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4 “ADOLESCENTES JOVENS RESISTENTES” E “POLICIAIS QUE DÁ ATÉ PRA FALAR”: ONDE AS TRAJETÓRIAS SE CRUZAM

4.7 Maia: “nosso olhar é treinado para abordar”

[Maia] Tudo bem? Sou Maia. E vou apoiar o Capitão nas atividades da pesquisa.

[Bruna] Muito prazer, Maia. Tenho certeza que vamos fazer um trabalho muito bacana. Agradeço desde já pela colaboração.

Comecei o diálogo com Maia antes de compormos o grupo da pesquisa. Ela foi indicada pelo Capitão da Base para ser a pessoa de referência durante o trabalho de pesquisa. O primeiro encontro foi feito com ela e com o Capitão. Logo de imediato, notamos duas identificações: éramos mulheres, em um espaço majoritariamente masculino e éramos universitárias, ambas em cursos de Ciências Humanas.

Foi Maia quem organizou as escalas dos policiais e possibilitou que os encontros acontecessem. Com ela dialoguei sobre os rumos da pesquisa, apresentei os primeiros resultados, pensamos juntas em estratégias para redirecionar as atividades previamente planejadas, sempre que algum imprevisto ocorria. A comunicação era bastante rápida e facilitada pelas redes sociais. O uso da ferramenta WhatsApp cumpriu um papel interessante no processo de pesquisa. Através dela foi possível estabelecer comunicações diretas, evitando que algumas burocracias hierárquicas atrapalhassem o fluxo dos encontros. Houve, também, uma maior horizontalidade nas comunicações, o que auxiliou na formação de vínculos entre pesquisadora e sujeitos pesquisantes.

A entrevista individual foi feita na sala da coordenação do setor de projetos da Base. Ao lado da mesa com o computador, empilhavam-se muitos presentes que seriam entregues às crianças do bairro na festa do Dia das Crianças que estava sendo organizada pelos policiais. Havia um clima leve na entrevista, sem tensão. Em alguns momentos, éramos interrompidas por soldados que entravam na sala para buscar alguma coisa, ou fazer alguma pergunta a soldado. O Capitão entrou em um determinado momento e me disse para ficar à vontade para realizar o trabalho.

Maia era a única mulher do grupo. Entre o efetivo da Base, era ela e mais uma soldado, num conjunto de cerca de 80 policiais. Com 32 anos, tem seis anos na corporação. Nasceu e

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viveu em um bairro da periferia de Salvador até os 28 anos, quando casou. Não tem filhos. Antes de casar morava com os pais e dois irmãos. O pai, mestre de obras e a mãe concluiu o Ensino Médio, mas não cursou o ensino superior, pois assumiu os cuidados da casa e dos filhos. Maia estudou em uma escola particular do bairro onde morava e o Ensino Médio cursou na rede pública de ensino. Graduou-se em Sociologia e chegou a lecionar, mas deixou a função quando foi aprovada no concurso da Polícia Militar da Bahia e decidiu prestar.

Sobre a infância, Maia diz que tem saudade porque naquela época as crianças eram mais livres, brincavam na rua e que não havia uma sensação de insegurança como a que se tem nos dias atuais: “a principal diferença era poder brincar na rua. Era a possibilidade de ter amigos fora da escola, hoje você vive murado”. Recorda:

Eu brincava de tudo, de bola, de gude. Eu tinha gude, brincava de tudo, sem preconceito. Menino empinava arraia e outras brincadeiras que existiam. Os adultos participavam desse processo, para ensinar as músicas que os avós cantavam. A gente tinha esse contato com o mundo adulto para além do pai e da mãe. Tinham muitas festas na rua, dia das crianças era comemorado. E isso faz parte da construção da sua identidade, de pertencer ao espaço, de respeitar aquele espaço. Isso pra mim é importante pra formação e se perdeu muito (Entrevista Policial 4 – MAIA, 2015).

Reforça também a importância da estrutura familiar na construção dos valores das crianças e destaca que em sua casa teve uma “criação rígida, mas não tão severa” e atribui a este modelo de educação recebida em casa o fato de ter conseguido se estruturar, escolher uma profissão e ter sua independência financeira.

Lembro que minha mãe era muito rígida, mas foi até bom. Hoje quando eu lido com os pais dos alunos que a gente atende, eles não conseguem acompanhar o seu filho, não olham o material escolar, não olham o caderno, não verificam, não fazem o acompanhamento que os meus pais faziam, mesmo cansados, chegando tarde do trabalho. Eu se chegasse em casa com um lápis diferente era problema na certa, ela media meu lápis. Se eu quebrasse a ponta, preferia pedir emprestado, se eu chegasse em casa com um lápis de um tamanho diferente tinha problema. Era um mecanismo de controle diário [...] Hoje temos uma geração de pais que não sabem como dar limite, que deixam soltas crianças. Fico imaginando porque a gente se perdeu enquanto geração (Entrevista Policial 4 – MAIA, 2015).

A adolescência jovem é recordada por boas lembranças:

Brinquei na rua até os 15 anos, de corda, de elástico. A minha lembrança da fase de transição de jovem para adulta era a de estudar também. Estudei e fiz o ensino médio no centro da cidade. Ali foi minha emancipação. Pegava ônibus sozinha. Minhas tardes eram na biblioteca central, fui descobrindo o mundo da leitura, foi quando fui para o ensino médio. Foi a primeira vez que

125 fui ao teatro (TCA). Sempre tive nota boa [...] No interior, era na roça, subir em árvore e brincar. É uma referência boa. Por causa da criminalidade, perdemos uma geração de não se permite as crianças serem crianças (Entrevista Policial 4 – MAIA, 2015).

Conta que a sua maior preocupação era conseguir passar no vestibular. Nunca repetiu o ano. Concluiu o Ensino Médio com 17 anos. É a segunda da sua família a conseguir concluir o Ensino Superior. Sobre a escolha da carreira policial, conta:

Resolvi encarar o desafio e por incrível que pareça quebrou assim alguns paradigmas, foi possível ver outro lado. E tá numa fase assim que a Polícia está se repensando. Talvez tenha entrado em uma fase boa, essa parte de se repensar enquanto instituição. Não sei como seria se eu tivesse entrado há 10 anos atrás. Achava que ia passar uma chuva e fiquei seis anos. [...] Meu tio é soldado de polícia. Não me incentivou muito. Ele morria de medo de eu ser policial. Não era meu sonho ser policial, nunca me imaginei. [...] Foi o concurso que deu para fazer (Entrevista Policial 4 – MAIA, 2015).

Maia diz acreditar que está vivendo o que chama de “um outro momento da Polícia”, marcado por mudanças estruturais na instituição. Diz que a Polícia precisa ser modificada em seus valores, princípios e práticas. Conta que a sua turma de formação foi a primeira a recepcionar o curso de Policiamento Comunitário. Cita como exemplo de mudança desse paradigma a criação da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) e do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). “Foi a época de discussão e até hoje estamos caminhando pra tentar não só modificar, mas se pensar enquanto instituição: qual o papel da polícia em nossa sociedade”, diz a soldado.

Com relação ao tema da suspeição policial acredita que as roupas, as tatuagens são marcas culturais que servem para identificar, reforçar determinado grupo e/ou forma de ser jovem, mas os estigmas incorporados na atuação policial acabam associando essas marcas culturais a posturas suspeitas e, portanto, aqueles que portam/assumem essas marcas como passíveis de cometer atos criminosos. “Por mais que a gente diga que não, o nosso olhar é treinado para abordar”, diz ela e reforça que este treinamento se dá no período de formação, por isso acredita que para diminuir as práticas abusivas da polícia é preciso garantir uma maior fiscalização das academias de formação policial.

Se você analisar o currículo é o mesmo, mas em determinados lugares ele pode dar em um dia e nos demais, pode fazer um trabalho de – digamos [utiliza um tom irônico], de muita incursão, de muito tapa na cara. Não tem fiscalização, não tem controle [...]. Experiências de algumas torturas não são só psicológicas, mas físicas, estilo o filme Tropa de Elite, mais ou menos assim. O filme não é exagero. Alguns policiais chegam tendo essa visão e acabam enxergando o outro como inimigo porque ele vai querer

126 descontar o que ele aprendeu lá dentro (Entrevista Policial 4 – MAIA, 2015, grifos nossos).

Para que haja mudanças no modelo de segurança pública do país, a soldado acredita que é preciso fortalecer a rede de proteção social que tem a polícia como uma dentre várias instituições que a sustentam. Não acha que é endurecendo as punições aos policiais que vai diminuir o número de arbitrariedades cometidas pelos agentes.

É uma profissão difícil, deveria se ter mais acompanhamento da sociedade, de fiscalização desde o momento da entrada, é de total interesse da sociedade você ter um profissional qualificado [...] Ai você se depara com tudo isso. Eu tenho essa possibilidade de reflexão, mas a grande maioria não tem. Aí eu não posso culpar, dizer que vou punir, vou excluir, porque ele é produto daquilo que a gente deixou de fazer, enquanto instituição, enquanto Estado, enquanto sociedade. A polícia tem que ser vigiada sim e muito. Mas não é no produto final, é no processo. Não é quando o corpo tá lá. É no início, durante e até o final. Tem que ser um processo de fiscalização desde a formação (Entrevista Policial 4 – MAIA, 2015, grifos nossos).

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