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1 O JOVEM HEIDEGGER E O CURSO INTRODUÇÃO À FENOMENOLOGIA DA

3.3 OS AFETOS E SEUS MODOS DE DAR-SE

Na memória tudo está presente. Nela não encontramos apenas as imagens das coisas, os objetos inteligíveis e as regras matemáticas, mas também todas as afeições da alma, isso porque na memória não está apenas a lembrança do que se realizou, como realizou ou em que lugar e tempo. Ali também estão “os afetos da minha alma [...]” (AGOSTINHO, 2006, p. 230)

Agostinho de Hipona nos diz que os afetos da alma estão na memória, mas de maneira diferente que os sente a própria alma quando os experimenta. Fica claro que o hiponense já nos lança para uma questão futura, uma vez que, se os afetos estão na memória, esta diretamente está ligada a existência humana, não apenas ao conhecimento, ao recordar, mas também a felicidade, a alegria do homem.

Agostinho apresenta as diferenças entre “A maneira pela qual as afecções são possuídas na memoria” e como são “possuídas na experiência atual, cum patitur eas [quando ela as padece]”. (HEIDEGGER, 2010. P.168). A memória que a tudo retém, lemra também de sua própria atividade e ali guarda os afetos. Todavia, não haveria de ser recordada a alegria como a sentiu a alma no momento em que a experimentou. Desta feita, “Agostinho distingue a «maneira» de ser dos afectos enquanto modos de sentir e como o espírito os possui, no momento em que ele os sente, e os afectos enquanto estrutura afectiva existencial e ontológica.” (MARTINS, 2002, p. 398) Essa “maneira”, Heidegger nos diz ser a essência da memória.

Agostinho de Hipona nos fala sobre tal “maneira” pela qual a memória se recorda, não como a alma sentiu, mas segundo sua própria força,

Encerro também na memória os afetos da minha alma, não da maneira como os sente a própria alma quando os experimenta, ma de outra forma muito diferente, segundo o exige a força da memória.[...] Sendo assim, por que será que, ao evocar com alegria as minhas tristezas passadas, a alma contém alegria, e a memória a tristeza, de modo que a minha alma se regozija com a alegria que em si tem, e a memória não se entristece com a tristeza que em si possui? [...] (AGOSTINHO, 2006, p. 231)

Para Agostinho os afetos são perturbationes animi53, são para ele o desejo, a alegria, o medo e a tristeza. Sendo a memória uma grande potência, nela está o que é percebido pelos sentidos, tudo o que é pensado (cogitare), as coisas recordadas, os afetos e tudo o que foi assim afetado. É na memória que estão os afetos da alma. “Mas os afectos são distintos da memória, concebida esta, como ser-afectado. Os afectos são as impressões sensitivas que o espírito sente no momento presente.” (MARTINS, 2002, p. 399)

Reparei que me apoio na memória quando afirmo que são quatro as perturbações da alma: o desejo, a alegria, o medo e a tristeza. Qualquer que seja o raciocínio que possa fazer, dividindo cada uma delas pelas espécies dos seus gêneros e definindo-as, aí encontro que dizer e declaro-o depois. Mas não me altero com nenhuma daquelas perturbações, quando as relembro com a memória. Ainda antes de eu as recordar e revolver, já lá estavam. Por isso consegui, mediante a lembrança, arrancá-las dali. [...] Quem de nós falaria voluntariamente da tristeza e do temor, se fossemos a entristecer-nos e a temer, sempre que falamos da tristeza e do temor? Contudo, não os traríamos à conversa se não encontrássemos na nossa memória, não só os sons destas palavras conforme as imagens gravadas em nós pelos sentimentos corporais, mas também a noção desses mesmos sentimentos. As noções não as alcançamos por nenhuma porta da carne, mas foi o espírito que, pela experiência das próprias emoções, as sentiu e confiou à memória; ou então foi a própria memória que as reteve sem que ninguém as entregasse a ela. (AGOSTINHO, 2006, p. 232)

“Não há dúvida que a memória é como o ventre da alma.” (AGOSTINHO, 2006, p. 231). O autor das Confissões nos apresenta tal metáfora para nos mostrar como aquilo que vivenciamos é modificado pela memória. “Quando tais emoções se confiam à memória, podem ali encerrar-se depois de terem passado, por assim dizer, para esse estômago; mas não podem ter sabor. [...]” (AGOSTINHO, 2006, p. 231).

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A expressão perturbações da alma também fora assim usada por Cícero em Tusculanas, IV, 6. Para o autor romano as perturbações e as doenças do ânimo em Tusculanas dizem respeito à saúde do ânimo, o que já poderíamos dizer que para ele, a saúde do ânimo é a virtude, ou como ele mesmo nos diz, sementes inatas que quando podem crescer nos levam a beatitude. (Cf. Tusc, III, 2, 266)

Eis aqui está o motivo do homem se lembrar, pois já perderam seu sabor. “Quem de nós falaríamos voluntariamente da tristeza e do temor se fôssemos obrigados a entristecer-nos e a temer? [...]” (AGOSTINHO, 2006, p.232). Heidegger encontrou aqui “a representação de afecções que não vem condicionada pelo caráter das afecções da situação representada.” (HEIDEGGER, 2010, p. 168), ou seja, na passagem acima citada, o pensador alemão viu o “modo de recordação e de representação dos afectos” (MARTINS, 2002, p. 299).

No entanto, o que podemos concluir e chamar a atenção é para o fato de ser na memória o lugar onde o homem está presente a si mesmo (Mihi praesto sum). É ali onde “eu” tenho alegrias e tristezas, “eu” desejo. “Em ambos os casos: “eu”.” (HEIDEGGER, 2010, p. 168). Está o homem presente a si mesmo e aqui não ficam dúvidas de que para Heidegger à memória não está reservada a função apenas de recordar, mas a ela pertencem todos os atos intencionais54. A força da memória retratada pelo hiponense é sem dúvida essa força essencial do homem: o “eu mesmo”.