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2 A CONSTRUÇÃO DO MÉTODO COMO UM ENTRE-LUGAR

2.2 Percurso Metodológico: abrir frestas sem fechar ferrolhos

2.2.5 a Rodas de diálogo

Para começar a problematizar os três eixos centrais da pesquisa: juventude, violência e território e fazer emergir as categorias de análise, utilizei rodas de diálogo temáticas, tendo como foco a observação da interação entre os participantes na relação com o outro, como já dito anteriormente. As rodas foram orientadas por questões geradoras e imagens disparadoras. Selecionei um conjunto de dez fotografias (as mesmas para os dois grupos) para provocar o

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debate39. As imagens trazem conteúdos ligados à identidade do jovem; a invisibilidade do jovem negro; a violência urbana e a abordagem policial. As fotografias utilizadas foram um convite à reflexão sobre os códigos visuais estabelecidos e, mais além, a reflexão sobre a possibilidade de fazer múltiplas interpretações sobre um mesmo código. Uma vez que “a incapacidade de ter uma sacação sua não é a perda da sua subjetividade, mas a incorporação a esta de conceitos que confirmam estereótipos” (EDÍSIO FERREIRA JÚNIOR, MEDEIROS, 2005, p. 217).

Debater a temática da violência por meios de imagens vai ao encontro também da necessidade de refletir sobre a influência dos meios de comunicação de massa na construção dos imaginários sociais e de como a velocidade na apreensão de conteúdos e construção de sentidos interfere nessas construções. O discurso da violência – proliferado nos meios de comunicação massivos – é um “discurso autorizado” (CHAUÍ, 2008) que é assimilado e reproduzido, contribuindo para a difusão de representações estigmatizadas acerca das comunidades periféricas e dos seus moradores. O que corrobora com Tânia Cordeiro (2001) quando afirma que o jornalismo reforça padrões de comportamentos entre indivíduos e instituições e põe em prática valores, processos e hierarquias que definem o que é crime, quem são os criminosos, as vítimas e quais as soluções para o problema.

Durante as rodas de diálogo, tanto os jovens quanto os policiais tendiam a reagir com algumas “frases prontas” para resumir a imagem e esperavam a minha aprovação para saber se tinham feito a “leitura correta”. Mais de uma vez tive que reforçar que a ideia era que falassem livremente sobre o que as imagens provocavam neles, sem preocupação com acertos. Interessante como essa postura foi comum e recorrente em ambos os grupos. Aos poucos, provocados pelos outros participantes, foram fazendo outras leituras e expressando outras opiniões – às vezes até contrariando as falas iniciais – sobre o tema disparado pela imagem. Durante as rodas, interferi o mínimo possível, deixando que o grupo conduzisse a discussão. Afinal, o que me interessava era justamente o jogo de disputa de sentidos que se instaurou a partir das leituras feitas pelos sujeitos das imagens apresentadas.

Neste sentido, vale ressaltar o papel desempenhado pela soldado Maia. Com um discurso bastante articulado, muitas vezes foi ela quem provocou os colegas a refletir sobre as “respostas prontas” às imagens apresentadas que – em muitos momentos – reproduzia uma visão sobre o jovem pobre como aquele que precisa ser contido, controlado, num reforço a associação direta entre pobreza e criminalidade. Com seus questionamentos, Maia possibilitou

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que os colegas atentassem para as questões estruturais da sociedade brasileira e enxergassem o fenômeno complexo da violência urbana para além das lentes estigmatizantes, levando-os a modificar, ou ao menos, ponderar alguns dos seus argumentos iniciais. No grupo dos adolescentes jovens, foi Cristopher quem assumiu esse papel, fazendo perguntas aos demais que os fizeram refletir sobre seus próprios julgamentos, premissas e crenças. Importante ressaltar que em ambos os casos a provocação foi feita por um par, um deles, e não por mim, a pesquisadora, inserida em outros espaços simbólicos. O que garante justamente a possibilidade de interação.

As rodas de diálogo possibilitaram, também, a reflexão crítica acerca dos temas trabalhados e o sentimento de vinculação com a problemática apresentada e com sua resolução: a ideia de que sou eu quem, em alguma medida, sou responsável por acender ou desligar o interruptor, o elemento disparador daquele diálogo.

Algo interessante ocorreu junto aos meninos e meninas, após a realização das rodas: eles se sentiram à vontade para trazer para os encontros suas próprias imagens: fotos e vídeos que tinham nos seus celulares, matérias de jornais etc. Em uma das imagens trazidas por Tí, via-se, na tela do seu celular, a fotografia de um tênis com manchas de sangue. A história que acompanhou a imagem foi narrada por ele e por Cristopher:

Foi num domingo, no Largo do Caranguejo, a praça tava bem movimentada. A polícia chegou, foi direto em um grupo de meninos que tava lá, pegou um deles e começou a bater na cara. Na frente de todo mundo. Bateu tanto, que tirou muito sangue. Um homem tentou impedir, falou com o policial que mandou ele se afastar. Era amigo de um amigo nosso. A gente sabe quem foi o menino. Foi lá da rua. Mesmo que fosse envolvido, precisava bater daquele jeito? Precisava?

As práticas comunicativas adotadas enquanto método de pesquisa com policiais interferiram também na criação de um espaço de escuta, reivindicado pelos policiais logo no nosso primeiro encontro. “Aqui podemos escutar o colega, entender melhor sua forma de agir e de pensar e, quem sabe, né, até mudar a nossa”, disse um dos soldados durante a avaliação de uma das rodas de diálogo temáticas.

Para além do poder falar, saber ouvir exige muita sensibilidade do pesquisador para disparar o dispositivo de fala no outro. Em experiências na área de segurança pública essa qualidade é ainda mais importante, uma vez que se trata de um terreno em que estruturas tradicionalmente rígidas dificultam o diálogo entre os operadores das políticas. São agentes sistematicamente silenciados, que não acreditam que suas falas podem contribuir para a construção de conhecimentos. Para Henriques (2010), isto decorre das características

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organizacionais peculiares das agências policiais, em especial da militar: caráter rígido e fortemente corporativo, pouco transparente e historicamente pouco sensível às demandas cívicas de proteção.

Com os jovens, pude notar um processo recorrente de comprovação da minha parte de que suas falas estivessem corretas, como ilustra este trecho de uma conversa que tive com o grupo no momento final de nossa primeira roda de diálogo:

[Ruth] - Professora, as coisas que a gente falou, tá certo pra você?

[Bruna] - Se tá certo? Eu não sei o que é certo. Eu acho que tá certo porque é o que vocês vivem. É o que vocês acreditam. É a realidade de vocês. Então é o que vocês estão vivendo.

Ao longo do processo, com o fortalecimento dos vínculos entre pesquisadora e sujeitos pesquisantes, eles foram reconhecendo o próprio lugar no estudo e essa necessidade de legitimação da fala foi se dissolvendo. É possível, neste sentido, ressaltar um ponto de conexão entre os soldados e os adolescentes jovens participantes da pesquisa: apesar dos distintos lugares sociais que ocupam, passam pelo mesmo processo de silenciamento de vozes não- autorizadas, de vozes subalternas, aquelas que têm suas peculiaridades recorrentemente silenciadas.

Processo que a indiana Gayatri Spivak (2010) vai chamar de “violência epistêmica do cotidiano”. Para a autora, a impossibilidade de fala do subalternizado decorre das formas pelas quais os sujeitos do chamado “terceiro mundo” são representados pelos discursos hegemônicos. As heterogeneidades são apagadas para que representações de discursos, olhares, saberes únicos sejam reproduzidas. Opera-se, portanto, uma violência que deslegitima o conhecimento e a possibilidade de se autorrepresentar da população subalternizada.