• Nenhum resultado encontrado

2 A CONSTRUÇÃO DO MÉTODO COMO UM ENTRE-LUGAR

3 JUVENTUDES E VIOLÊNCIAS: “ADOLESCENTES JOVENS RESISTENTES” E “POLICIAIS QUE DÁ ATÉ PRA FALAR”

3.1. Adolescentes jovens: sujeitos ou objetos?

Afinal, o que é ser jovem? Quando começa a juventude, a adolescência se despede, como num “passe de mágica”? A juventude é apenas uma transição para a vida adulta? É possível falar em uma única juventude? Se considerarmos a juventude como a faixa etária entre 15 e 29 anos – como determina o Estatuto da Juventude -, podemos afirmar que quase 30% da população brasileira é jovem, o que representa um contingente de 52,2 milhões de pessoas (IBGE, 2010).

A título das políticas públicas voltadas para este segmento social, convencionou-se classificar a faixa etária entre os 12 e 18 anos para designar a adolescência48 e para a juventude, aproximadamente entre os 15 e 29 anos de idade, subdivididos em três grupos etários: 15 a 17 anos (adolescentes jovens), 18 a 24 anos (jovens jovens) e 25 a 29 anos (jovens adultos)49.

46 V. Cap. III: “Adolescentes jovens resistentes” e “Policiais que dá até pra falar”: onde trajetórias se cruzam. 47 Abramovay (2002 ; 2007); Gurski (2012); Novaes (2008); Margulis, Urresti (1996).

48 V. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

49O parâmetro etário da juventude mais usado, a nível internacional, é o da Organização Nacional da Juventude:

62

Definir adolescência e juventude, no entanto, não é simplesmente indicar a faixa etária que a representa, mas reconhecer as diferenças e desigualdades que atravessam essa condição (MARGULIS; URRESTI, 1996). Alguns autores50 vão alertar para o imbricamento entre o conceito de adolescência e de juventude e também para flexibilidade no trato destes conceitos. Cecília Coimbra, Fernanda Bocco e Maria Lívia do Nascimento (2015) defendem o uso do termo juventude, pois, para as autoras, o conceito de adolescência está enraizado em concepções cartesianas racionalistas-desenvolvimentistas que criam uma “identidade adolescente” muitas vezes pautada na cristalização de estereótipos que associam a adolescência à instabilidade, desequilíbrio e vulnerabilidade. Estereotipação que ganha contornos ainda mais definidos quando tratam-se de adolescentes pobres, moradores de periferias.

Pablo Ornelas Rosa (2013) chama a atenção para o fato de que a infância e a adolescência, enquanto categorias sociais, nem sempre existiram, o que existem são as fases biológicas atravessadas por todos os seres humanos. O que é reforçado por Ângela Cristina Fagundes Góes (2006) quando destaca que o termo adolescência surge no início do século XX nos Estados Unidos e foi concebido como uma etapa da vida humana, a partir do reconhecimento de que em determinado tempo etário o ser humano passa por mudanças físicas e psíquicas que o distinguem da infância e precedem o mundo adulto.

Entendemos a juventude como uma categoria sociológica que compreende desde o período de maturidade fisiológica até a maturidade social, abarcando, assim, também o conceito de adolescência. Segundo Mario Margulis e Marcelo Urresti (1996) o conceito de juventude é uma condição constituída pela cultura, mesmo que com base material vinculada à idade, que delimita um momento determinado, uma fase em que as mudanças são de diversas ordens (físicas, psicológicas, sociais): o corpo passa por transformações, os afetos mudam, as responsabilidades aumentam e a maneira como os jovens são vistos e tratados no âmbito das relações sociais também.

A juventude não deve ser entendida como uma “identidade cristalizada”, pois, como define Stuart Hall (1999), a identidade é uma celebração móvel formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.

Conselho Nacional de Juventude e o Estatuto da Juventude (Lei 12.852/2013), estabelecem a faixa etária de 15 a 29 anos e especificam estas subdivisões. Optamos, neste estudo, pela adoção deste parâmetro.

63 A identidade, na concepção sociológica, preenche o espaço entre o ‘interior’ e o ‘exterior’ – entre o mundo pessoal e o mundo público. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis (HALL, 1999, p. 12).

Não se trata apenas de uma passagem, uma preparação para se tornar adulto, é um momento que tem sua importância em si, no qual “se vive de forma mais intensa um conjunto de transformações que vão estar presentes, de algum modo, ao longo da vida” (DAYRELL, 2003, p. 42). A percepção do jovem como um “vir a ser” carrega uma negatividade que traz consequências na forma como o “mundo adulto” o enxerga e o trata, seja no espaço da família, da escola, seja no âmbito das políticas públicas voltadas para este segmento social.

Sob esta percepção, o adolescente e o jovem estão sempre em condição de subalternidade ao adulto na hierarquia social. O conceito “juventude” é acima de tudo uma representação, uma demarcação de poderes, como ressalta Bourdieu (1983a, p.152) ao afirmar que as “as classificações de idade equivalem sempre a dar limites e a produzir uma ordem a qual cada um deve se ater, na qual cada um deve manter-se no seu lugar”.

Para Regina Novaes (2008), a condição juvenil e seus ritos de passagem são vivenciados de formas diferenciadas em função da origem social; dos níveis de renda; das disparidades socioeconômicas entre campo e cidade, ou entre regiões do mesmo país; das desigualdades de gênero, de preconceitos étnico-raciais. Os jovens também se distinguem em termos de orientação sexual, gosto musical, pertencimentos associativos, religiosos, políticos, de grupos etc. Afinal:

Olhada como fase natural da vida, a “juventude” é tratada como um segmento populacional bem definido, suposto como universal. No entanto, os limites etários e as características de cada uma das “idades da vida” são produtos históricos, resultados de dinâmicas sociais mutantes e de constantes (re)invenções culturais (NOVAES, 2008, p. 3).

Por serem vistos nesta condição transitória, os adolescentes e jovens foram sendo colocados ao longo da história como objetos das políticas públicas. Na perspectiva da

64

abordagem antropológica é em 1973 que se tem o registro do primeiro estudo, no Brasil, que aponta os problemas da juventude e não a juventude como um problema51.

No âmbito das políticas públicas, apenas na década de 1990 a juventude passa a surgir como questão na agenda política do país, tendo como marcos legais desse processo de mudança de paradigma a promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988 e aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)52 –, em 13 de julho de 199053. É a partir do ECA que os adolescentes começam a ser reconhecidos como sujeitos de direitos.

[...] o tratamento dado à infância e juventude de nosso país esteve sempre acompanhado do sentido de caridade ou repressão aos desassistidos, pois quando as mesmas são vistas como “coitadinhas” recebem cuidados assistencialistas; quando são vistas como “perigosas”, recebem punição e dificilmente são reconhecidas como crianças e jovens cidadãos (SILVA, 2005, p. 17-18 apud ROSA, 2013, p. 30).

Notam-se avanços no que se refere à efetivação de políticas públicas voltadas para a garantia de direitos dos jovens. Nesta perspectiva, é importante ressaltar a aprovação da Lei Nº 12.852, de 5 agosto de 2013, que institui o Estatuto da Juventude54 e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude (Sinajuve), bem como a ampliação das pesquisas acadêmicas sobre o universo juvenil.

Com relação à juventude negra, especificamente, vale destacar a Lei Nº 12.288, de 20 de julho de 2010 que institui o Estatuto da Igualdade Racial. Importante ressaltar também que durante a primeira Conferência Nacional de Juventude, em 2008, o enfrentamento ao genocídio da juventude negra foi eleita questão prioritária pelos participantes. Dentre as ações

51 “Delinquência juvenil na Guanabara: uma introdução sociológica” é considerado o primeiro estudo sociológico

sobre o tema, sob a perspectiva da abordagem os problemas da juventude. Foi um estudo encomendado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Guanabara (MISSE et al, 1973 in LYRA, 2013).

52 Lei 10.369,de julho de 1990.

53 Até a promulgação do ECA estava em vigor o Código de Menores (Decreto nº 17943-A, de 12 de outubro de

1927) no qual a criança merecedora de tutela do Estado era considerada "menor em situação irregular".

54 O Estatuto da Juventude foi instituído através da Lei 12.582, de 5 de agosto de 2013, e entrou em vigência em

02 de fevereiro de 2014. Dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude - SINAJUVE. O Estatuto determina quais são os direitos dos jovens que devem ser garantidos e promovidos pelo Estado brasileiro, independente de quem esteja à frente da gestão dos poderes públicos. Foi criada a Secretaria Nacional de Juventude e o Conselho Nacional de Juventude, vinculados à Secretaria Geral da Presidência da República.

65

do governo federal voltadas para o enfretamento da violência contra este segmento, destaque para o Plano Juventude Viva – Plano de Prevenção à Violência Contra a Juventude Negra55.

Em paralelo a estas conquistas, no entanto, os indicadores de violência aumentam e os adolescentes e jovens moradores de comunidades periféricas pobres são as maiores vítimas da criminalidade no país. Ainda é longo o caminho para que consigam “crescer um homem inteiro, muito mais do que a metade”, como narra o rapper carioca Emicida (2013). “A violência, tendo os jovens como vítimas ou agentes, está intimamente ligada à condição de vulnerabilidade social destes indivíduos” (ABRAMOVAY, 2002, p. 33).

A estrada é longa para que possam, portanto, exercer o seu papel de sujeito social. Aqui entendido, na perspectiva de Charlot (2000, p. 33 e 51 apud Dayrel, 2003), para quem o sujeito é um ser social, com uma determinada origem familiar, que ocupa um determinado lugar social e se encontra inserido em relações sociais. É um ser singular, que tem uma história, que interpreta o mundo e dá-lhe sentido, assim como dá sentido à posição que ocupa nele, às suas relações com os outros, à sua própria história e à sua singularidade. Importante, também, identificar o jovem como sujeito social do presente e não o sujeito que “virá a ser”, como se sua existência social estivesse condicionada a alcançar a condição de adulto.

O papel de sujeito social é ainda mais difícil de ser exercido no que se refere aos adolescentes jovens moradores de territórios violentados. Uma vez que:

O não-acesso a determinados insumos (educação, trabalho, saúde, lazer e cultura) diminui as chances de aquisição e aperfeiçoamento desses recursos que são fundamentais para que os jovens aproveitem as oportunidades oferecidas pelo Estado, mercado e sociedade para ascender socialmente (ABRAMOVAY, 2002, p. 33).

Para Rose Gurski (2012), a desvalorização da experiência como produtora de subjetividade pode ser considerada um fator de estímulo ao uso de drogas e à lógica do consumo excessivo entre os adolescentes jovens. A violência funciona neste sentido como um ato simbólico, um suporte de reconhecimento que não aconteceu por outras vias.

Ou seja, para além da pobreza e da dimensão da sobrevivência, há um movimento de rompimento com o processo de marginalização social para que sejam reconhecidos como sujeitos. Para Soares (2004), muitos jovens se inserem ativamente nas dinâmicas da

55Concebido pela Secretaria Nacional de Juventude, da Secretaria Geral da Presidência da República, e pela

Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, o Plano Juventude Viva inclui mais de 30 ações baseadas na educação, saúde, cultura e qualificação profissional para reduzir a exposição do jovem negro à violência, conforme explicou a então secretária nacional da juventude, Severine Macedo. Serão priorizados os municípios onde a população negra se encontra mais vulnerável, com foco inicial na Região Metropolitana.

66

criminalidade numa tentativa de restaurar o déficit de sentido que vivem em seus cotidianos, seja por experiências de rejeição em casa, seja pelo abandono social do poder público.

Cenário que contribui para o aumento da vitimização violenta dos adolescentes jovens. O Brasil aparece em sexto lugar no ranking que compara 100 países que registraram taxa de homicídios, entre 2008 e 2012, para cada grupo de 100 mil habitantes. Fica atrás de El Salvador, Colômbia, Venezuela, Guatemala e Ilhas Virgens. Em 201256, 112.709 pessoas morreram em situações de violência no país, número que equivale a 58,1 habitantes a cada grupo de 100 mil57.

De acordo com dados do Mapa da Violência (2014), a principal vítima de homicídio no Brasil é o jovem negro, do sexo masculino, oriundo de classes urbanas pobres. Entre 2002 e 2012 as taxas de homicídios de brancos diminuíram 24%, enquanto que as de homicídios de negros aumentaram 7,8%. Assim, o índice de vitimização de jovens negros, que em 2002 era de 79,9 sobre para 168,6: para cada jovem branco assassinado, morreram 2,7 jovens negros.

O panorama nacional apresenta uma taxa de homicídio entre jovens negros 155% maior do que a de jovens brancos. Em todos os estados brasileiros, exceto o Paraná, os negros, que incluem pretos e pardos, com idade de 12 a 29 anos, correm mais risco de exposição à violência, ou seja, estão mais vulneráveis que os brancos na mesma faixa etária. A região Nordeste é apontada como a que tem a maior distância entre a taxa de homicídios de jovens negros e brancos. Em 2012, foram assassinados 87 negros para cada grupo de 100 mil jovens negros na região, contra 17,4 jovens brancos para cada grupo de 100 mil jovens brancos58.

A Bahia aparece em 11º lugar no ranking dos estados brasileiros com maior risco relativo de um jovem negro ser vítima de homicídio em relação a um jovem branco. Quando comparado aos estados nordestinos, a Bahia ocupa o terceiro lugar, com uma taxa de 104,9 homicídios de jovens negros contra 29,7 homicídios de jovens brancos (para cada 100 mil habitantes). O cenário da região Nordeste é apresentado na tabela abaixo59.

56Os dados são do Mapa da Violência Mapa da Violência 2014: Homicídios e Juventude no Brasil. Disponível

em <http://www.mapadaviolencia.org.br>. Acesso em: 10 mar. 2015.

57 Desse total, 56.337 foram vítimas de homicídio, 46.051, de acidentes de transporte e 10.321, de suicídios. 58 Mapa da Violência 2014: Homicídios e Juventude no Brasil. Rio de Janeiro, 2014. Disponível em:

<http://mapadaviolencia.org.br >. Acesso em: 10 mar. 2015.

59Os dados são do Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial 2014. O relatório –

divulgado no dia 07 de maio de 2015 - é resultado de parceria entre a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ) da Presidência da República, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Ministério da Justiça e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil. O IVJ – Violência e Desigualdade Racial será utilizado para orientar políticas públicas de redução da violência contra jovens no país. Agrega dados relativos às dimensões: taxa de frequência à escola, escolaridade, inserção no mercado de trabalho, taxa de

67 Tabela 2. Homicídios de Jovens na Região Nordeste

Taxa de Homicídio de Jovens na Região NE (por cem mil habitantes)