para demanda; logo, o fato de ser prestado um serviço público, por si só, não acarreta, de todo modo, a aplicação das regras de Direito Público, fato que acabou com o purismo do regime jurídico (MEDAUAR, Odete. Serviço Público. Revista de Direito

Administrativo - RDA, Rio de Janeiro, nº 189, p. 100-113, jul./set. 1992c, p. 106). Mais adiante, em 1938, no

caso Caisse primaire (d´assunrances sociales) Aide et Protection restou assentada a orientação de que instituições privadas podem realizar serviços públicos. Têm-se, ainda, as decisões Monpeurt, de 1942, e

Bouguen, de 1943, nas quais revelaram que entes privados podem participar de serviços públicos. Tais decisões, por evidente, pôs em xeque o elemento orgânico do serviço público (Odete Medauar, op. cit., 1992, p. 106).

140 RIVERO, Jean. O Regime das Empresas Nacionalizadas e a Evolução do Direito Administrativo. Revista de Direito Administrativo (RDA), Rio de Janeiro, nº 49, p. 44-68, jul./set. 1957, p. 61.

141 Ou, mais precisamente, a atividade destinada à regulação do setor privado com o emprego do poder da

autoridade pública, no que desponta a Administração Ordenadora (SUNDFELD, Carlos Ari. Direito

Administrativo Ordenador. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 16-17).

142 GORDILLO, Agustín. Tendencias del derecho administrativo. Revista de Derecho de la Universidad del Norte (RD), Barranquilla, nº 03, p. 90-105, enero./jun. 1994, p. 98-99.

143 CHEVALLIER, Jacques. A reforma do Estado e a concepção francesa do serviço público. Revista do Serviço Público (RSP), Brasília, ano 47, vol. 120, nº 3, p. 34-57, set./dez. 1996, p. 36.

Salienta-se, também, uma questão ainda inconclusa e bem destacada por François Burdeau144: a noção de serviço público145 passou a ser cambiante e indivisa no Direito Administrativo146, haja vista a dificuldade de delimitá-la em face das atividades desenvolvidas diretamente pelo Estado ou prestadas através de delegação aos particulares, sem falar nos moldes em que se operam a prestação dos serviços.

Ademais, com a crise financeira do Estado, decorrente, em grande parte, das enormes demandas geradas pelo intervencionismo social, que marcou a atuação estatal na segunda metade do século passado, ressurgiu em importância a concessão de serviço público147, no que se revela o recrudescimento do capital privado na promoção das políticas públicas, fazendo com que as velhas vias de controle e de operacionalidade da concessão de serviço público não se coadunassem com as exigências da necessária dinâmica da gestão pública hodierna.

Sobremais, a crise do Direito Administrativo não pode ser compreendida, tão-somente, pelas adversidades na consecução dos serviços públicos, mas, também, e não menos importante, na forma como se empreende a relação jurídica administrativa entre o Estado e o cidadão e, nesse ponto, um abismo separa a luzes dos textos constitucionais de caráter democrático com as práticas autocráticas da maioria dos gestores públicos. Tal fato, por si só, já demanda uma necessária reavaliação do modo operativo de toda a Administração Pública.

Assim, a crise do Direito Administrativo mais que a superação de entraves quanto a sua identidade, tendo em vista a clara insurgência do Direito Privado, se prende mais a uma destacada importância de aquilatar meios para promover uma gestão pública que viabilize o atendimento dos fins constitucionais, ainda que diversos, como proposta material exigível, porém sem perder a cogência de uma Administração Pública democrática.

Nesse sentido, a configuração democrática da Administração Pública exige (a) a participação dos cidadãos na gestão da atividade administrativa e nos processos decisórios que lhes afetem direta ou indiretamente, (b) a aproximação dos serviços públicos à sociedade civil e (c) a desburocratização administrativa148.

Em outras palavras, a democracia não pode ser vista apenas sob uma perspectiva política, há também que ser perquirido o seu sentido na consecução da atividade

144 François Burdeau, op. cit., 1995, p. 473 e segs.

145 Não se pode perder de vista que a Administração se ocupa primordialmente na prestação de serviço, logo,

vicissitudes na sua consecução gera invariavelmente repercussão no Direito Administrativo.

146 E isso perdura até os nossos dias, inclusive com o acentuado problema relativo às privatizações no caso

brasileiro (Maria Sylvia Zanella Di Prieto, op. cit., 2005, p. 50-51).

147 JUSTEN FILHO, Marçal. As Diversas Configurações da Concessão de Serviço Público. Revista de Direito Público da Economia (RDPE), Belo Horizonte, ano 01, nº 01, p. 95-136, jan./mar. 2003, p. 95.

148 OTERO, Paulo. Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa. Coimbra: Coimbra Editora, 1992,

administrativa; portanto, impõe-se o seu descortinar na senda administrativa, na qual a função administrativa, como exercício de poder, não pode revelar-se alheia aos imperativos democráticos do nosso tempo e, muito menos, olvidar a exigência de uma gestão eficiente dos recursos públicos.

Numa palavra: impõe-se a existência de práticas ou medidas democráticas na atividade administrativa, assim como a exigência de uma atuação eficiente dos agentes públicos; logo, a atuação administrativa deve corresponder a uma equação operativa que permita a existência de democracia administrativa149 e eficiência funcional no âmbito da Administração Pública.