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2 A CONSTRUÇÃO DO MÉTODO COMO UM ENTRE-LUGAR

2.2 Percurso Metodológico: abrir frestas sem fechar ferrolhos

2.2.7 Surpresas, desafios, atravessamentos e (des)construções do campo

As semelhanças nos discursos de adolescentes jovens e policiais iam aparecendo a todo momento e mostravam-me a necessidade de rever o meu objeto de pesquisa. Precisei (des)construir o lugar previamente estabelecido para os policiais na pesquisa. Inicialmente, a escolha por começar o grupo de discussão com a pergunta “o que é ser policial?” fez parte de uma estratégia de estreitamento de vínculo, de criação de confiança com o grupo, de mobilização para uma causa comum.

No entanto, ao longo do processo, a interação com os sujeitos participantes me fez perceber que necessitava, de fato, escutar e analisar as suas trajetórias para compará-las com as trajetórias dos adolescentes jovens. Inicialmente, acreditava que escutá-los era uma forma de fortalecer o vínculo pesquisadora-pesquisados, para adentrar no meu problema de pesquisa de forma mais contundente, mas foi o processo em campo que me revelou que o meu problema de pesquisa era justamente o cruzamento das trajetórias, onde se evidenciavam os pontos de vista dos sujeitos.

A pesquisa foi marcada também por uma série de atravessamentos que me fizeram rever e redirecionar as formas e os instrumentos metodológicos utilizados. Implicar-se na investigação foi, portanto, imergir/emergir nestes/destes atravessamentos. Muitas das atividades previstas não foram realizadas. Algumas, por questões de ordem prática, que trouxeram importantes elementos para compreensão da vivência da condição juvenil em Itinga, como greves de ônibus que impedia os adolescentes de chegarem à sede do CRAS. A falta de lanche ou o adoecimento do vigilante também impossibilitaram algumas atividades pré-agendadas no espaço.

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Tive também que adaptar as atividades às possibilidades oferecidas: pouca privacidade com os adolescentes, muito barulho e muitos elementos dispersivos, bem como a exigência de finalizar pontualmente a atividade às 16h, o que por vezes interrompeu alguns importantes processos. Lidei também com a oscilação na participação do grupo: ao final, cinco adolescentes jovens permaneceram na pesquisa, mas em algumas atividades tivemos a participação pontual de outros meninos e meninas.

Com o grupo de policiais, não houve mudança no perfil do grupo. Os soldados que começaram a pesquisa ficaram até o final do processo. No entanto, a dificuldade em conciliar a escala de trabalho deles impossibilitou que o número previsto de encontros fosse realizado, o que exigiu uma adaptação da metodologia prevista. Outras intercorrências também evidenciaram as dinâmicas de funcionamento da instituição militar, essencialmente hierárquica e disciplinar. Apresento uma cena descrita no diário de campo como exemplo:

A roda de diálogo temática havia sido agendada pela soldado integrante do grupo de pesquisa. Os policiais estavam avisados e haviam sido liberados para participar da atividade. Chegamos – eu e Nena – à sede da Base. Um soldado nos recebeu e pediu que esperássemos na recepção. Me chamou a atenção um livro de sociologia que estava em cima da mesa. De dentro de uma das salas escutava uma música de ópera tocando. A soldado veio falar com a gente. Parecia um pouco nervosa. Mas, apenas pediu que esperássemos um pouco. Observei que os outros soldados do grupo chegaram e entraram na sala de informática, onde fazemos os encontros da pesquisa. Depois de mais de vinte minutos de espera, o comandante da área – que eu não conhecia – chega até nós. Estamos sentadas. Não deu tempo de levantar. Ele se posiciona exatamente na minha frente. O cano de sua arma está na altura dos meus olhos. Ele pergunta: - “o que é que vocês vieram fazer aqui?”. – Uma pesquisa da UFBA, respondo. – Sobre o quê?, indaga. – Violência em Itinga, comandante. Ele para, olha para fora e me diz: “volte outro dia, para não atrapalhar as ocorrências. Nossos problemas aqui são sérios. Tenho um policial agora na rua reconhecendo um corpo, outro investigando o caso de uma adolescente que foi sequestrada aqui na nossa área de atuação”. – Boa sorte nas operações, comandante. Volto outro dia, disse. E fomos embora (Diário de Campo, Itinga, 15 de maio de 2015).

O dia em que iniciamos a construção das diferentes formas de ser jovem em Itinga também foi bastante confuso. Sirenes que não paravam de ecoar. A porta da sala era constantemente aberta e os soldados chamados para sair da sala. Tive que finalizar a atividade, pois percebi que mesmo que houvesse por parte dos soldados um desejo em continuar, por parte do superior responsável pelo comando naquele dia a ordem era para que os soldados voltassem para suas funções.

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Outro atravessamento que me acompanhou durante toda a pesquisa foi o fato de ser mulher, mulher jovem e mulher branca. Mulher que dentro da sala de informática – onde realizamos todas as atividades da pesquisa – estava sob o comando da ação. O que aconteceu em um ambiente – o da Polícia Militar – majoritariamente masculino, disciplinador e hierárquico, no qual as marcas da nossa estrutura patriarcal – onde a mulher é reforçadamente representada ora como objeto de desejo, ora como objeto de dominação – ficam ainda mais evidenciadas pela cultura militar.

Desafiei-me, no entanto, a acessar um masculino enrijecido, “potencialmente enjaulado”, nas palavras do soldado Léo. Um masculino desumanizado: “somos treinados o tempo inteiro para sermos pitt-bulls e agora vocês querem que a gente seja poodle?”42. O recurso da ludicidade e de metodologias participativas foi o caminho que encontrei para facilitar esse acesso e para conseguir me colocar disponível para tal função, lidando constantemente com os meus próprios “monstros” e reproduções sociais.

Inquietações que ao mesmo tempo paralisavam e me obrigavam a repensar o meu lugar. O que estava fazendo ali mesmo? O que esperava escutar dos policiais: relatos cruéis de torturas a jovens negros moradores de Itinga? E, com os jovens, o que eu queria: reforçar o seu lugar de vítima? Fazê-los expor as suas individualidades, os seus medos, o seu ódio pela polícia? Não, eu queria ir além. Mas, como?

Muitas vezes, sentia-me rodando em círculos, dando voltas e mais voltas que pareciam não me levar a lugar nenhum. Deparava-me com as minhas próprias construções sociais que determinavam as representações que fazia do território onde estava e de seus sujeitos. Partilhei essa inquietação com os adolescentes jovens em um determinado encontro e eles me ajudaram a ver o quanto tinha de importantes pistas nos movimentos que fazia.

Compreendi que para perceber quais são os rótulos e estigmas que acompanham o “ser jovem morador de bairros populares”, foi preciso antes de tudo estranhar essas construções para externalizar e divulgar outras formas possíveis de ser, para além de rótulos pré- concebidos pela mídia, pela família, pela escola, pela igreja, dentre outras instituições que participam da construção e cristalização de imaginários estigmatizados.

Não me sentia tão confortável para revelar essas inquietações com os policiais, até que fui provocada por Léo quando o entrevistava individualmente para que o explicasse como narraria os pontos de vista dele e como transformaria tudo aquilo em conhecimento científico

42 Frase dita por um soldado da Polícia Militar durante oficina de capacitação em Policiamento Comunitário

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e arrematou: “existem dois tipos de pesquisadores: o pesquisador pró-polícia e o contra- polícia”. Provocação que me fez fechar o caderno com o roteiro de entrevistas para conversarmos sobre o processo de construção de uma dissertação, sobre o método que estava utilizando e seus pressupostos teóricos. Falei para ele também sobre a impossibilidade de uma narrativa que não fosse engajada, implicada e que revelasse o meu lugar de fala e lembrei-me de Cicília Peruzzo quando diz:

Um questionamento pode conter perguntas incompreendidas, o que gera respostas duvidosas. Pode também forçar o entrevistado a se posicionar sobre questões que a pessoa ainda não tem opinião formada ou informação suficiente para poder dar repostas fidedignas. Segundo, porque [...] nenhum pesquisador está imune a valores, ideologias e posições políticas, que de algum modo perpassam suas escolhas teóricas e metodológicas e as interpretações de dados (PERUZZO, 2003, p. 5).

Ao longo de todo o processo – na definição dos sujeitos da pesquisa, na condução dos grupos focais, rodas de diálogo e entrevistas individuais, análise dos dados e escrita – sempre me fiz a mesma pergunta: qual o limite entre o engajamento, o ativismo e a ciência? Estou conseguindo conduzir o processo com um olhar que vá para além das minhas ideologias? Este foi o grande desafio e também um grande aprendizado. Afinal, como bem destaca Peruzzo (2003, p. 19):

Do pesquisador engajado espera-se maturidade intelectual suficiente para processar sua investigação com base em hipóteses ou questões de pesquisa sustentadas em teorias e, ainda, que possa captar os movimentos do fenômeno tais como são, portanto, distanciando-se de suas idiossincrasias e de um olhar parcial, superficial ou falso da realidade, o que em absoluto significa acreditar na possibilidade de neutralidade na ciência.