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1 O JOVEM HEIDEGGER E O CURSO INTRODUÇÃO À FENOMENOLOGIA DA

2.2 O MOTIVO DO CONFITERI

Reconhecemos facilmente que há uma mudança na forma de Agostinho revelar-se nos nove primeiros livros e no como ele se mostra nos livros posteriores. A retrospectiva de sua juventude dá lugar a uma reflexão. No entanto, o motivo de suas Confissões permanece o mesmo. O tom confessional que vemos nos nove primeiros livros é passado para o presente, onde Agostinho já não mais olha para trás, mas traça um percurso ao si-mesmo.

[...] quem sou eu no momento atual em que escrevo as Confissões. Uns conhecem-me, outros não; ou simplesmente ouviram de mim ou de outros, a meu respeito algum coisa. Mas os seus ouvidos não me auscultam o coração, onde sou o que sou. (AGOSTINHO, 2006, p. 219)

“Começando com uma invocação a Deus, Agostinho pretende explicar-se do que pode significar confessar-se [...]” (HEIDEGGER, 2010, p. 159). É fácil perceber que o bispo, no início do livro X, confessa também o problema de sua própria confissão. Não que Agostinho estivesse agora preocupado em criar um estilo próprio, uma confissão sobre a confissão, seu intuito está em entender o próprio ato de confessar e o porquê da confissão a Deus, que tudo sabe, e qual a utilidade disso para os homens.

Por que então “confessar-me aos homens [...] como se houvessem de me curar das minhas enfermidades?” (AGOSTINHO, 2006, p. 218). Uma confissão sobre o passado se revela com “efeito de uma sacudida e evita que os fracos permaneçam em desespero, na medida em que mostra que também o mais fraco é auxiliado pela graça.” (HEIDEGGER, 2010, p. 160). Agostinho busca entender o fruto com que faz tal confissão e assim vê que por meio dela não os fracos tomam consciência de sua fraqueza, mas também “os bons consolam-se ao ouvirem os males passados daqueles que já não sofrem. Deleitam-se não por serem males, mas porque o foram e agora não o são.” (AGOSTINHO, 2006, p. 219)

O que pode significar uma confissão a Deus? Ora, Ele já a tudo não conhece? “Nenhuma verdade digo aos homens que já antes não me tenhais ouvido.” (AGOSTINHO, 2006, p. 218. Agostinho, em seu Livro X, ao confessar o que agora é, seu estado atual, alegra-se de não ser o que já foi, alegra-se ao gozar “de uma alegria sã” (AGOSTINHO, 2006, p. 217), amando a verdade, praticando-a em seu coração e estabelecendo uma relação onde Deus se faz Deus e Agostinho se faz Agostinho no próprio caminho das Confissões. Contudo, seu problema não está ainda resolvido: o que confessar a um Deus onisciente? Neste momento o bispo de Hipona nos revela, portanto, o sentido vivo de suas Confissões, seu sentido existencial: sua preocupação com a vida, com o como do procurar esse Tu que vive nele mesmo.

Heidegger viu em Agostinho “o caráter ontológico [...] desta procura e o papel constitutivo desta ‘confissão’ para a vida do eu [...].” (ESPÓSITO, 2010, p. 26). Heidegger compreender que Agostinho em seu procurar se une ao objeto procurado de tal maneira que se tornam uma só coisa, onde a confissão acontece diante de si mesmo.

Para além de meras informações, as confissões colocam o homem numa “prova”, não há nada pronto nelas, não há um conjunto de fatos, informações para um futuro seguro. Portanto, chegamos à angústia que envolve o bispo de Hipona: confessar o que? A confissão o coloca diante de si mesmo, vivendo entre o silêncio e o clamor. O homem percebe que não há uma questão fora que o atormenta, o confiteri o coloca num enigma: ele é para si mesmo um problema34. Confessará agora, então, não o que foi, mas o que é e o que ainda não é. Eis o fruto de suas Confissões,

O fruto das minhas Confissões é ver não o que fui mas o que sou. Confesso-Vos isto, com íntima exultação e temor, com secreta tristeza e esperança, não só diante de Vós mas também diante de todos os que creem em Vós; dos que participam da mesma alegria e, como eu, estão sujeitos à morte; dos que são meus concidadãos e peregrinam neste mundo; e enfim, diante dos que me precedem, me seguem ou me acompanham no caminho da vida. Estes são os Vossos servos, os meus irmãos, aos quais constituístes Vossos filhos e meus senhores. A eles me mandastes servir, se quisesse viver de vós e convosco. (AGOSTINHO, 2006, p. 220)

A confissão agostiniana também nos encaminha para aquilo que Heidegger chamou de traço fundamental da vida fáctica: o curare (estar preocupado). Fica evidente que Agostinho quer a todo o momento se livrar das muitas coisas que o levam a dispersão, ou seja, se reunir a Deus pela continência. Dessa forma, questiona os céus e a terra por esse Deus, obtendo apenas uma imagem Divina vista através das criaturas. A partir dessa busca, Agostinho nos revela: “Dirigi-me, então a mim mesmo, e perguntei-me: “E tu quem és?” “Um homem”, respondi.” (AGOSTINHO, 2006, p. 222).

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Não é apenas no Livro X que Agostinho traz a questão tão conhecida do Oneri mihi sum (sou um peso para mim), como formula no final do livro citado. Toda a trajetória das Confissões nos revela um ser angustiado, um ser preocupado. Em Conf, I, 1. Agostinho já nos revela um coração que “vive inquieto”, assim como em Conf, IV, 15. confessa o peso que o precipita ao abismo. Poderíamos citar diversas passagens. No entanto, acerca do homem se tornar um problema para si mesmo, vemos claramente em Conf. VIII, 7, quando o bispo nos diz: “Mas Vós, Senhor [...], me fazíeis refletir sobre mim mesmo, tirando-me da posição de costas em que me tinha posto para eu próprio não me poder ver. Vós me colocáveis perante o meu rosto, para que visse como andava torpe, disforme, sujo, manchado e ulceroso.”

Assim, compreende a realidade da vida, onde sempre nos falta algo, vida de tentação constante, “no que Agostinho experimenta a vida fática e compreende em que medida quem vive nesta claridade e neste nível de realização é para si mesmo necessariamente um peso.” (HEIDEGGER, 2010, p. 189). Isso quer também Agostinho confessar. “Seja, pois, escutado assim.” (AGOSTINHO, 2006, p. 220)