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De Pai para Filho: oikonomia e exercícios da medalhonização

Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela

5. De Pai para Filho: oikonomia e exercícios da medalhonização

Unicus deus cum sua oikonomia. Tertuliano

Teoria do Medalhão: diálogo foi escrito como adverte o subtítulo do

conto na forma de um diálogo, uma conversa de portas fechadas, sem testemunhas entre pai e filho sobre conselhos e prescrições sobre o que é preciso ser feito para alcançar a aclamação pública no nomotopo compartilhado e inventado pelos brasileiros. A conversa acontece após o jantar de comemoração pelo aniversário de vinte e um anos do filho que aos olhos do seu pai é um pirralho de nada, e só percebera o crescimento do rapaz pelos bigodes e namoradas, não pelas suas ideias e autonomia.

No entanto, o verdadeiro diálogo explicitado no subtítulo não ocorre entre os personagens do conto, mas entre o contista e o leitor. Entre pai e filho o que realmente se estabelece é quase um monólogo, um discurso de convencimento, uma prescrição de instruções em ar professoral, falado para o outro, mas principalmente para ser ouvido por quem profere a oração. É uma prescrição de regras e lições que deve ser apreendida sem questionamentos.

Embora aparente a descontração da conversa dialogada, da doação de conselho, tende ao monólogo pelo tom autoritário adotado na postura linguística da figura paterna, para caracterizar o protótipo do medalhão, ironicamente referido como aspiração máxima para selar a marca de vencedor perante a sociedade. (CINTRA, In: MARIANO & OLIVEIRA, 2003, p.160)

A igualdade entre pai e filho sugerida pela forma de diálogo da história não era comum na realidade brasileira do século XIX, comumente entre o pai e a prole quase não existia a liberdade de expor e debater ideias novas, nem a possibilidade de ocorrer um diálogo do tipo dialógico no qual as partes se escutam e aprendem mutuamente. Gilberto Freyre em Sobrados e

Mocambos reserva um capítulo inteiro às relações entre pais e filhos no Brasil,

as quais podem ser consideradas como arquétipo, modelo, o padrão da desigualdade da realidade social que transborda do conto; o poder paterno era quase despótico, uma cópia rota e amarelada dos poderes dos Senhores de Engenhos de arbitrarem na morte e na vida dos seus subordinados: filhos, crianças, mulheres, escravos e dependentes que tinham na vontade particular do senhor de terras a expressão da lei e da justiça. Um exemplo desse poder do pai-proprietário é o personagem Pio, o Pai de Todos, do conto Virginius, publicado em 1864 no Jornal das Famílias.

O pai de Janjão deixa claro que a conversa não será entre pai e filho, mas entre iguais, ou quase iguais, entre pertencentes do mesmo estamento e da mesma classe, obedientes aos mesmos códigos, exercícios, embustes ideológicos e gestos graves. O filho possui o perfil de bom partido para as moças casadouras: bacharel em Direito, com algumas posses e poses que lhe serviam como senha para pleitear sua entrada no mundo das rodas dos amigos influentes e importantes. A passagem do conto abaixo apresentada ilustra esse argumento:

- Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270)

Os segredos ditos pelo pai ao jovem bacharel Janjão exigem máxima atenção e discrição, são técnicas que devem ser atentamente apreendidas e habilmente executadas, e para isso é preciso estar bem acordado, enquanto os outros dormem. O avançado da hora que a conversa é travada garante que bisbilhoteiros e aqueles que não podem saber sobre o teor das preciosas informações não estejam por perto.

A cena traz ensinamentos sobre a vida pública e social transmitidos num cenário privado e íntimo; apontando que o ofício de medalhão será

ensinado nas intimidades da casa, mas é forjado e encenado no arruído das ruas e salões. Eis uma marca fundamental da cultura política dos brasileiros captada por Machado de Assis a indistinção, ou melhor, o amálgama entre os interesses privados e os negócios públicos.

No entanto, para amenizar o calor da noite carioca, o pai ordena que a janela seja aberta; talvez tenha sido assim que alguém ao passar por baixo dela, porventura o último conviva do jantar de aniversário, tenha conseguido acompanhar a conversa secreta. A janela aberta induz a curiosidade e faz o leitor se aproximar para ouvir atentamente os sussurros que escapam da alcova.

Notemos que são duas as principais vantagens possuídas pelo filho, pois segundo o pai, facilitarão ao mancebo que as portas sempre estejam abertas: a posse de algumas apólices e um diploma. Não custa lembrar que entre nós o diploma substituiu os títulos de nobreza como afirma Sérgio Buarque de Holanda:

Numa sociedade como a nossa, em que certas virtudes senhoriais ainda merecem largo crédito, as qualidades do espírito substituem, não raro, os títulos honoríficos, e alguns dos seus distintivos materiais, como o anel de grau e a carta de bacharel, podem equivaler a autênticos brasões de nobreza. (HOLANDA, 2009, p.83)

No Brasil, uma vez endinheirado e diplomado, o sujeito parece estar credenciado a ocupar qualquer cargo público: prefeito, deputado, secretário de governos, chefia de uma autarquia. Aqui, a meritocracia garante aos seus ungidos alcançarem qualquer posto desde, é claro, que eles gozem da benevolência e um empurrãozinho de amigos poderosos e de algo para trocar com eles. Vejamos a interpretação de Buarque de Holanda sobre o assunto:

[...] as atividades profissionais são, aqui, meros acidentes na vida dos indivíduos, ao oposto do que sucede entre outros povos, onde as próprias palavras que indicam semelhantes atividades podem adquirir acento quase religioso. Ainda hoje são raros, no Brasil, os médicos, advogados, engenheiros, jornalistas, professores, funcionários, que se limitem a ser homens de sua profissão. (HOLANDA, 2009, p.83)

De acordo com o pai de Janjão, além dos diplomas e anéis, outra atitude aconselhável e fundamental naquela sociedade é a ação de não questionar e criticar posições e opiniões poderosas. É imperativo ser conservador e exercitar a obediência para não correr o risco de desagradar a quem não interessa a interrupção da ordem das coisas, correndo o risco de pagar com a própria vida o atrevimento da indagação. Ele invoca a figura do deus romano da imobilidade, da conservação dos limites e da não mudança para caracterizar o que chamou de o ―rasgo peculiar do medalhão‖, que é ―uma certa atitude de deus Término‖.

Termo ou Termino era um deus de origem romana inventado por Numa Pompílio. Os primeiros habitantes de Roma eram salteadores e escravos fugitivos, habituados ao roubo e ao saque. Numa para proteger as propriedades, fez limitar os campos com umas pedras quadradas as quais tornou divindades imóveis e implacáveis. Também lhe levantou um templo sobre a rocha Tarpeia. Quando Tarquínio, o soberbo, quis construir sobre o monte Capitólio um templo a Júpiter, foi preciso demolir os altares e estátuas que ali se encontravam; todos os deuses benévolos consentiram na sua mudança, só o deus Termo ficou sempre no seu lugar agarrado ao rochedo; esse conto espalhou-se pelo povo para lhe persuadir que a causa mais sagrada, que ele tinha, eram os limites dos campos e por esta razão os que tinham o atrevimento de mudá-los eram entregues às Fúrias sendo permitido matá-los. (MAGNO, 1900, p. 127)

No Brasil, a atitude conservadora de agarrar-se ao rochedo do status

quo precisa se coadunar à resignação da obediência aos limites dos

poderosos, e é preciso aceitar os reveses e transtornos da vida como se esta fosse uma loteria que isenta os homens de qualquer culpa sobre sua realidade. O pai do conto recorre ao mesmo tempo ao acaso e ao destino para explicar desigualdades e legitimar um discurso de resignação conservadora.

- A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante. [Grifos Meus] (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270)

Na narrativa, a circunstância de um sujeito ser possuidor de espessos cabedais não é primordial para que alguém se torne um Medalhão, embora a falta de dinheiro seja uma barreira quase instransponível aos que almejam ser um deles. O pai lembra ao filho: ―[...] que é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270). Mais do que apenas ter dinheiro ser medalhão é principalmente: praticar um

certo ofício. Ofício que envolve séries de exercícios e saberes tão poderosos

as quais são ensinadas com a promessa de que podem substituir todos os outros ofícios quando o objetivo é algo bem específico: recompensar os esforços da ambição particular de brilhar na opinião dos outros.

O pai impõe ao filho sua própria ambição como forma de remediar a frustração de não ter sido ele mesmo quem conseguiu ser um Medalhão, nem mesmo ter tido experiência de ter posto a cabeça fora da obscuridade comum; mesmo assim aquilo que está sendo ensinado é fruto de uma experiência pessoal, dos exercícios frustrados do pai, da sua tentativa mal sucedida e de sua compreensão sobre o ofício de medalhão, do seu convívio próximo ou não com algum notável e principalmente daquilo que ele ouviu dizer e viu ser feito nas ruas, nos bailes, enfim, no imaginário e práticas sobre como os exercícios do ofício do medalhão podem levar aos louros da glorificação.

5.1. Ser medalhão e parecer medalhão: a opinião do bonzo e a glorificação

,,,,,,,como alma exterior

Existem no conto duas noções distintas que se entrelaçam: a noção do ―ser medalhão” e a noção do ―parecer medalhão”. A distância entre a

essência do ser Medalhão e o parecer Medalhão é a mesma que separa D.

Pedro II, o Medalhão-Modelo, o Imperador o qual todos desejam imitar e aclamar, de um homem da classe média carioca que imita e aclama o Imperador através das liturgias e ritos sociais na busca de se tornar mais parecido com os nobres que orbitam em torno do Paço Imperial. A imagem de D. Pedro II é muito importante no entendimento daquilo que estamos chamando de Ser Medalhão. No conto Teoria do Medalhão temos menções a duas famosas imagens políticas do arcabouço imaginário político e social que cercava a imagem pública oficial do Imperador.

Uma delas é a escolha da maioridade para revelação desses segredos, certamente uma alusão à própria maioridade do Imperador, antecipada por um golpe, mas que na verdade entrou para história oficial como uma obediência ao direito e à maturidade de Pedro II que assumiu o poder com a famosa frase: ―Quero já!‖. A outra alusão ao Imperador aparece na referência sobre a idade ideal para se tornar um completo Medalhão: quarenta e cinco anos.

- É verdade, por que quarenta e cinco anos?

- Não é, como podes supor, um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a data normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta e cinco e cinquenta anos, conquanto alguns exemplos se dêem entre os cinquenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Há-os também de quarenta anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares. Não falo dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 271)

Uma explicação para essa idade ideal ser em torno dos quarenta e cinco anos se fia no fato que foi por volta dessa idade que as barbas de D. Pedro II, as quais, segundo uma anedota corrente na época, eram a única

coisa que o Imperador não fazia, começaram a embranquecer provavelmente pela herança genética da família Bragança que ficava grisalha bem jovem; o pai de Janjão faz questão de deixar claro que a questão da idade ideal não tem fundamento no puro capricho, mas numa tradição.

Na cultura política dos brasileiros, o capricho e a vontade pessoal do mais forte nas relações sociais sempre valeram mais que a própria vida dos não poderosos. Lembremos os caprichos de Brás Cubas, pois, como aponta Roberto Schwarz em Um mestre na periferia do capitalismo, é um sujeito caprichoso e volúvel, e por força da sua condição de senhor, impõe aos outros suas vontades e quereres, fazendo-os dançarem ao som da valsa que o medalhão mandasse tocar.

Compreender a glória dos Medalhões não é simplesmente uma questão de classes ou de dominação, nem de busca dos sentidos subjetivos das ações sociais e/ou das contradições das relações materiais de produção; mas é antes um problema sobre exercícios de glorificação. O que nos interessa aqui é saber como a literatura guarda e permite novas interpretações dessa memória/arquivo dos exercícios sociais, políticos e culturais, portanto, da complexidade dos exercícios humanos no nomotopo.

O medalhão é aquele que não precisa dizer quem ele é. Todos o conhecem, reconhecem seu nome, sabem quem são seus amigos e quais são seus poderes e manobras violentas usadas para garantir privilégios, beneficiar cúmplices e combater quem ouse ferir seus caprichos pessoais e interesses

privatistas. Seus métodos são conhecidos e queridos por quem compartilha

das suas influências, bem como totalmente desconhecidas e, por isso, temidas pelos outros que não sentam a sua mesa.

O ―verdadeiro medalhão” sabe usar os salamaleques da ostentação, as dissimulações cerimoniosas, as liturgias da bajulação, as insígnias das aparências e os adjetivos da retórica para conseguir um bom lugar nas mesas e rodas dos ilustres. E, uma vez saboreado o peru e os doces que mantêm as bocas fechadas e inebriam o pensar, faz-se necessário simular a circunspecção cultivando um tipo de silêncio sem ideias, sempre a espreita de

uma oportunidade para propor um brinde para homenagear ao distinto banqueteador, bem como, aos bem-nascidos, aos ―homens bons‖, aos amigos de casacas pretas.

O medalhão precisa ser um vaidoso convicto que passa a vida buscando aplausos e reverências numa cotidiana procura de algo que lhe garanta uma vantagem qualquer. Essa vantagem de ocasião pode ser expressa através do dinheiro, dos amigos importantes e parentes influentes, das roupas, da publicidade, das mulheres, do palavreado sem ideias consistentes, enfim, de qualquer coisa que o faça parecer fazer parte do grupo dos que são vistos, notados, comentados, dos que podem subordinar à ponta do próprio nariz e ao seu capricho pessoal, à admiração e à aclamação pública.

Esse culto, essa forma sui generis de religião política, não é praticada apenas entre as elites e os poderosos; lembremos que Janjão e seu pai não são membros nem dos estamentos mais poderosos tampouco das classes mais abastadas da sociedade carioca. A religião dos Medalhões abarca fidalgos e comerciantes, barões e dependentes no culto aos seus ritos e mitos de glória.

Janjão é um protótipo mal acabado de aspirante a medalhão, e ao pai não importava a profissão que o filho seguisse desde que ele se fizesse ―[...] grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270). As vantagens da posição social e os meios materiais de Cubas: filho da elite, senhor proprietário; não eram os mesmos de Janjão: bacharel, algumas apólices, mas que não fazia parte da elite fluminense.

Cubas sonha em ser ministro, o pai de Janjão se contentaria com a notabilidade, o que limita os sonhos e aspirações de ambos são as diferentes e desiguais formas de acessos aos meios disponíveis de subir na vida, compatíveis com a posição que ocupam na vida social, econômica e política do tempo. Partindo de pontos diferentes, Cubas e Janjão reproduzem e representam as mesmas as liturgias, cerimônias, rituais de glorificação. Ao diferenciar os grandes e ilustres dos meramente notáveis e estes dos que habitam a ―obscuridade de comum‖, o pai do conto Teoria do Medalhão nos

ensina que as glorificações brilham em intensidades diferentes e se desdobram em várias dimensões.

Medalhões poderosos frequentam as antessalas do poder, bailam no Paço, forjam e estão nas notícias, recebem altos reconhecimentos, placas, pompas, convites; medalhões de brilho menor têm certa fama, no entanto passageira, eles não passam despercebidos nas ruas e nas festas, os olhares e os cochichos os acompanham, podem ter a honra de trinchar o peru ou fazer os discursos antes das sobremesas, mas mais cedo ou mais tarde serão esquecidos. A imensa maioria de quem participa das cortes dos medalhões e segue suas liturgias é formada por fiéis desejadores de serem medalhões e que, na maioria das vezes, ficam pelo caminho.

É para os outros medalhões que um medalhão se faz, é na opinião dos outros que aclamação e admiração pública se engendram e criam uma diferenciação entre os que importam ser lembrados e bem quistos e os que merecem o esquecimento e a repulsa pública. Tão importante quanto ser reconhecido por seus pares como igual, é ser reconhecido como um desigual, alguém diferenciado dos demais, tanto que o Pai de Janjão sentencia: ―[...] Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 271).

A opinião dos outros, dos barões ao vulgo, vale mais que qualquer coisa, pois garante uma forma de imunidade que tem como principal razão de ser: fugir da obscuridade comum. Uma bolha de opiniões, notícias, benquerenças, reverências e referências que simulam a proteção do inevitável esquecimento, o qual qualquer humano está fadado, cedo ou tarde, em dias ou séculos.

Essa fórmula foi chamada por Buarque de Holanda de ―[...] certo viver nos outros.‖, embora formada por meio de aproximações e imitações, é também um artifício de criar barreiras entre as pessoas (tanto entre iguais como entre os desiguais), afinal o outro é sempre um incômodo ou o inferno, como ensinou Sartre. Assim, cria-se esta armadura, uma ―alma exterior‖ que ao mesmo tempo atrai e isola permitindo o exercício da indiferença social. Essa

proteção tem o fim último de agradar e satisfazer os caprichos e as vaidades da ―alma interior‖ que só vale alguma coisa por meio de uma falsa aproximação e preocupação com a opinião dos homens glorificados.

A teoria da ―alma exterior‖ é desenvolvida no conto O espelho no qual é narrada a história de Jacobina cuja farda de alferes, sua ―alma exterior‖, o seu lado inequivocamente social, aparece como o vencedor da batalha com a ―alma interior‖, na qual residia primeiro o ―homem‖, antes de ser dominado pelo interesse de destacar-se dos demais.

O espelho: esboço de uma teoria da alma humana chegou pela

primeira vez às mãos dos leitores brasileiros em 08 de setembro de 1882, nas páginas da Gazeta de Notícias sendo republicado no mesmo ano na coletânea

Papéis Avulsos. John Gledson adverte que há no conto variadas possibilidades

de reflexões não apenas sobre a alma humana individual, transcendental, psicológica, divina, mas sobre quais são os limites, as possibilidades e os paradoxos da invenção da nacionalidade no Brasil2.

No conto, temos Jacobina que ao admirar-se com seu reflexo, vestindo sua farda de Alferes da Guarda Nacional. Num velho espelho de moldura colonial, percebeu que não conseguia ver a si mesmo sem que estivesse usando a garbosa farda, sem ela o que era visto no espelho não passava uma figura disforme, pouco nítida.

[...] Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...[...] (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 324)

2

Embora estejamos bem distantes da busca por questões de nacionalidades, a nota vale pelas possibilidades interpretativas suscitadas a partir da abordagem do crítico inglês.

O conto começa com uma conversa entre um grupo de cinco rapazotes numa sala de um casebre, num morro, na penumbra de uma noite