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O BRILHO FALSO DAS IDEIAS MEDÍOCRES: a dimensão da arte de \c d

Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela

7. O BRILHO FALSO DAS IDEIAS MEDÍOCRES: a dimensão da arte de \c d

| +-pensar o pensado ou dos exercícios opinativos

- Farei o que puder. Nenhuma imaginação? - Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo.

Machado de Assis

Os exercícios da gravidade e da elegância são a pele da alma exterior, sua camada mais externa, e são praticados com um duplo intuito: esconder para exibir e exibir para esconder. Esconder a si mesmo para exibir apenas aquilo convém na busca de um lugar respeitável na opinião dos outros, mas a alma exterior brilha também na dimensão noológica, ideológica, idealista e, nesta dimensão das ideias e opiniões, uma peculiar e copiada falta de ideias originais equivale à casaca e ao gesto lento. Essa necessária ausência de ideias é conquistada por meio de exercícios que ensinam a refrear opiniões pessoais para não arriscar o ar grave e a casaca com ideias inapropriadas.

O pai de Janjão explica que esses exercícios opinativo-ideológicos são aprendidos na própria prática do ofício. Diz ele: ―[...] De resto, o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 272). Saber pensar o pensado evita muitos dissabores, pois protege do perigoso ato de ter ideias próprias que levam ao risco de criar novas relações e possibilidades de vida as quais podem chocar e se chocar contra o que é socialmente legitimado. O pai de Janjão fala sobre a arte evidenciada como algo de muita importância:

- Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da platéia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as ideias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 271)

O pai reconhece a força transformadora das ideias ao recomendar que não seja conveniente tê-las, pois seria dispendioso o sacrifício de escondê- las. Isso significa que quanto menos reflexão, mais rápido aprende-se o ofício. O homem deve gastar suas opiniões e sua capacidade de reflexão apenas com os chapéus, as casacas e os sapatos sempre de forma eloquente e elegante.

Segundo seu pai, Janjão é portador da inópia mental necessária ao desenvolvimento desta arte, parecia possuir a fundamental habilidade de repetir sem refletir numa esquina, as ideias ouvidas numa sala de jantar, e, principalmente, dominava a técnica de falar gravemente sobre futilidades e coisas inúteis.

Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma esperança, no entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas idéias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As idéias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto. (ASSIS, 2008, Vol. II, p.271)

Ao vulgo, é dado o título de exímio conhecedor dos medalhões. Ele separa os completos dos incompletos pela presença ou ausência das ideias. Essa habilidade de dizer sempre as mesmas coisas, de falar de futilidades e frivolidades como tamanha circunspecção e garbo que as faz parecer importantes e dignas de um discurso tão bem elaborado, exige um treinamento intenso e difícil. Janjão é instruído a seguir um ―regime debilitante‖: ler compêndios de retórica, ouvir determinados discursos, jogar o voltarete, o dominó, o whist, o bilhar e caminhar pelas ruas de recreio e parada, sempre buscando a companhia de outros. Não por amor ao próximo ou vontade de aprender na troca de ideias e opiniões, mas com o fim de evitar a solidão que é considerada pelo Pai de Janjão como oficina de ideias. ―O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada da circunspecção.‖ e quanto ao bilhar ―[...] as estatísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 271).

Um dos exercícios mais eficazes dessa dimensão da oikonomia do medalhão é frequentar contumazmente as livrarias para ser visto, catar

algumas ideias, contudo sempre observando a tarefa principal de nunca ler nada. Esses ambientes devem servir simplesmente para ser visto:

Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras interrogar diretamente os leitores habituais das belas crônicas de Mazade; 75 por cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudável. Com este regímen, durante oito, dez, dezoito meses — suponhamos dois anos, — reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está subentendido no uso das idéias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim... (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 272)

A redução do intelecto, das ideias e do vocabulário abre caminho para o uso abundante das imagens gregas e latinas, frases feitas e fórmulas ―[...] consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil.‖ E que principalmente não ameaçam os poderes instituídos. Melhor do que fazer um grande esforço para mudar uma lei e ter que discutir, analisar, refletir, o pai aconselha a Janjão que simplesmente diga: ―- Antes das leis, reformemos os costumes! - E esta frase sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais depressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito de sol.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 272).

O pai do mancebo ao exemplificar quais imagens gregas e latinas podem ser usadas num discurso cita: a Hidra de Lerna, a cabeça da Medusa, o tonel das Danaides e as asas de Ícaro. Esse conjunto de imagens possui entre eles duas interseções que nos interessam para melhor compreender os meandros dessa oikonomia do pensar o pensado. A primeira dessas interseções se refere ao fato de que nas quatro narrativas, os estratagemas e a astúcia vencem a força; a segunda interseção é o fato que em todas as narrativas citadas algum personagem perde a cabeça. Sobre o assunto detalha Montesini:

Acreditamos que seja um emprego irônico, pois o pai de Janjão o aconselha a agir de forma a ―vencer na vida‖, mas tornando-se uma pessoa sem vontade, sem inteligência, sem vocabulário, como ficaram a Hidra, a Medusa, e os maridos das Danaides que tiveram as cabeças decepadas. Ícaro, por sua vez, não teve juízo ou, popularmente falando, não teve ―cabeça‖ e acabou perdendo a vida por isso. (MONTESINI, 2003 p.334)

A prudência é uma atitude extremamente eficiente numa sociedade onde o poder pessoal e os caprichos ditam as normas, por isso todo o cuidado é pouco para não desagradar a opinião dos outros. O Medalhão verdadeiro sabe manter-se no limite da invejável vulgaridade, sabe apropriar-se da denominação das terminologias modernas, sempre cuidando de jamais tentar meditá-las, entendê-las e sobre nenhum motivo aplicá-las. Janjão diz ao pai:

- Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de processos modernos.

- Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação. O mesmo direi de toda a recente terminologia científica; deves decorá- la. (ASSIS, 2008, Vol. II, p.273)

O bacharel conhecia as denominações do pensamento da modernidade e o conselho do pai reforçou seu uso como mero instrumento de construção de uma falsa imagem de homem racional, cidadão do mundo, participante de um contrato entre iguais, com condições de igualdade no exercício das liberdades. Os valores do mercado e do contrato não podem passar de nomes dourados para enfeitar discursos e impressionar as visitas; servem para ser metidos num debate sobre frivolidades ou questões sociais desde que deixem nos ouvintes uma pontinha de inveja por tanta sabedoria e nenhuma faísca de ideia original.

Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não te aconselho esse artifício: seria desnaturar-lhe as graças vetustas. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 272)

O uso das terminologias científicas e modernas deve ser comedido e estratégico, como a costureira esperta e afreguesada que ―Quanto mais pano tem, mais poupa o corte, menos monte alardeia de retalhos; e este fenômeno, tratando-se de um medalhão, é que não seria científico.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II,

p. 273). O medalhão também não deve ter convicções políticas e paixões partidárias, deve usar os partidos, as associações, as irmandades como o

scibboleth bíblico, uma senha que lhe garanta o acesso ao convívio com os

poderosos. Não importa ser liberal, conservador, republicano ou ultramontano desde que essas palavras sejam simples meios de gozar da atenção dos poderosos e glorificados pela opinião pública.

Desse modo, a arte de pensar o pensado também se aplica aos discursos políticos que devem ser elaborados como forma de chamar a atenção, provocar os apartes, réplicas e tréplicas, mas nunca levar a pensar. Os discursos podem ser sobre os negócios miúdos ou metafísica política.

[...] Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica; - é mais fácil e mais atraente. Supõe que desejas saber por que motivo a 7ª companhia de infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente pelo ministro da guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse ato. Não assim a metafísica. Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória.(ASSIS, 2008, Vol. II p. 275)

Faoro nos explica melhor sobre a aplicação do pensar o pensado aos discursos no parlamento. O mais impressionante na passagem é a crítica a qual faz muito sentido se a aplicarmos à maioria dos discursos que ouvimos nas tribunas contemporâneas.

[...] Os oradores ocupam a tribuna, com solenidade e circunspecção, para dizer coisas triviais ou para vôos que o autor qualifica metafísicos. Há os dois extremos e os dois estilos: o terra-a-terra, que discute o orçamento e as nomeações, e a águia, que não se preocupa com as moscas. [...] O trivial e o sublime se misturam, confundindo os dois gêneros de oratória do tempo, com o predomínio do estilo dito filosófico. [...] O conteúdo trescala liberalismo, em forma de sátira, a tese verdadeira do discurso, armado sobre um problema ínfimo. A miniatura inchada, a citação sem propósito, o enxerto literário e filosófico a propósito de quase nada – esta a crítica oratória parlamentar. (FAORO, 2001, p.188-189)

Ainda analisando o tema, Faoro diz que ao contrário do que pensa o pai de Janjão, os negócios miúdos também põem fogo no parlamento e

inflamam as paixões a tal ponto que de uma simples demissão de coletores de impostos pode gerar monções que derrubam ministérios. (Cf. FAORO, 2001, p.190) A política na ótica do pai de Janjão é oposta a do Coronel Borges do conto Valério. A citação abaixo vem reforçar o argumento de Faoro:

O coronel Borges possuía alguns cabedais, bastante para sustentar a casa e deixar patrimônio à família. A sua principal paixão era a política; era esse verdadeiro pão cotidiano que ele pedia a Deus com heróica humildade. Se lhe tirassem a política do mundo, o mundo ficaria um ermo. A política era para ele o sol do mundo moral; quando a política desaparecesse começaria a morte. Nesse caso, dizia ele, poderei dormir. Pessoas de algum juízo afirmavam que, antes que a morte viesse, o coronel dormiria, e essa realidade era a maior dor que ele poderia ter.

Não nos enganemos, entretanto. A política do coronel não existe nos livros de Montesquieu nem Maquiavel; tinha outros códigos; a outras leis obedecia. A política do coronel começava no subdelegado e acabava no coronel. Uma remoção de comarca valia para ele um princípio. A Guarda Nacional e a polícia eram para ele toda a opinião pública. Sorria com desdém quando lhe falavam de outras coisas que não fossem estas coisas práticas. Escudado no axioma que diz que a política é uma ciência de aplicação, o coronel tinha mais respeito a um juiz municipal que a um artigo de lei, porquanto a lei era o tema e o juiz municipal a imagem da aplicação. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 1306-1307)

Os exercícios da arte de pensar o pensado se repetem em vários contos. A seguir selecionamos sete deles, escritos em diferentes momentos da carreira do contista, nos quais encontramos em diversas variações reflexões e ensinamentos sobre o pensar o pensado e seus desdobramentos.

Comecemos pelo conto Só!, publicado em 06 de janeiro de 1885, na Gazeta de Notícias. Na história, Bonifácio, um exercitante da oikonomia dos medalhões de quarenta e quatro anos de idade, resolve imitar um parente distante chamado Tobias que costumava se recolher solitariamente numa casa afastada do centro da cidade. Bonifácio era solteiro e não tinha parentes próximos, tendo substituído a família pela sociedade. É um exemplo de alguém que só existe pela alma exterior.

[...] Contava numerosas relações, e não poucas íntimas. Vivia da convivência, era o elemento obrigado de todas as funções, parceiro infalível, confidente discreto e cordial servidor, principalmente de senhoras. Nas confidências, como era pacífico e sem opinião, adotava os sentimentos de cada um, e tratava sinceramente de os

combinar, de restaurar os edifícios que, ou o tempo, ou as tempestades da vida, iam gastando. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 187)

O narrador faz uma referência ao contista Edgar Poe e compara a história, que está sendo contada, ao relato feito no conto O Homem da

Multidão sobre ―[...] a corrida noturna de um desconhecido pelas ruas de

Londres, à medida que se despovoam, com o visível intento de nunca ficar só. ‗Esse homem, conclui ele, é o tipo e o gênio do crime profundo; é o homem das multidões.‘‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 185). Mas Bonifácio não era criminoso e nem se recolhia por causa de um amor mal fadado, mas por querer ―[...] descansar da companhia dos outros.‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 185). O Tobias, de quem ele imitava a ideia, era um conhecido esquisitão do tempo a quem alguns atribuíam a condição de filósofo.

Filósofo ou não, era homem de cara seca e comprida, nariz grande e óculos de tartaruga. Paulista de nascimento, estudara em Coimbra, no tempo do rei e vivera muitos anos na Europa, gastando o que possuía, até que, não tendo mais que alguns restos, arrepiou carreira. Veio para o Rio de Janeiro, com o plano de passar a S. Paulo; mas foi ficando e aqui morreu. Costumava ele desaparecer da cidade durante um ou dois meses; metia-se em casa, com o único preto que possuía, e a quem dava ordem de lhe não dizer nada. Esta circunstância fê-lo crer maluco, e tal era a opinião entre os rapazes; não faltava, porém, quem lhe atribuísse grande instrução e rara inteligência, ambas inutilizadas por um ceticismo sem remédio. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 185)

Acontece que o Bonifácio toma a iniciativa de perguntar ao Tobias por quais motivos e prazeres o amigo se dava àquelas longas e absolutas reclusões, Tobias respondeu que na solidão encontrava o maior regalo do mundo e que na verdade nunca estava solitário por sempre levar aos seus retiros:

[...] certo número de ideias; e, logo que fico só, divirto-me em conversar com elas. Algumas vêm já grávidas de outras, e dão à luz cinco, dez, vinte e todo esse povo salta, brinca, desce, sobe, às vezes lutam umas com outras, ferem-se e algumas morrem; e quando

dou acordo de mim, lá se vão muitas semanas. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 186)

Depois dessa conversa, Bonifácio, que estava aborrecido da vida social, pôs-se a imitar o Tobias e se refugiou numa casa sua recém desalugada; tudo para tentar encontrar na monotonia um sabor que lhe tirara o enfado do arruído social. Nosso aprendiz de solitário gastou a tarde não sendo mais que um proprietário, examinando de modo paciente e minucioso os estragos feitos pelos antigos inquilinos. Foi com o cair da noite que ele começou a sentir os efeitos da condição que se impusera.

A tarde passou depressa. Só reparou bem que estava só, quando lhe entraram em casa as ave-marias, com o seu ar de viúvas recentes; foi a primeira vez na vida que ele sentiu a melancolia de tais hóspedes. Essa hora eloqüente e profunda, que ninguém mais cantará como o divino Dante, ele só a conhecia pelo gás do jantar, pelo aspecto das viandas, ao tinir dos pratos, ao reluzir dos copos, ao burburinho da conversação, se jantava com outras pessoas, ou pensando nelas, se jantava só. Era a primeira vez que lhe sentia prestígio, e não há dúvida que ficou acabrunhado. Correu a acender luzes e cuidou de jantar. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 186)

Na manhã do dia seguinte, não achou como passar o tempo sem os jornais que costumava ler entre o café da manhã e ao almoço. Decidiu examinar as gavetas de uma velha mesa. Lá achou bilhetes de amigos, uma chusma de cabelos de um amor da juventude e mais algumas pequenas quinquilharias esquecidas. Os cabelos eram de uma moça chamada Carlota e lhe fez reviver ―[...] o amor e a carruagem — a carruagem dela —, os ombros soberbos e as joias magníficas — os dedos e os anéis, a ternura da amada e a admiração pública...‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 187).

Ele ficou perdido nesses pensamentos. Até mesmo o vinho Borgonha, presente de um diplomata, não impediu que as lembranças de Carlota e uma frágil esperança de reencontrá-la tanto tempo depois o acompanhasse no almoço e no charuto. Nesse meio tempo, começou uma chuva longa, ele tentou ler algo e não conseguiu. Impaciente, nervoso e

zangado, voltou a remexer nas cartas e contas antigas, quando um barulho de cães lhe fez lembrar um dito proferido pelo Tobias em certa ocasião.

Estava em casa dele, ambos à janela, e viram passar na rua um cão, fugindo de dois, que ladravam; outros cães, porém, saindo das lojas e das esquinas, entravam a ladrar também, com igual ardor e raiva, e todos corriam atrás do perseguido. Entre eles ia o do próprio Tobias, um que o dono supunha ser descendente de algum cão feudal, companheiro das antigas castelãs. Bonifácio riu-se, e perguntou-lhe se um animal tão nobre era para andar nos tumultos de rua. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 188)

— Você fala assim, respondeu Tobias, porque não conhece a máxima social dos cães. Viu que nenhum deles perguntou aos outros o que é que o perseguido tinha feito; todos entraram no coro e perseguiram também, levados desta máxima universal entre eles: — Quem persegue ou morde, tem sempre razão, — ou, em relação à matéria da perseguição, ou, quando menos, em relação às pernas do perseguido. Já reparou? Repare e verá. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 188)

Na verdade, ele não se lembrava do restante do dito e sequer realmente tinha entendido a ideia do Tobias. Tornou a lembrar dos seus compromissos sociais, um jantar com um comissário de café, uma reunião na casa de um conselheiro, no whist e no voltarete.

Era assim que as lembranças de fora, coisas e pessoas, vinham de tropel agitando-se em volta dele, falando, rindo, fazendo-lhe companhia. Bonifácio recompunha toda a vida exterior, figuras e incidentes, namoros de um, negócios de outro, diversões, brigas, anedotas, uma conversação, um enredo, um boato. Cansou, e tentou ler; a princípio, o espírito saltava fora da página, atrás de uma notícia qualquer, um projeto de casamento; depois caiu numa sonolência teimosa. Espertava, lia cinco ou seis linhas, e dormia. Afinal, levantou-se, deixou o livro e chegou à janela para ver a chuva, que