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O GESTO E A CASACA: a dimensão do regime do aprumo e do compasso

Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela

6. O GESTO E A CASACA: a dimensão do regime do aprumo e do compasso

ll ou dos exercícios corporais

Um rapaz, como o bacharel, não perde o sentimento da elegância, ainda em lances daqueles. Duarte, ao ver a moça, compôs o chambre, apalpou a gravata e fez uma cerimoniosa cortesia, a que ela correspondeu com tamanha gentileza e graça, que a aventura começou a parecer muito menos aterradora.

Machado de Assis

Quem viu um Medalhão, viu todos, pelo menos no que diz respeito a sua postura corporal, tom de voz, gestos e indumentárias. Todos seguem o mesmo figurino, compasso e coreografia. Neste capítulo, será apresentado o resultado da colheita e reorganização das imagens e devaneios machadianos sobre o que estamos denominando de os exercícios corporais da oikonomia do

medalhão, a sua dimensão da gravidade.

A linguagem corporal que os Medalhões utilizam se compõe do ar circunspecto da gravidade, das modas e dos modos imitados da Europa e aprendidos nos manuais de etiqueta lidos pela elite e classe média brasileira letrada. A gravidade é a armadura na guerra contra a obscuridade; um modo de tentar demonstrar superioridade social através da gesticulação e postura. Luís Tinoco, personagem do conto Aurora sem dia, ao sonhar com uma futura cena que o tem como alvo da admiração do parlamento não se esquecia de treinar os gestos, que depois ele realmente usaria num discurso em sua passagem por uma Assembleia Provincial. Os trechos abaixo apresentam esse dois momentos respectivamente.

[...] Luís Tinoco via-se já troando na Assembleia Provincial, entre os aplausos de uns, as imprecações de outros, a inveja de quase todos, e lendo em toda a imprensa da província os mais calorosos aplausos à sua nova e original eloquência. Vinte exórdios fez o jovem deputado para o primeiro discurso, cujo assunto seria naturalmente digno de grandes rasgos e nervosos períodos. Ele já estudava mentalmente os

gestos, a atitude, todo o exterior da figura que ia honrar a sala dos representantes da província. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 214)

[...] Luís Tinoco fez um longo discurso em que combateu o governo geral, o presidente, os adversários, a polícia e o despotismo. Seus gestos eram até então desconhecidos na escala da gesticulação parlamentar; na província, pelo menos, ninguém tivera nunca a satisfação de contemplar aquele sacudir de cabeça, aquele arquear de braço, aquele apontar, alçar, cair e bater com a mão direita. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 215)

No conto Teoria do Medalhão, temos o pai dizendo ao mancebo Janjão: ―És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco anos possas entrar francamente no regime do aprumo e do compasso.‖ Esse regime do regime do aprumo e do compasso é formado por dois grupos de exercícios ao mesmo tempo autônomos e inseparáveis entre si: a gravidade e a

elegância.

A gravidade é o refrão desse sistema de exercícios corporais dos medalhões, seu leitmotiv, e entender sua função e utilidade nas batalhas nos belicosos flancos da opinião dos outros é a primeira lição que precisa ser compreendida por um aspirante a medalhão. Continua o Pai do mancebo bacharel:

O sábio que disse: "a gravidade é um mistério do corpo", definiu a compostura do Medalhão. Não confundas essa gravidade com aquela outra que, embora resida no aspecto, é um puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270)

O sábio citado, do qual Machado de Assis era leitor e admirador, é o moralista francês Duque de La Rochefoucauld (1613-1680), autor do livro

Reflexões ou sentenças e máximas morais de 1664; a íntegra da máxima

citada no trecho acima é: ―A gravidade é um mistério do corpo inventado para ocultar os defeitos do espírito.‖, portanto podemos dizer que o medalhão é, antes e acima de tudo, um grave, quiçá um gravíssimo, ao ponto de ser confundido com um súdito da coroa britânica da qual a gravidade era importada, aliás, como os tantos outros produtos que dominavam e circulavam no incipiente mercado consumidor brasileiro da segunda metade do século XIX.

Essas composturas e posturas sociais têm como principal característica o cultivo do ar pesadão, lento e circunspecto que dava e seguia o compasso das interações sociais. Ao atentar sobre o grave, compreendemos melhor as maneiras como as formas sociais importadas foram ressignificadas nos usos cotidianos da sociedade imperial, criando relações sociais através da arte de fingir ser quem não se é; que busca o ouro, mas que se contenta com o dourado, um jogo em que a casaca esconde as intenções secretas dos interesses que fazem da elegância insígnia de poder e senha para os títulos e comendas.

No conto As Bodas de Luiz Duarte, publicado de junho a julho de 1873, no Jornal das Famílias e republicado em Histórias da Meia-noite no mesmo ano, a gravidade é apresentada como a ―bandeira dos neutros em tempo de guerra: salva do exame a carga que cobre.‖. Nesse conto, temos um personagem gravíssimo, o Dr. Valença, ex-chefe de sessão, homem de gestos lentos, indumentária impecável e largo abdômen. Ele era o convidado de honra do jantar promovido por José Lemos para comemorar as bodas de sua filha com o jovem bacharel Luiz Duarte.

[...] José Lemos correu a abraçar o Dr. Valença; mas este que era homem formalista e cerimonioso, repeliu brandamente o amigo, dizendo-lhe ao ouvido que naquele dia toda a gravidade era pouca. Era ele homem de seus cinquenta anos, nem gordo nem magro, mas dotado de um largo peito e um largo abdômen que lhe davam maior gravidade ao rosto e às maneiras. O abdômen é a expressão mais positiva da gravidade humana; um homem magro tem necessariamente os movimentos rápidos; ao passo que para ser completamente grave precisa ter os movimentos tardos e medidos. Um homem verdadeiramente grave não pode gastar menos de dois minutos em tirar o lenço e assoar-se. O Dr. Valença gastava três quando estava com defluxo e quatro no estado normal. Era um homem gravíssimo. Insisto neste ponto porque é a maior prova da inteligência do Dr. Valença. Compreendeu este advogado, logo que saiu da academia, que a primeira condição para merecer a consideração dos outros era ser grave [...](ASSIS, 2008, Vol. II, p. 178-179)

A lição aprendida pelo Dr. Valença, quando jovem, revela que o

diploma de bacharel e a gravidade formam um par germinador para o acesso à

condição primordial que permite a entrada do homem na jornada pela

consideração dos outros, tendo a gravidade como componente primordial da

caminha. A lentidão ao assoar-se e a largueza do abdômen do gravíssimo convidado se combinam aos gestos de quase imobilidade e reforçam corporalmente aquela atitude de deus Término. Sobre a importância política da circunferência do abdômen, temos no conto Decadência de Dois Grandes

Homens, publicado no Jornal das Famílias, em maio de 1873, sob o

pseudônimo de Max., uma excelente imagem sobre o assunto no seguinte diálogo:

— Estou mais gordo, disse ele; naquele tempo eu era magro. Coisa natural; homem gordo não faz revolução. Bem o compreendia César quando dizia que não temia a Antônio e Dolabela, mas sim àqueles dois sujeitos amarelos e magros e éramos Cássio e eu...

— Pensa então o senhor que...

— Penso que homem gordo não faz revolução. O abdome é naturalmente amigo da ordem; o estômago pode destruir um império; mas há de ser antes de jantar. Quando Catilina encabeçou a célebre conjuração a quem foi procurar? Foi procurar a gente que não tinha um sestércio de seu; a turba dos clientes, que vivia de espórtulas, não os que viviam pomposamente em Túsculo ou Baïas. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 1193)

A circunferência do abdômen ajuda na cadência e no cerimonialismo dos movimentos, entretanto, obviamente, não é preciso ser gordo para ser uma grave; muitos são os medalhões esguios que dominam as habilidades indispensáveis ao pleno esplendor dessa gestão da circunspecção graciosa dos amigos da ―ordem‖. Um deles é representado pelo Tenente Porfírio, também convidado do casamento narrado no conto As bodas de Luiz Duarte. Sobre o tenente está dito:

[...] Era ele magro e de estatura meã; vestia com certa graça, e, comparado com um boneco não havia grande diferença. [...] Entrou com a graça que lhe era peculiar. Para cumprimentar os noivos arredondou o braço direito, pôs a mão atrás das costas segurando o chapéu, e curvou profundamente o busto, ficando em posição que fazia lembrar (de longe!) os antigos lampiões das nossas ruas. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 182)

A rigidez da coreografia social executada pelo Tenente Porfírio é a mesma do Dr. Valença tanto na cadência quanto na evolução da apresentação. Estes movimentos graves não são exclusividade das salas das classes médias cariocas, ao contrário, sua abrangência engloba espaços privados e públicos, bodas e parlamentos, sobrados e casebres. Na vida política, a gravidade apresenta as mesmas serventias e vantagens de seus usos particulares, pois o grave elimina o homem, tal qual a farda do alferes eliminou Jacobina. O ar circunspecto evita o exame das cargas de veleidades e nulidades cognitivas contrabandeadas por baixo do gestual sisudo.

No conto Valério, o personagem Coronel Borges, deputado medíocre, usufruiu durante sua breve e infrutífera vida parlamentar dos louros advindos do fato de ser possuidor, na opinião dos outros, de um ar de

gravidade, o que lhe evitou a maçada de fazer discursos elaborados e escrever

artigos rebuscados para alcançar a fama de sábio, modesto e bom conselheiro político. Diz o irônico narrador do conto sobre o grave Coronel cujos modos faziam com que lhe atribuíssem qualidades que não possuía:

Na Câmara fez um papel de mudo; mas o seu ar de gravidade era respeitado como um sintoma de sabedoria. Aplicava muitas vezes esta resposta de Sólon a Pariandro: Não sabes tudo que é impossível ao tolo calar-se durante um festim? O Parlamento, no juízo dele, era o festim da opinião, e se era verdade, como ele dizia, que a opinião estava na política, podemos sem afronta da lógica compará-lo a um covilhete. Covilhete sou, responderia o homem, mas para a boca dos meus adversários, que me hão de engolir quer queiram quer não. Não falava nem escrevia. Os amigos políticos ofereceram-lhe um lugar numa gazeta; recusou. Estranharam-lhe a recusa; por que motivo recusava ele a tribuna e a imprensa? Explicou-se, dizendo que não tinha os talentos requeridos. Ninguém aceitou a explicação; atribuíram-lhe a virtude da modéstia. O deputado sorriu. O sorriso é a

elasticidade aplicada à conversação; diz tudo e nada; isto e aquilo; o mau e o bom; confessa e nega; aceita e recusa.

Deixou o Parlamento sem fazer manifestação nenhuma; mas ficou- lhe a reputação de homem de bom conselho, qualidades políticas, gravidade de pensar [...]. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 1307)

O sorriso é um exercício corporal indispensável na gestão da vida grave, nas relações sociais é a ―capa que cobre a carga‖. O riso pode ser a manifestação labial do pomadismo, uma espécie de movimento milagroso que influencia opiniões; mas o sorriso é exercício ambíguo, tanto pode contribuir com a glorificação como pode atrapalhar se for mal executado. O modo correto da execução desse exercício minucioso e seus resultados é o penúltimo ensinamento que Janjão ouve de seu pai.

- Também ao riso. - Como ao riso?

- Ficar sério, muito sério...

- Conforme. Tens um gênio folgazão, prazenteiro, não hás de sofreá- lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um grave pode ter seus momentos de expansão alegre. Somente, - e este ponto é melindroso...

- Diga...

- Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos céticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. [...] Grifos Nossos (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 275)

A importância que Machado de Assis imputa às expressões corporais é apresentada magnanimamente no trecho citado acima. O contista escolheu um pequeno movimento labial para simbolizar a ironia que lhe

consagrou ao mesmo tempo em que a contrapunha à chalaça do medalhão. Também é importante atentar para a ênfase dada ao tênue limite do uso da alegria e da seriedade, e a recomendação explícita de não confundir a gravidade com a melancolia. O medalhão deve ser grave, certas vezes alegre, raramente melancólico e jamais irônico.

Ainda é preciso retornar uma vez mais às interações entre a gravidade e a política. Ao seu respeito, temos o célebre conto O velho Senado, publicado na Revista Brasileira em julho de 1898 e republicado em Páginas

Recolhidas. Esse conto é composto por reminiscências do próprio Machado de

Assis o qual aparece como narrador de suas lembranças sobre o senado brasileiro de 1860. Esse é um dos raros exemplos que senadores aparecem nos contos do autor. Nesses escritos, os deputados são mais frequentes e variados. O conto apresenta, o Senado de 1860, que era composto pelos líderes aposentados de ambos os partidos, Liberais-Luzias e Conservadores- Saquaremas, e lá chegavam para um fim de carreira glorioso. Eram membros da Câmara Alta alguns contemporâneos do Primeiro Reinado, da Regência e da Constituinte Imperial.

O Senado Imperial é apresentado como uma família por conta da vitaliciedade dos seus membros, o que tornava as seções sempre mornas, temperadas com risos e galhofas entre os senadores. O Senado tinha papel importante nas decisões da política no Império, mas a influência dele se dava pelos bastidores, sua feição pública era a da mais pura harmonia e descontração, destoando do clima conflituoso da Câmara dos Deputados. Eram raras as seções que despertavam o interesse público e poucos os oradores que traziam espectadores às galerias.

Como o recinto era pequeno, viam-se todos esses gestos, e quase se ouviam todas as palavras particulares. E, conquanto fosse assim pequeno, nunca vi rir a Itaboraí, creio que os seus músculos dificilmente ririam— o contrário de S. Vicente, que ria com facilidade, um riso bom, mas que lhe não ia bem. Quaisquer que fossem, porém, as deselegâncias físicas do senador por S. Paulo, e malgrado a palavra sem sonoridade, era ouvido com grande respeito, como

Itaboraí. De Abrantes dizia-se que era um canário falando. Não sei até que ponto merece a definição; em verdade, achava-o fluente, acaso doce, e, para um povo mavioso como o nosso, a qualidade era preciosa; nem por isso Abrantes era popular. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 595)

O Senado com seu clima calmo, sem arroubos e querelas intensas, imune às palavras ferinas e aos perigos das disputas e ideias políticas que pudessem provocar transformações profundas, era o lugar ideal para que alguns gravíssimos de carne e osso pudessem exercer em toda sua plenitude seu ar circunspecto nas cerimônias e solenidades senatoriais.

[...] Uma particularidade do tempo é que muitos vinham em carruagem própria, como Zacarias, Monte Alegre, Abrantes, Caxias e outros, começando pelo mais velho, que era o Marquês de Itanhaém. A idade deste fazia-o menos assíduo, mas ainda assim era-o mais do que cabia esperar dele. Mal se podia apear do carro, e subir as escadas; arrastava os pés até à cadeira que ficava do lado direito da mesa. Era seco e mirrado, usava cabeleira e trazia óculos fortes. Nas cerimônias de abertura e encerramento agravava o aspecto com a farda de senador. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 592)

Raymundo Faoro explica o modo arguto e original que Machado de Assis percebeu a importância da gravidade não apenas para a pedante classe média carioca de seu tempo. Uma imunidade que serve ao mesmo tempo de estandarte, arma e escudo nas tensões sociais nas batalhas das aparências miúdas, mas também como uma senha que abria caminho para projeção ao verdadeiro poder por meio de cargos e deputações. Interpretando as ações dos personagens do conto As Bodas de Luiz Duarte, está dito o seguinte em

Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio sobre a relação entre a gravidade e

sua diluição por todas as classes e estamentos sociais:

[...] Casa arrumada, vacuidade intelectual, gravidade artificial de maneiras, estão aí para caracterizar toda uma espécie. A gravidade do corpo – não o ―puro reflexo ou emanação do espírito‖ [...] – servirá de adorno a uma reputação sem alcance. Mais tarde, na Teoria do

medalhão, terá ela outro e maior destino, requisito primeiro para a nomeada pública, acima dos limites quadrados da sociedade do Dr. Valença, rumo ao parlamento e ao ministério. Instrumento único para duas funções: o acatamento incolor das reuniões caseiras e a projeção maquiavélica no alto mundo. O escritor percebe o fundo comum e o acentua sutilmente. Ambos os círculos ostentam, na sua segunda verdade, na verdade para uso exterior e moeda de troca, a falsidade íntima de toda a sociedade, seu pecado secreto. O moralismo põe, em todas as ocasiões, no sarcasmo e na aparente seriedade, as garras de fora. Todos são vítimas, atores e autores, do pomadismo (P.A O segredo do bonzo), teoria que modela a vida social e espreita as consciências, com o riso torto nos lábios, no retrato caricatural das personagens e na correção da casaca. As armadilhas do humorista falam melhor do que a retórica intencional e bojuda das palavras fingidamente cautelosas. (FAORO, 2001, p.298).

Senadores e homens comuns separados por classes e estamentos se encontram no exercício comum da gravidade, são indiferentes professando a mesma fé que os une. Todos imitam os mesmos exercícios corporais aprumados e compassados na busca de ter em si o ar circunspecto, rígido e silencioso dessa segunda verdade, moeda de troca social, forjada numa imitação escamoteadora de uma realidade cruel e nada glamorosa. Um poeta do século XX se vivo estivesse nos idos do século XIX poderia ter dito sobre o Brasil do tempo: parece gravidade, mas é só melancolia.

Agamben, numa passagem de O Reino e a Glória, lembra algo que permite encontrarmos as origens da gravidade em séculos bem anteriores ao de Pedro II, antes mesmo dos exemplos advindos da história e cultura política europeia que o imperador conhecia e imitava tão bem, cumprindo exemplarmente mesmo sem gostar a lex cerimoniaum que o cargo impunha. Os gestos da gravidade estão inscritos na cultural ocidental teológica-

oikonomica desde seus princípios, o ar circunspecto atravessou o tempo para

ser o metal no qual foi forjada a gesticulação do Medalhão. Sobre essa longa tradição da rigidez nos gestos é dito:

[...] Ammiano já havia observado estupefato a rigidez do imperador Constâncio II durante seu solene adventos a Roma, comparando-o não a uma criatura viva ou a um deus, mas a um figmentum, uma espécie de estátua ―com o pescoço rígido, que mantinha o olhar fixo

no vazio, sem olhar para a esquerda nem para a direita, como uma representação figurada em forma humana‖. [...] (AGAMBEN, 2011, p. 215)

Constâncio II, Luís Tinoco, Pedro II, Marquês de Itanhaém, Itaboraí, Sinimbu, Coronel Borges, Tenente Porfírio, José Lemos, Dr. Valença uns vestindo a gravidade com o poder, outros com o pedantismo, são todos personagens da história e do devaneio que ajudam a explicar a gravidade, essa primeira lição que deve ser aprendida na busca de dominar o regime do aprumo e do compasso, mas nenhum deles teriam grande valia se estivessem nus, pois é através das roupas que exercem uma parte significativa do seu poderio na luta pelo reconhecimento notório.

Com essa ponte, passemos a falar sobre a segunda lição do regime, o aspecto mais exterior da gravidade: a elegância que do mesmo modo da gravidade é tão somente do corpo, da roupa, da moda e figurinos importados juntamente com as coreografias da circunspeção. A elegância, o vestir-se e suas implicações sociais estão presentes em toda a obra de Machado de Assis, algumas vezes como tema central, noutras apenas como elementos da composição das mais variadas narrativas e temáticas. No conto Uma excursão

milagrosa de 1866, ainda na juventude do contista, a moda é apresentada

como a rainha do reino das bagatelas, ―[...] que tinha na mão esquerda um

psyché, onde se mirava de momento a momento.‖ O narrador do conto o jovem

poeta Tito é quem relata a própria visão que teve da moda:

[...] A real senhora era uma pessoa digna de atenção a todos os respeitos; era imponente e graciosa; trajava vestido de gaza e roupa da mesma fazenda, borzeguins de cetim alvo, pedras finas de todas as espécies e cores, nos braços, no pescoço e na cabeça; na cara trazia posturas finíssimas, e com tal arte, que parecia haver sido corada pelo pincel da natureza; dos cabelos recendiam ativos