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2 A CONSTRUÇÃO DO MÉTODO COMO UM ENTRE-LUGAR

2.2 Percurso Metodológico: abrir frestas sem fechar ferrolhos

2.2.3 Prática pesquisante: método como caminho

“Professora, tá certo38 o que a gente tá falando? O que você vai escrever aí no livro é o que for certo de tudo o que a gente falar aqui é?”, me perguntou a jovem Ruth em nosso segundo encontro. “O que a senhora sentiu ouvindo a gente falar esse tanto de coisa agora, essas coisas que a gente sofre aqui dentro da polícia?”, me indagou o soldado Léo. São questões-catalisadoras que me conduziram à reflexão sobre o processo de construção do conhecimento científico, sobre método e metodologia.

Elas me levaram a outras inquietações: como chegar ao objeto de pesquisa sem fazê- lo um objeto? Onde cabem os sentimentos e a emoção na construção de saberes científicos? Há como dissociar teoria e método, ou eles se retroalimentam? Edgar Morin (1996) nos alerta que a teoria não é o conhecimento, mas permite o conhecimento, uma vez que ela depende da plena atividade mental do sujeito. Esta atividade é o método, que não deve ser entendido –

38 Utilizamos o grifo para ressaltar expressões ditas pelos sujeitos da pesquisa que serviram de diretrizes para

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como na perspectiva clássica – como um corpus de receitas de aplicações quase mecânicas. “O método pressupõe estratégia, iniciativa, invenção e arte” (MORIN, 1996, p. 335).

O método é a atividade reorganizadora necessária à teoria: essa, como todo sistema, tende naturalmente a degradar-se, a sofrer o princípio de entropia crescente, e, como todo sistema vivo, deve regenerar-se em duas fontes de neguentropia: aqui, a fonte paradigmática/teórica; a fonte de fenômenos examinados. Em todo pensamento, em toda investigação, há sempre o perigo de simplificação, de nivelamento, de rigidez, de moleza, de enclausuramento, de esclerose, de não retroação; há sempre a necessidade, reciprocamente, de estratégia, reflexão e arte (MORIN, 1996, p. 339).

A palavra método vem do grego meta-odós e quer dizer meta = ir além; odós = caminho, via. O método não deve aprisionar, mas ser a possibilidade de (des)-(con)-(re) construção constante do conhecimento. A metodologia dialoga constantemente com o método, que significa caminho para ir além. Neste estudo, para ir além foi preciso atentar para as relações, para a interação. A construção do conhecimento se dá no processo dialógico. Interessou-me, portanto, o desafio de me “colocar enquanto observador-participante, possibilitando a fusão de horizontes, condição indispensável para um verdadeiro diálogo” (URIARTE, 2009, p. 6).

Não me coube, portanto, avaliar o “que tá certo”, mas identificar as formas de pensar, os pontos de vista de jovens e policiais sobre as dinâmicas de violência em territórios violentados e sobre o processo de estigmatização da juventude pobre e periférica. Coube-me apreender o significado que os acontecimentos e interações têm para determinadas pessoas, em situações particulares, com o objetivo de acessar os sujeitos com base nos seus pontos de vista (BOGDAN; BIKLEN, 1991). Com a clareza, no entanto, de que essa compreensão pressupõe a interpretação do pesquisador e o diálogo entre seus pontos de vista e os pontos de vista dos sujeitos em todas as etapas da pesquisa.

Os diferentes lugares de saber trazem suas potencialidades, suas ‘verdades’ e a construção do conhecimento deve pressupor um diálogo entre os saberes que escape às hierarquizações pré-concebidas. Para ir além, ou seja, para construir a metodologia de pesquisa é exigido do pesquisador habilidade e sensibilidade suficientes para gerenciar estes diferentes lugares e possibilitar que a produção de conhecimento não seja útil apenas para a coletividade considerada na investigação local, podendo produzir conhecimentos suscetíveis a generalizações (THIOLLENT, 2005).

Sensibilidade: é sobre ela que me falava o soldado Léo quando perguntou – em um tom um tanto quanto provocativo – o que eu estava sentindo ao ouvir os policiais e como iria

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retratar as minhas próprias sensações e impressões na pesquisa. Não há diálogo sem sensibilização para olhar o outro para além das suas próprias competências. Escutar (ativamente) desmorona certezas. Exige um reposicionamento de lentes para ver/acessar o outro. E qualquer desmoronamento pressupõe lidar com a subjetividade, com os sentimentos, com as próprias emoções. Assim,

Os sentimentos do observador podem constituir um importante indicador dos sentimentos do sujeito e, como tal, uma fonte de reflexão. Podem também ajudar o investigador a formular questões que o conduzam às experiências dos sujeitos. Neste sentido, as reações emocionais do observador são uma fonte de intuições de investigação. Se cuidadosamente separadas, seletivamente apresentadas e apropriadamente expressas, podem também ser uma maravilhosa via para desenvolver uma relação (é evidente que se os seus sentimentos forem opostos aos dos seus sujeitos, se revelados, podem criar hostilidade) (BOGDAN, BIKLEN, 1991, p. 133).

A pesquisa participante pressupõe um desmoronamento de certezas e um reposicionamento constante de lentes. O método dialético fundamenta este tipo de pesquisa, uma vez que permite a “captação do fenômeno em todas as suas dimensões constitutivas, desde sua história e dinamicidade até as múltiplas determinações inerentes de qualquer fenômeno” (PERUZZO, 2003, p. 6). Permite, também, que a prática pesquisante contribua para construir as ferramentas que vão instrumentalizar os processos de análise e o caminho metodológico.

Na pesquisa participante, o grupo não apenas sabe que está sendo investigado, como conhece os objetivos da pesquisa e participa do seu processo de realização. Para Cicília Peruzzo (2003), neste tipo de estudo o investigador compartilha com o grupo de modo sistematizado o que está sendo estudado e se envolve diretamente nas atividades.

Nesta investigação, busco suporte na pesquisa-ação – um tipo de pesquisa participante – compreendendo-a assim como Michel Thiollent (2005), como uma pesquisa social voltada para a ação coletiva que valoriza a coparticipação do pesquisador e das pessoas da situação pesquisada.

A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo (THIOLLENT, 2005, p. 16).

A pesquisa-ação implica o envolvimento do pesquisador no ambiente investigado e também no engajamento das pessoas deste grupo no processo da pesquisa, que tem o propósito

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de contribuir para solucionar alguma dificuldade ou problema real do grupo pesquisado. Os resultados – e o próprio processo da pesquisa – se revertem em benefício do grupo, pois servem de subsídios para o encaminhamento de soluções demandadas in loco (PERUZZO, 2003). A pesquisa-ação é bastante utilizada no campo acadêmico para identificar ações culturais de grupos, o que coaduna com os objetivos deste estudo.

Há também a compreensão da produção do conhecimento como um ato coletivo, que contribui:

Para a mudança da relação sujeito-objeto para sujeito-sujeito, o que não implica a aceitação da interferência deliberada do subjetivismo e de conceitos pré-concebidos. Ou seja, se reconhecem os atores investigados como sujeitos (coletivos ou individuais) e a potencialidade de construção de conhecimento científico na relação com os mesmos na condição de participantes ativos, como coprotagonistas - e não meros informantes ou colaboradores – na elaboração de planos, interpretações e no empoderamento dos resultados (PERUZZO, 2016, p. 6).

Com ambos os sujeitos – adolescentes jovens e policiais – a composição dos grupos se deu através de um processo inicial de sensibilização e uma pactuação entre pesquisadora e pesquisados sobre os objetivos da pesquisa. Apesar de a problemática central da investigação ter sido provocada por mim, a decisão em permanecer por parte de ambos os grupos esteve atrelada ao fato de acreditarem que quem é diretamente afetado (ora como vítima, ora como agente) pela violência urbana precisa ser escutado e que essa escuta pode contribuir para o questionamento de alguns estigmas que rotulam jovens e também os policiais.

Estes últimos revelaram conflitos que vivem dentro da própria corporação e reivindicaram espaços onde possam falar e serem escutados, apontando a pesquisa como uma oportunidade. Isto porque, para o grupo de policiais, a não-escuta leva a um aumento da agressividade que, consequentemente, gera práticas violentas por parte dos mesmos. Como destacou o soldado Léo:

Então eu acho que até o que a gente passa pra sociedade é muito do que a gente sofre. Acho que é o grito do policial, é você chegar ali e você mostrar que tá saturado, que tá cansado daquilo ali, que você quer resolver, mas você não tem meios pra resolver. Então eu acho que a violência... Fora o fator da violência tá impregnada no ser humano. Mas, acho que a palavra certa é essa: cercear direitos. Acho que é a maior violência, pra mim (grifos nossos).

Neste tipo de estudo, pressupõe-se que o processo de construção do conhecimento seja capaz de gerar ações transformadoras, tendo em vista que “em matéria de conscientização e de comunicação, as transformações se difundem através do discurso, da denúncia, do debate ou da discussão” (THIOLLLENT, 2005, p. 47). No desenrolar de uma pesquisa-ação, o que é

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transformado são as representações acerca das situações e seus sentimentos. Porém, para não cairmos em leituras ingênuas, como bem ressalta Thiollent (2005), a questão da ação transformadora na pesquisa-ação deve ser colocada desde o início em termos realistas, pois:

Quando se consegue mudar algo dentro das delimitações de um campo de atuação de algumas dezenas ou centenas de pessoas, tais mudanças são necessariamente limitadas pela permanência no sistema social como um todo, ou da situação geral. O sistema social nunca é alterado duravelmente por pequenas modificações ocorrendo na consciência de algumas dezenas ou centenas de pessoas. Não deve haver confusão a respeito do real alcance da pesquisa-ação quando é aplicada em campos de pequena ou média dimensão (THIOLLENT, 2005, p. 47).

Alguns fundamentos da pesquisa-ação não puderam ser desenvolvidos neste estudo por fatores decorrentes da própria dinâmica do contexto vivido pelos sujeitos participantes, que me levaram a rever os caminhos metodológicos anteriormente propostos. Não fizemos, por exemplo, a validação final dos dados, nem um processo continuado de reformulação e avaliação do percurso metodológico de forma sistemática com os sujeitos participantes.