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ADVERTÊNCIAS SOBRE A INVENÇÃO DE UMA OBRA: um contista entre

Perdeu a sua mosca azul.

3. ADVERTÊNCIAS SOBRE A INVENÇÃO DE UMA OBRA: um contista entre

a poesia e a política

Moneu mi, faisons toujours des contes... Le temps se passe, et le conte de la vie s´achvé, sans qu´no s´en aperçoive.

Denis Diderot

Da imaginação criativa de um homem, que ao nascer, tinha tudo para ser mais um dos tantos, como ele, condenados à dura vida reservada aos empobrecidos na sociedade brasileira do século XIX, surgiu uma obra em contos que o coloca entre os maiores contistas da cultura universal, certamente ela fará parte de qualquer lista séria que pretenda relacionar os maiores no gênero das histórias curtas, ao lado de nomes como Edgar Alan Poe, Voltaire, Merimmé, Jorge Luis Borges, Stendhal.

Machado de Assis escreveu 209 (duzentos e nove) contos em cinco décadas de uma carreira que começou quando ele tinha dezenove anos de idade e o acompanhou por toda sua vida. O primeiro conto que publicou foi

Três tesouros perdidos, na revista Marmota Fluminense, em 05 de janeiro de

1858; e o último publicado em vida foi O escrivão Coimbra que saiu nas páginas do Almanaque Brasileiro Garnier em janeiro de 1907. Os contos foram publicados em jornais, revistas femininas, livros e almanaques; no Jornal das

Famílias, foram 70 (setenta) contos publicados entre os anos de 1864 a 1878;

na revista A Estação, foram 37 (trinta e sete) contos entre os anos de 1879 a 1898:

O Jornal das Famílias e A Estação eram revistas femininas [...] A transição de uma para outra - o Jornal deixou de ser publicado em dezembro de 1878, e A Estação lançou seu primeiro número em janeiro de 1879 - é um momento significativo e, como tantas outras coisas na vida de Machado, ocorreu no final década de 1870. [...] Conquanto as duas revistas tenham muito em comum - ambas eram impressas na Europa, ambas davam grande destaque para a moda, com ilustrações coloridas de trajes elegantes -, o Jornal era mais conservador, apresentando, por exemplo, ensinamentos religiosos e crônicas culinárias. A Estação não só era mais luxuosa (era impressa

na Alemanha, embora com modelos franceses, e apenas o suplemento literário, para o qual Machado escrevia, era feito no Brasil), como também argumentava, com o devido respeito pelo ponto de vista masculino, que as mulheres deviam ser instruídas e não se limitar tão completamente à vida do lar. [...]. (GLEDSON, 2006, p. 38).

Na Gazeta de Notícia, foram 56 (cinquenta e seis) publicações entre os anos de 1881 e 1897; também encontramos contos escritos em quantidades mais modestas nas seguintes publicações: A Marmota Fluminense, O Cruzeiro,

O Futuro, Almanaque Brasileiro Garnier, Almanaque da Gazeta de Notícias, Revista Brasileira e nas coletâneas publicadas pelo escritor. (Cf. GLEDSON,

2006, p.35-36)

A Gazeta de Notícias, onde Machado publicou muito de seus contos mais memoráveis, [...] foi fundada em 1874. Foi uma novidade entre os jornais brasileiros, pois era vendida nas ruas, e não apenas para assinantes. Era um jornal liberal no melhor sentido da palavra, politicamente independente, vivo e empenhado em apoiar boas produções literárias. (GLEDSON, 2006, p.37)

As coletâneas de contos publicadas em vida por Machado de Assis, todas pela Livraria Garnier, traziam contos republicados e perfazem um total de sete livros, são eles: Contos fluminenses de 1870, Histórias da meia-noite de 1873, Papéis avulsos de 1882, Histórias sem data de 1884, Várias histórias de 1895, Páginas recolhidas de 1899 e Relíquias de casa velha de 1906.

Podemos dizer, talvez, que as coletâneas em que ele os editou têm importância relativamente pequena. As sete que Machado publicou em vida incluem ao todo 76 contos. Essas coletâneas têm muitos de seus melhores trabalhos, mas isso não devia nos impedir de ler os mais de cem deixados de fora. Os contos eram escolhidos entre aqueles publicados em anos anteriores e que Machado julgava terem sido apreciados por seu público e que, desse modo, venderiam. Isso se reflete em seus títulos pouco expressivos: Histórias sem data, Várias histórias, Páginas recolhidas (que também contém algumas crônicas e uma peça de teatro). [...] (GLEDSON, 2006, p. 39)

Uma característica comum às coletâneas, que salta aos olhos, é o fato de que, exceto em Contos Fluminenses, em suas publicações originais constavam uma primeira página com algumas advertências do autor, que além de informações aos leitores sobre os contos e suas outras obras, são chaves importantíssimas para entender a relação do criador de contos com as suas criações.

As advertências das coletâneas são o fio condutor deste capítulo que apresenta uma síntese de um diálogo que fiz com intérpretes do conto machadiano, mais precisamente com Magalhães Júnior, Jonh Gledson, Raymundo Faoro, Roberto Schwarz e Sidney Chalhoub, sobre a obra do Machado de Assis contista, ainda necessária aos tempos bestializados e líquidos nos quais esse texto foi escrito. Tal diálogo permitiu pensar sobre as mudanças ocorridas na obra do autor e em suas interpretações. Lembremos o que Antônio Cândido diz sobre a vida das obras e suas mudanças:

A literatura é pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo. (CÂNDIDO, 1980, p. 74)

Outro ganho desta pesquisa foi o conhecimento gerado sobre o autor, seu tempo, sua obra e seu público, ―[...] a série autor-público-obra, junta- se outra: autor-obra-público. Mas o autor, do seu lado, é intermediário entre a obra, que criou, e o público, a que se dirige; é o agente que desencadeia processo, definindo uma terceira série interativa: obra-autor-público.‖ (CANDIDO, 1980, p. 38).

Assim, a primeira tarefa é investigar as influencias concretas exercidas pelos fatores socioculturais. É difícil discriminá-los, na sua quantidade e variedade, mas pode-se dizer que os mais decisivos se ligam à estrutura social, aos valores e ideologias, às técnicas de

comunicação. O grau e a maneira por que influem estes três grupos de fatores variam, conforme o aspecto considerado no processo artístico. Assim, os primeiros se manifestam mais visivelmente na definição da posição social do artista, ou na configuração de grupos receptores; os segundos, na forma e conteúdo da obra; os terceiros, na sua fatura e transmissão. [...] (CÂNDIDO, 1980, p. 21)

E como mudou a obra do contista do Cosme Velho dos primeiros contos românticos eivados de poesia, amores, traições, ciúmes, amores impossíveis, vidas felizes, arranjados, namoricos de mocinhas de família com garbosos bacharéis quase não parecem ser do mesmo autor das mordazes ironias sobre política, cultura e tensões sociais dos contos escritos a partir dos anos de 1880.

A primeira fase da carreira do contista é a mais extensa, talvez pelo fato de nesse tempo ele escrever para comer, pois os ganhos com poesias e contos compunham as fontes de renda do agora recém-casado e novo contratado da Garnier, o qual editaria, em 1870, Falenas e Contos

Fluminenses, “[...] quase simultaneamente, após o casamento, o contrato com

a casa Garnier fora firmado em maio de 1869, em pleno noivado, quando Machado ainda trocava cartas de amor com Carolina.‖ (MAGALHÃES JR., 2008, Vol. II, p. 140).

O ano da publicação das Falenas e dos Contos fluminenses foi um período crítico. Caía, no fim de setembro, o gabinete conservador do visconde de Itaboraí, que vinha de 1868, e do qual José de Alencar impulsivamente se desligara a 10 de janeiro. Viria outro gabinete conservador, o do visconde de São Vicente, abolicionista que nada chegou a fazer de concreto pela abolição. Como funcionário do Diário Oficial, Machado de Assis começara o ano subordinado ao visconde de Itaboraí (Ministro da Fazenda), para terminá-lo subordinado precisamente ao Visconde de Inhomirim. (outra vez ocupando pasta que exercera de 12 de dezembro de 1858 a 9 de agosto de 1859). Quando ele ainda era apenas o Dr. Francisco de Sales Tôrres- Homem) Machado de Assis vivamente o atacara pelas colunas de O Paraíba, censurando sua renúncia ―ao apostolado das liberdades públicas", assumido quando era violento panfletário sob o pseudônimo de Timandro, e comparara sua reforma bancária a um "ratinho econômico", como o do parto da fábula. [...] (MAGALHÃES JR., 2008, Vol. II, p. 152)

Dissabores profissionais à parte, é importante dizer que o contrato com a Garnier prosperou, as histórias desse período são tão longas e variadas, foram criados alguns pseudônimos para assinar as muitas histórias publicadas no período: Max, J.J., Manasés, Máximo, J.,Victor de Paula, Job, Lara, estão entre os que assinam os 53 longos e alguns muito longos contos do período.

―Frei Simão‖, o primeiro conto de Machado para o Jornal das Famílias, era uma narrativa exageradamente romântica. Sua figura central, o beneditino Frei Simão de Santa Agueda, escandaliza seu abade, na hora extrema, dizendo - coisa estranha para um monge: "Morro odiando a humanidade!" Nesse conto está o embrião de um dos romances machadianos -Iaiá Garcià) [...], Tudo muito esquemático, pré-fabricado, precipitado. Mais tarde, com o mesmo ponto de partida, apenas trocando o pai tirano pela mãe tirana, Machado conseguiria melhor efeito dessa mesma situação em Iaiá Garcia. (MAGALHÃES JR., 2008, Vol. I, p. 275)

Os contos escritos nesse período ainda não têm a mordaz ironia e o estilo consagrado do mestre no auge da carreira, mas certamente a contém em estado latente, isso é claramente percebido nos contos menos românticos da época, o que não significa que nos contos recheados de infidelidades, ciúmes e esperanças casamenteiras não estejam presentes formulações desconcertantes e sarcásticas sobre os costumes sociais.

Ao iniciar-se como contista, Machado de Assis não hesitava em valer- se de fábulas e de provérbios, parafraseando aquelas histórias morais e utilizando estes como temas de contos. Valia-se também de episódios históricos ou pseudo-históricos, como no caso de ―Virginius (Narrativas de um advogado)‖, conto sobre aspectos brutais da escravidão, publicado no Jornal das Famílias. (MAGALHÃES JR., 2008, Vol. I, p. 276)

Dessa fase são as histórias publicadas em Contos fluminenses (Miss

Dollar, Luís Soares, A mulher de preto, O segredo de Augusta, Confissões de uma viúva moça, Linha reta e linha curva, Frei Simão). ―[...] Excetuada a

narrativa inicial, inédita, as demais haviam sido publicadas, em anos anteriores, no Jornal das Famílias [...]‖ (MAGALHÃES JÚNIOR, Vol II, p. 149)

Nesta fase, os poetas falsos e verdadeiros são personagens constantes nas narrativas do jovem poeta-contista que sonhava em ser dramaturgo, o que não acontece nas fases seguintes, aos poucos os poetas vão sumindo e dando lugar aos bacharéis, aos profissionais liberais, aos pobres; com os poetas também se foi a poesia dando lugar ao estilo humorístico e sarcástico da maturidade.

Magalhães Júnior apresenta uma crítica da época sobre a primeira coletânea do poeta-contista, o texto foi publicado no jornal da Tarde e assinado por França Júnior:

A aparição de um bom livro é sempre um acontecimento que a imprensa deve registrar. Eis por que, cumprindo a promessa que fiz há muito tempo, no noticiário desta folha, venho hoje saudar de chapéu na mão ao mimoso escritor dos Contos Fluminenses./ [ Eu simpatizo com esses Contos por dois motivos: primeiro porque são meus patrícios, segundo porque são escritos por um poeta./ [...]/ O livro do Sr. Machado de Assis é um fluminense às direitas./ Elegante satírico, caprichosamente encadernado, ele corre essa boa cidade, conquistando o que Humbold jamais conseguiu conquistar – leitoras./ Há um anexim antigo que diz: enquanto se descansa, carregam-se pedras. O Sr. Machado de Assis, mesmo descansando, sabe carregar sua pedra para o edifício da grandeza nacional./ Quando deixa a lira, empunha a pena de prosador e revela o fogo do céu em escritos ligeiros./ Está no caso daquele célebre menino de bronze do Passeio Público, que é útil ainda brincando.‖ (MAGALHÃES JR., 2008, Vol. II, Vol. II, p. 151)

Mas nem todas as críticas sobre os contos foram tão benevolentes, por exemplo, as de Araripe Júnior que relembrava vinte dois anos depois da publicação do livro suas críticas aos contos: ―[...] Daí uma consequência - as Falenas seriam toleráveis, mas os Contos mereciam morte, afrontosa e violenta. Escrevi o folhetim indignado e descansei no fim da obra, certo de ter causado a ruína de um edifício colossal. Como são agradáveis estas ilusões e perversidades infantis!". (MAGALHÃES JR., 2008, Vol. II, p. 152)

Histórias da Meia Noite foi o segundo livro de contos tendo sido

de 1870 e 1873, entre eles: A Parasita Azul e As bodas de Luís Duarte, Ernesto

de Tal, Aurora sem dia, O relógio de ouro e Ponto de vista (Quem desdenha).

Nas Advertências de Histórias da Meia-Noite (1873), Machado de Assis faz duas revelações, uma espécie de programa de escrita de toda a sua obra de contista. Ele diz: ―Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor.‖ Há ainda uma defesa dos contos reeditados no livro ―Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.‖ E ao correr da pena, foram escritas no mesmo período preciosidades como O país das quimeras, Virginius, O Teles e o Tobias, Uma excursão

milagrosa, O Oráculo, O rei dos caiporas, Mariana, Rui de Leão, Uma loureira, Uma águia sem asas, Quem conta um conto..., Tempo de crise, Decadência de dois grandes homens, Um homem superior.

Entre Histórias da Meia Noite e Papéis Avulsos foram quase dez anos, nesse período, temos uma produção de contos muito significativa e podemos observar plenamente tanto as mudanças dos temas e estilos dos contos como a amplitude da capacidade de devanear em histórias curtas desenvolvidas por Machado de Assis ao longo da vida. Dos 36 contos publicados entre os anos de 1873 e 1879, apenas Chinela Turca seria republicado.

Nessa fase temos um contista dedicado a escrever tanto sobre cenas da vida cotidiana como sobre tragédias particulares e histórias fantásticas e mirabolantes. São desse período os contos: Os óculos de Pedro

Antão, Um dia de entrudo, Valério, Antes que cases, A mágoa do infeliz Cosme, Um esqueleto, O sainete, Casa, não casa, Encher tempo, Sem olhos, Um almoço, Silvestre, A melhor das noivas, Um ambicioso, O machete, A herança, Conversão de um avaro, Folha rota, Dívida extinta, Filosofia de um par de Botas e Elogio da Vaidade.

Nos anos oitenta do século XIX, a paixão que Machado de Assis cultivava pelos prazeres da arte de escrever contos chegou aos seus mais profícuos frutos, animado por autores como Diderot, o contista na Advertência de Papéis Avulsos de 1882 revela um dos segredos da sua arte:

Quanto a Diderot, ninguém ignora que ele, não só escrevia contos, e alguns deliciosos, mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse também. E eis a razão do enciclopedista: é que quando se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente dar por isso. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 236)

O mesmo argumento sobre as recompensas de escrever contos reaparece na Advertência que abre a coletânea Várias Histórias (1895), nela o comentário do enciclopedista francês foi colocado como epígrafe. Abaixo temos o comentário que o autor do livro faz sobre ela:

As palavras de Diderot que vão por epígrafe no rosto desta coleção servem de desculpa aos que acharem excessivos tantos contos. É um modo de passar o tempo. Não pretendem sobreviver como os do filósofo. Não são feitos daquela matéria, nem daquele estilo que dão aos de Mérimée o caráter de obras-primas, e colocam os de Poe entre o primeiros escritos da América. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 446)

Nessa advertência temos uma bem humorada vantagem atribuída aos contos, ―[...] O tamanho não é o que faz mal a este gênero de histórias, é naturalmente a qualidade; mas há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres: é serem curtos.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 446).

Papéis Avulsos (O alienista, Teoria do Medalhão, A chinela turca, Na arca, D. Benedita, O segredo do Bonzo, O anel de Polícrates, O empréstimo, A sereníssima república, O espelho, Uma visita de Alcibiades, Verba testamentária.) de 1882; Histórias Sem Datas (A igreja do diabo, O lapso, Último capítulo, Cantiga de esponsais, Singular ocorrência, Galeria póstuma,

Capítulo dos chapéus, Conto alexandrino, Primas de Sapucaia!, Uma senhora, Anedota pecuniária, Fulano, A segunda vida, Noite de almirante, Manuscrito de um sacristão, Ex cathedra, A senhora do Galvão, As academias de Sião) de

1884, e Várias Histórias (A cartomante, Entre santos, Uns braços, Um homem

célebre, A desejada das gentes, A causa secreta, Trio em lá menor, Adão e Eva, O enfermeiro, O diplomático, Mariana, Conto de escola, Um apólogo, D. Paula, Viver!, O cônego ou metafísica do estilo) formam uma trilogia dentro das

coletâneas. Papéis Avulsos, sem dúvidas, é a mais festejada delas, não apenas pela relevância dos contos que a compõe, mas pela novidade e radicalidade de sua proposta:

[...] é a mais notável coletânea de Machado, a mais original e radical, [...] tem uma unidade peculiar, muito difícil de definir, [...] Entre essas histórias as melhores têm também uma força peculiar [...]. Machado conseguiu encarnar uma espécie de força mítica [...] (GLEDSON, 2006, p.45)

É preciso dizer, desde já, que acredito que aqui, mais do que nunca, as especulações de Machado se centram na questão da identidade nacional que tão frequentemente tem preocupado os intelectuais latino-americanos desde a independência. (GLEDSON, 2006, p.72)

Publicada um ano depois de Memórias póstumas de Brás Cubas,

Papéis Avulsos ―[...] representa para o Machado de Assis contista o que as

Memórias póstumas de Brás Cubas representaram para o Machado romancista.‖ (GLEDSON, 2006, p.51).

Em Papéis Avulsos e Brás Cubas, a energia é, acima de tudo, satírica: o Machado bem-comportado dos romances da década anterior, que só tinha mostrado o seu lado mais perigoso em contos ―A parasita azul‖ (1872) ou nas estranhas ―fantasias‖ publicadas em O Cruzeiro, em 1878, revela-se, finalmente, em pé de igualdade com os grandes temas de um Erasmo ou um Swift. (GLEDSON, 2006, p. 71)

Ambos marcam o início do que se convencionou chamar de segunda fase da obra machadiana após o período do também chamado de a ―crise dos

quarenta anos‖ pela qual passou Machado de Assis, período de enfermidade e reclusão em Petrópolis, mas também período de uma vida mais confortável com a obtenção de um emprego público no Ministério de Agricultura, Comércio Obras Públicas. No entanto, para Roberto Schwarz, a grande mudança ocorrida nessa fase é o deslocamento que as classes dominantes, seu capricho, volubilidade e todas as suas excludentes redes de relações sociais, políticas e culturais sofrem na estrutura assunto dos romances. Deixam de ser um assunto e passam a ser a voz ativa da narrativa animada pela ironia. O senhor abastado não é mais o Estácio, personagem em Helena, mas Brás Cubas, Bentinho e Aires, narradores do seu ponto de vista das coisas. O tom desabusado e irônico dos romances também está presente nos contos. A seguinte passagem das advertências de Papéis Avulsos ajuda a perceber o tom sarcástico do livro:

Este título de Papéis avulsos parece negar ao livro uma certa unidade; faz crer que o autor coligiu vários escritos de ordem diversa para o fim de os não perder. A verdade é essa, sem ser bem essa. Avulsos são eles, mas não vieram para aqui como passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa. Quanto ao gênero deles, não sei que diga que não seja inútil. O livro está nas mãos do leitor. Direi somente, que se há aqui páginas que parecem meros contos, e outras que o não são, defendo-me das segundas com dizer que os leitores das outras podem achar nelas algum interesse, e das primeiras defendo-me com São João e Diderot. O evangelista, descrevendo a famosa besta apocalíptica, acrescentava (XVII, 9): "E aqui há sentido, que tem sabedoria." Menos a sabedoria, cubro-me com aquela palavra.[...] (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 236)

As mudanças ocorridas nessa nova fase de acordo com Gledson ―quase sempre implicam não levar as coisas a sério, tratando-as com desrespeito bem-humorado ou sarcástico [...] Isso é algo que não se pode