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4 “ADOLESCENTES JOVENS RESISTENTES” E “POLICIAIS QUE DÁ ATÉ PRA FALAR”: ONDE AS TRAJETÓRIAS SE CRUZAM

4.2 Jamerson:“me sinto mais adulto sabe, mais dono de mim”

[Jamerson] A pró da pesquisa chegou! A pró chegou! [Bruna] Que ótimo! Vamos começar a atividade?

Fui recepcionada com animação por Jamerson, ao me avistar subindo a escada que leva à laje do CRAS onde realizamos os encontros da pesquisa. Durante a conversa inicial com todos os participantes do SFCV/Projovem, ele foi o primeiro a demonstrar interesse em fazer parte do grupo.

A entrevista individual foi feita em uma sala de atendimento do CRAS. Ficamos frente a frente. Expliquei os procedimentos da entrevista para ele, liguei o gravador e começamos a conversa. Estava atento às perguntas, mas não abandonou os fones de ouvido. “Não prefere desligar o celular e tirar esses fones, perguntei?”. Ele respondeu: “Não, tô te ouvindo pró, pode falar”. E assim fizemos a entrevista que teve cerca de uma hora de duração.

Jamerson é muito sorridente. Poucas vezes o vi sem seu sorriso peculiar. Sempre se mostrou muito afetuoso com a educadora do projeto, comigo e com os outros adolescentes. Quando começamos a nos encontrar ele tinha 19 anos. Completou 20 ao longo da pesquisa, momento que para ele foi muito significativo. “É se sentir mais adulto, sabe, dono de mim”. Tem estatura mediana, a pele negra e autodeclara-se pardo. Costuma vestir-se com camisetas de bandas de rock e usar um bracelete de couro, com rebites “estilo roqueiro”.

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Nasceu em Salvador, num bairro de periferia. Quando ele tinha dois anos sua família se mudou para um bairro de Lauro de Freitas. Cerca de três anos depois mudaram-se para Itinga, onde moram até hoje. Sobre a mudança de bairro, conta que a saída foi motivada por um problema que a sua mãe teve com um traficante local. Precisou sair de lá, pois estava sendo ameaçada. Jamerson teve um tio que trabalhava para o tráfico e foi assassinado. Ele conta que o medo de ameaças e o medo da morte era algo constante e recorrente na sua memória de criança e adolescente.

Traficante de merda. Queria se vingar de minha mãe porque minha mãe alugou a casa dela. Aí esse traficante de merda ficou querendo matar minha mãe. Como é que uma pessoa com um revólver vê dois diabos na frente. Eles pensam que são os diabos, mas não, são uns anjos que ele viu na frente de minha mãe, viu todos os dois, quando viu foi dar um tiro e passou de raspão em minha mãe [ele me mostra em seu corpo o lugar onde foi o tiro: na altura do ombro direito] aí minha mãe pegou deu uma queixa nele. Eu falei mainha não vá, não vá, porque você sabe como é, espere pela mão de Deus, ela esperou, aí foi passou um dia a gente se mudou pra cá, minha vó ficou lá, quando a gente se mudou pra cá que veio ver tal traficante morreu na frente do filho e da mulé e ai eu fiquei assim ô que bom que eu não quero mais ver na minha frente, porque se eu visse eu matava. Mas como eu pedi na mão de Deus... Mas sentia raiva dele, sentia raiva dele mesmo (Entrevista Jovem 2 – JAMERSON, 2015).

Tem três irmãos, um de 18 e um de 11 anos, este mais novo do segundo casamento da mãe. A avó é uma referência importante para Jamerson. Como a mãe trabalha o dia todo fora de casa – ela é corretora de imóveis em Itinga – a avó, dona de casa, com 67 anos, tem um papel importante na criação e no cuidado dele e dos seus irmãos menores. Ela divide com a mãe o lugar de autoridade no seu espaço familiar. Seu pai é caminhoneiro. Separou-se da mãe dele quando ela ainda estava grávida. Ele só morou com o pai por um curto período de tempo quando já tinha 18 anos.

Meu pai? Eu fugi da casa dele. Aí fugi, fui de novo, tomei uma surra dele porque ele foi dizer que eu roubei o dinheiro de minha avó que tinha sido roubado aí eu disse a ele que não fui eu. Aí eu peguei a cadeira e piquei nele, mas ele segurou a cadeira e me deu um empurrão na caixa do peito que eu senti falta de ar, peguei minha roupa, minhas coisas, me dá meu transporte que eu vou embora daqui agora. Não cheguei a morar com ele e minha mãe. Ele é vivo, trabalha em caminhão. É caminhoneiro. Eu também vim trabalhar com caminhão, mas Bruna, sabe como é família quando alguém faz aniversário? Finge que não lembra que eu faço aniversário. Ele sabe qual é a data que eu nasci ele disse ‘eu esqueci meu filho’, aí eu desliguei na cara dele. Disse que tava ocupado, que ia trabalhar. Eu disse a ele que ia esquecer que ele era meu pai. Ele lá trabalhando com minha tia e eu aqui com minha mãe (Entrevista Jovem 2 – JAMERSON, 2015, grifos nossos).

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Das memórias de infância, conta que gostava muito de brincar na rua e que podia ficar até uma hora da manhã “gastando”. Adorava andar de skate e patins. Mas, diz que hoje não tem mais espaço para a brincadeira, porque o seu objetivo é passar de ano. No momento da pesquisa, ele estava cursando o primeiro ano do Ensino Médio. Não está nos seus planos fazer uma faculdade porque a prioridade é trabalhar para ganhar dinheiro e ajudar em casa. Atualmente trabalha como ajudante de uma baiana de acarajé, mas conta que já fez serviços diversos como caixa de supermercado, ajudante de caminhoneiro, entre outros. Sua família é beneficiária do Programa Bolsa Família. Concilia a rotina de estudos e trabalho com o SFCV/Projovem desde 2013, quando foi levado pela mãe para se inscrever no Projeto. Jamerson lembra: “meus amigos falou pra minha mãe e minha mãe falou pra eu vim, que tinha um salário que a gente ganhava antigamente”.

Um marco da sua adolescência foi quando “virou roqueiro”. Processo que aconteceu quando tinha 17 anos e começou a escutar músicas de rock e a se vestir todo de preto. Foi a fase em que começou a beber e a fumar cigarro. Conta que no começou bebia muito, “até dizer chega”, mas que hoje diminuiu a quantidade de álcool e está parando de fumar. Conta que gosta de se vestir de preto e usar braceletes. Mas, que sofre preconceito dos outros jovens por conta disso, mas ele diz “prefiro que me critiquem por se roqueiro do que me chamar de pagodeiro”.

Jamerson diz não ter uma religião específica, mas esporadicamente acompanha a avó nos cultos das Testemunhas de Jeová81: “de vez em quando eu gosto, de vez em quando não, não vou com minha vó pra igreja porque sinto preguiça de ir”. Conta que não gosta muito de sair, mas diz que não perde o “rap que tem toda sexta-feira no Largo do Caranguejo”. Além do rock que é a sua paixão, também gosta de fazer grafite. “Se você for lá no Largo [do Caranguejo], você vai ver toda a pintura que eu faço, todos os detalhes no chão. Grafite consciente no balcão tem um nome diferente que eu botei”.

Na televisão, tem o hábito de assistir novelas da Rede Globo. Seus programas preferidos são Os Simpsons e a série de mangá Death Note. Nesta série, Jamerson diz se identificar com o protagonista: Light, um estudante de ensino médio que descobre um caderno sobrenatural no qual pode matar pessoas se os nomes forem escritos nele enquanto o portador

81Testemunhas de Jeová é uma religião cristão, fundada em 1869 nos Estados Unidos por Charles Taze Russel e

tem a sua doutrina contida nas obras: “Estudos das Escrituras” e “Tradução do Novo Mundo das Escrituras” (CHEHAIBAR, 2010).

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visualizar mentalmente o rosto de alguém que quer assassinar. A partir daí Light tenta eliminar todos os criminosos e criar um mundo onde não exista o mal e tornar-se o “deus do novo mundo”, mas seus planos são contrariados por L, um famoso detetive particular.

Assim como Light, em Death Note, Jamerson se diz destemido, reforça que não aceita injustiças e quando preciso enfrenta a polícia, sem medo, para fazer valer os seus direitos como cidadão.

Tem tantos jovens que quando passa policial, prende. Eu mesmo já tirei dois da cadeia já, porque eu já era de maior. Com meus 18 anos eu já me sentia de maior. Cheguei lá e disse que era meus irmãos e que eu ia chegar em casa e falar com minha mãe. Aí o policial liberou e disse que não queria mais ver os dois na frente dele. ‘Se ver, eu mato’, ele disse e eu respondi: ‘ó o respeito, porque a lei não é pra matar, a lei é pra prender. Então mate um dos meus irmãos que você vai ver o que é vingança’. Eu disse na cara dele que não tenho nenhum medo de policial (Entrevista Jovem 2 – JAMERSON, 2015).

Sobre sua relação com a polícia em Itinga, traz alguns casos onde foi abordado e destaca um deles:

Tinha quase 18 anos na primeira vez que fui abordado. Sabe o que é raiva? Minha lágrima desceu de raiva, porque eu não gosto de jeito nenhum de ser revistado. Ele bateu com força nas minhas bolas e eu fiquei assim ‘tá miserável, você vai ver!’. Aí eu me virei e vi o nome dele peguei fui no Balcão de Justiça e disse que tal policial, eu sei que a abordagem é normal, mas ele veio com toda força pra cima de mim, quase quebrava minha coluna. Ele usou violência. Fui abordado ali, perto da casa de minha tia, todo mundo vendo. Minha tia me deu dinheiro pra comprar biscoito e vi eles passando. Falaram pra mim: ‘o que é desgraça que você tá escondendo aí, sua miséria, sua desgraça’. Eu disse: ‘não tô escondendo nada. Só tava comendo biscoito’. Ele mandou eu encostar na parede e botar a mão pra trás. Eu de gaiato, continuei comendo o biscoito. A lágrima descendo de raiva. Aí veio minha tia de lá e disse que eu era sobrinho dela, que era normal, não usava droga nem nada, aí ele me liberou (Entrevista Jovem 2 – JAMERSON, 2015).

Nos seus relatos de contato com policiais, ele diz que começou a ser mais respeitado pela polícia quando fez 18 anos. E traz alguns casos:

A primeira vez que defendi ele [o irmão] foi uma vez que ele passou sem capacete na festa de São João e os homi enquadrou. Eu desci do carro e defendi ele. Disse ao policial que só porque ele tava sem capacete ele não podia dar um tapa na cabeça dele. Aí ele pegou e disse: ah porque ele tá sem capacete e documento na mão. Eu disse ao policial que a moto não tem documento e a segunda coisa é que ele é burro de esquecer o capacete. Aí eu disse que a moto era minha e que podia liberar, eu disse que a moto era minha, que era meu suor, aí ele disse: desculpa e eu disse: acho bom, pegue seu carro e se pique porque senão eu pego minha moto e vou no Balcão de Justiça. Quando ele ouviu justiça, imagine que ele se saiu, ele e os amigos dele e eu falei pra meu irmão: vá em casa e pegue a moto e o capacete. Se

103 eu tô em casa e os amigos vê você morto, ele falou: tá bom irmão – me chamou de irmão -, tá, vou em casa, quando foi em casa que voltou pegou o documento, aí foi de boa (Entrevista Jovem 2 – JAMERSON, 2015).

Sobre a caracterização do que seria um “elemento suspeito” para a polícia, Jamerson afirma que os policiais costumam observar se o corpo do jovem tem alguma marca que possa indicar que ele usa drogas: “se tem boca de quem fuma maconha, por exemplo, ou às vezes bota a lanterna no nariz pra ver se tá cheirando ou não”. Jamerson diz o que acha que deveria mudar na atuação policial para diminuir a violência contra os jovens: “rodar 24h, o dia todo e tipo não pegar pessoa inocente e só enquadrar e não bater, isso que deveria mudar”. Terminamos a entrevista com ele me fazendo um convite: “vá lá no Largo do Caranguejo ver toda minha pintura que faço no chão”.