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O “ESTAR PREOCUPADO COM”: O CURARE COMO TRAÇO FUNDAMENTAL

1 O JOVEM HEIDEGGER E O CURSO INTRODUÇÃO À FENOMENOLOGIA DA

4.1 O “ESTAR PREOCUPADO COM”: O CURARE COMO TRAÇO FUNDAMENTAL

FUNDAMENTAL DA VIDA FÁCTICA.

“Viver é cuidar pelo ‘pão de cada dia’.”62

(MARTIN HEIDEGGER)

Heidegger se ocupa da investigação do fenômeno das tentações do § 13 ao § 15 do curso Agostinho e o Neoplatonismo. As três formas de tentação apresentadas por Agostinho, a saber, concupiscentia carnis, concupiscentia oculorum e ambitio saeculi, são analisadas por Heidegger como aquilo que é capaz de levar a compreensão do “eu sou”.

No § 12, no entanto, é que está aquilo de que agora nos ocuparemos: o fenômeno do curare, presente no livro X das Confissões dos capítulos vinte e oito e vinte e nove. Aqui também é possível encontrar a dispersão da vida que Heidegger chamou de “distentio animi ao nível da temporalidade e de in multa defluximus ao nível da existência facticial.” (MARTINS, 2002 p. 403)

Santo Agostinho nos revela uma vida vivida sempre numa dualidade, ou seja, vivida entre a dispersão e as diversas possibilidades da vida, onde “Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes.” (AGOSTINHO, 2006,p. 243). Por outro lado, Heidegger mostra que existe uma unidade dada por Deus revelada na pergunta de Agostinho: “[...] entre dois extremos [...] qual será o termo médio?” (AGOSTINHO, 2006, p.244)

Heidegger apresenta o cuidado agostiniano, o curare, como o “estar preocupado”, que é também comportamento próprio da vida fáctica, encontrado na caminhada de

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Agostinho em busca de Deus onde somente a continência pode reunir aquilo que se dispersou em muitas criaturas. “Pouco Vos ama aquele que ama, ao mesmo tempo, outra criatura, a quem ele ama não por amor a Vós.” (AGOSTINHO, 2006, p.244)

O homem que não está em unidade com Deus não é capaz de sentir seu amor e não encontrou o caminho para si mesmo. Para alcançar a vida feliz é preciso que se própria vida tenha como “traço fundamental” o curare da dispersão onde, segundo Agostinho, o homem encontra uma alegria que não é verdadeira, pois utiliza o que se deve usufruir e usufrui o que se deve utilizar63.

Em Interpretações fenomenológicas de Aristóteles de 1921/22, Heidegger nos apresenta o cuidado como “o fundamental sentido relacional da vida em si [...]” (HEIDEGGER, 2011, p. 102). Se tomada em tal sentido, a vida deve ser ela mesma interpretada como cuidar, “cuidar por e cuidar de algo, viver cuidando de algo.” (HEIDEGGER, 2011, p. 102). Em outras palavras, o cuidado é o comportamento próprio da vida fáctica, a partir de seu sentido de referência, naquilo que sempre se dirige a algo, onde nasce a “significância”. “Significância é uma determinação categorial de mundo; os objetos de um mundo, os objetos mundanos (Weltlich), com caráter de mundo (Welthaft) são vividos no caráter da significância.” (HEIDEGGER, 2011, p. 103)

Esse cuidar de algo no qual nos fala Heidegger em 1921/22, se refere ao mundo que deve ser entendido aqui como mundo circundante, compartilhado e mundo próprio. O mundo, os objetos do mundo surgem no como fundamental da vida: o cuidar. Segundo Heidegger, o mundo compartilhado se faz presente no mundo próprio à medida que se vive com outros e nisso se faz presente o cuidado, assim como estamos no mundo de cuidado de outros. Aqui fica revelada a “função do caráter da

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O curare agostiniano pode ser visto nas dimensões do frui e uti. Frui nos revela aquilo que é bom em si mesmo e em nada depende de outra coisa. Em contrapartida, o uti está sempre à espera de algo, é sempre “bom para”.Como exemplo, podemos pensar como pode o homem sentir prazer com o dinheiro e utilizar a Deus. Mas a fruitio Dei é a orientação de Agostinho para a vida. O problema está, como tratado no segundo capítulo deste estudo, no tópico Agostinho e o Neoplatonismo, nessa subversão de valores. É possível encontrar uma vida feliz no uti, quando o homem utiliza aquilo que se deve utilizar. Embora a vida siga para o deleite da vida feliz, o cuidado se direciona ao uti, para que o homem utilize o que deve ser utilizado e usufrua daquilo que deve ser usufruído.

vida, que ela experimenta em encontros.” (HEIDEGGER, 2011, p. 109). O cuidar é esse experimentar que acontece em encontros.

Por mundo compartilhado se compreende o “círculo de objetos” (HEIDEGGER, 2011, p. 110). Aqui o cuidado surge como o “estar-junto ao ente intramundano.” Nesse sentido, pode a vida dispersar-se no mundo e até assumir a si mesma “a partir do ser disto que se encontra intramundanamente, perdendo sempre, na maioria das vezes, o sentido autêntico da própria facticidade.” (SASSI, 2007, p. 295)

Isso ocorre porque na própria vida fáctica pode o homem perder-se justamente naquilo em que ele toma cuidado, ou seja, no cuidado com a dispersão da vida é possível que se disperse o homem, pois um ponto fundamental da experiência fáctica da vida é poder perder-se a todo o momento, obrigando o homem a continência. O tomar cuidado do mundo é o que revela o modo de ser do cuidado que está no mundo.

O cuidar é, portanto, o “sentido fundamental da relação de vida64

. Sentido relacional em cada vez um modo é em si um indicar [...].” (HEIDEGGER, 2011, p.112). Em seu caráter indicativo-formal, o cuidado surge como aquilo que sempre indica algo, ou seja, “sentido total da intencionalidade.” (HEIDEGGER, 2011, p. 112)

Em Ser e tempo, Heidegger traduz cuidado por Sorge65. Ao interpretar as Confissões, Heidegger descobriu um Agostinho que, apesar da influência neoplatônica, não vive somente na tranquilidade da fruitio Dei, mas que também dirige sua vida ao delectio Dei, onde Heidegger identifica o modo autêntico da realização do Dasein.

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Aqui também identificamos a tarefa da filosofia, uma vez que seu ponto de partida está na experiência fáctica da vida (Cf. HEIDEGGER, 2010, p. 15). Sendo o cuidar o sentido próprio da vida, deve ser objetivo da filosofia, sem ser “uma fantasia da vida”, compreender que essa vida em sua facticidade acontece nas suas possibilidades, onde se faz determinante a decisão do homem. A tarefa da filosofia está em manter o homem no mundo e na vida, no caminho da vida fáctica onde encontra a si mesmo.

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Há também a tradução latina em que cuidado é traduzido por quaero, significando angústia e sofrimento.

Agostinho vive nas preocupações de cada dia. É nesse viver que o hiponense se depara com a existência, com as possibilidades e incertezas da própria vida. Essa facticidade “perpassa e atravessa meu existir autêntico. Insegurança, perigo, possibilidade. Modos de significância, de reivindicar, solicitar a realização.” (HEIDEGGER, 2010, p. 199)

É nessa direção que deve o homem procurar o si mesmo, nessa vida de possibilidades e incertezas. Aqui surge a tentatio, “na medida em que está aí, ista vita, deve ser experimentada assim, sendo o si-mesmo assumido assim na facticidade plena da experiência.” (HEIDEGGER, 2010, p. 201). Mas aqui também nasce o momento de decisão do homem, revelando aspectos positivos da tentação como parte dessa vida, onde pode o homem escolher se reunir a Deus pela continência. “Ó amor que sempre ardeis e nunca Vos extingui! Ó caridade, ó meu Deus, inflamai-me! Ordenais-me a continência? Dai-me o que ordenais e ordenai-me o que quiserdes!” (AGOSTINHO, 2006, p. 244).

Aqui Heidegger encontra a cura como ponto chave das Confissões de Agostinho, apresentando as três formas de tentação como aquilo que concretiza o cuidado. “[A tentatio não é] um acontecimento, mas um sentido de realização existencial, um como da experiência.” (HEIDEGGER, 2010, p. 234)

O cuidado, segundo Heidegger, se apresenta de diferentes maneiras a partir de sua realidade, ou seja, o mundo, os outros e o si mesmo. Heidegger explicou como “o ‘ser-si-mesmo’, e ‘ser-no-mundo’ é ‘ser-com’, como características estruturais do cuidade.” (BRACHTENDORF, 2008, p. 233). Para Heidegger, Agostinho apresenta, para essa divisão, as três formas de tentação que revelam o cuidado, ou seja, aquilo que está no próprio homem (si mesmo) como concupiscência da carne, sua relação com o mundo enquanto concupiscência dos olhos e a ambição (ambitio saecular) como aquilo que surge no ser-com da própria vida.

Seguindo a leitura de Ser e tempo, Heidegger também trata o cuidado a partir da propriedade e da impropriedade. O homem ao viver preso as tarefas do cotidiano, vive de maneira “impessoal”, revela no ser-si-mesmo um “preocupar-se com” que se

dirige a uma ocultação de si mesmo, o que Heidegger chamou de fuga de si. “Chamamos de ‘fuga’ de si mesmo o fato da pre-sença de-cair no impessoal e no ‘mundo das ocupações’.” (HEIDEGGER, 2005, p. 249)

Por outro lado, aceitar a si mesmo é o que coloca o homem no modo de viver autêntico, como propriedade. Ao perder-se nas muitas coisas do mundo, o homem perde e esquece a si mesmo. Contudo, é preciso observar que “nem todo retirar-se de... nem todo desviar-se de... é necessariamente uma fuga.” (HEIDEGGER, 2005,p. 249). Ou seja, há um caminho para que o homem retorne a si mesmo: a angústia, pois ali “subsite a possibilidade de uma abertura privilegiada [...]. retira a pre-sença de sua de-cadência e lhe revela a propriedade e impropriedade como possibilidades de seu ser.” (HEIDEGGER, 2005, p.255)

4.2 ANGÚSTIA E MEDO

No §40 de Ser e tempo, a saber, A disposição fundamental da angústia como abertura privilegiada da pre-sença, Heidegger cita Agostinho ao falar de angústia e medo. Segundo o pensador alemão, o hiponense apresentou o temor como caminho para quem almeja a felicidade fundamentada naquilo que se pode perder66.

Segundo Agostinho, todo aquele que se voltar às coisas do mundo, esquecendo-se de Deus, fundamenta sua felicidade em coisas passageiras. Assim, surge a questão sobre como é possível ser feliz aquele que ama o que perece. Nesse temor da perda, somente o mal se faz presente, pois o bem não precisa temer o perecível.

Agostinho pensou o temor de duas maneiras: o temor da perda e o temor que se torna útil ao homem quando é dirigido a Deus. O bispo de Hipona revela um temor que conduz o homem a Ele, naquilo que, quem nesse caminho se encontra, teme o

66 Além de Agostinho, Heidegger cita Lutero que tratou do temor “fora do contexto tradicional [...], em

seus comentários sobre o Gênesis onde, a bem dizer, foi mais penetrante do ponto de vista da edificação do que do ponto de vista conceitual.” (Cf. HEIDEGGER, 2005,p 254). Heidegger se refere também a Kierkegaard como aquele que com maior afinco tratou da angústia dentro do contexto teológico.

pecado, teme estar perdido. A esse temor, Agostinho chamou Timor Castus, sendo puro o temor que leva o homem a Deus.

O pecado afasta o homem de Deus e o faz perder a si mesmo entre as coisas mundanas. “No pecado, o si-mesmo se iguala ao mundo que só consegue interpretar a si próprio partindo do mundo.” (BRACHTENDORF, 2008, p. 235). Heidegger chamou esse caminho de de-cadência e impropriedade.

“Deformis [deformada] é minha vida.” (HEIDEGGER, 2010, p. 188). Na linguagem heideggeriana a dispersão se dá por um afastar-se de si sem contemplação. Para o autor contemporâneo, a vida é antes um manter-se aberto de maneira que, “toda a minha esperança não descansa senão em Deus”. Mas, esperança que descansa em Deus a partir do desespero, da insegurança da vida. Nessa esperança vive o esforço pela continência.

Porque “in multa defluere.” (HEIDEGGER, 2010, p. 189). Em muitas coisas, diz Agostinho, nos dispersamos. É interessante notar que para Heidegger o movimento contrário à dispersão é também um movimento contra o desfazer-se da vida, o que nos leva a outro ponto de grande valor para nosso estudo: a tentatio como abertura para decisão e esta como caminho em direção ao “domínio de ti mesmo.” (HEIDEGGER, 2010, p. 188) – continência.

A dispersão da vida (defluxus) acontece entre o timere e o desiderare. Santo Agostinho mostra como a vida é vivida numa ambiguidade, ou seja, o movimento realizado pelo homem acontece entre o desejo e o temor. “Nos reveses anseio pela prosperidade, e nas coisas prósperas temo a adversidade.” (AGOSTINHO, 2006, p. 244). É nessa ambiguidade da vida do homem que nasce o curare. Na insegurança da vida acontece o “estar preocupado com”. Agostinho não revela apenas um medo das coisas mundanas.

Quando na adversidade, o homem teme e esse temor nasce fora de si mesmo, ou seja, existe um medo das coisas do mundo, fortalecendo o desejo pela prosperidade. Por outro lado, quando na prosperidade, surge um temor dentro de si,

um medo que acontece no próprio homem. O homem é, assim, um peso para si mesmo, peso que é próprio do viver fáctico. Agostinho se transforma num peso para si mesmo ao carregar uma vida vivida entre o desejar e o temer. Mas, teme o homem a Deus?

No segundo capítulo deste estudo, no tópico intitulado Objetualidade de Deus, podemos ler sobre um procurar o objeto amado que acontece primeiro numa busca do homem por si mesmo. Assim, como já vimos, após perguntar “quem é Deus?”, Agostinho entende que seu caminho deve iniciar pela pergunta “e tu, quem és? Um homem.” Entendemos também que toda procura é movida por um amor, afinal, procuramos o objeto amado e perdido.

Segundo Agostinho, no mesmo caminho que começa na procura pelo objeto de nosso amor, nasce no coração do home um medo, um Timor Castus. Mas, também acontece nesse procurar, um medo da perda, da punição, um Timor Servilis. É aqui que Heidegger separa o medo nascido no interior do homem e o medo mundano, separando assim, a angústia do medo que pode escravizar o homem. “Timor servilis seu poenalis que ‘leva a uma punição’; e o Timor castus, não como medo serviçal, mas como um amigo.” (MACHADO, 2006,p.125)

Ao carregar o medo da punição, o homem pode esquecer o motivo original de sua vida: encontrar a si mesmo, encontrar a Deus. Quando o caminhar é motivado pela busca do Bem, pela procura daquilo que sempre se fez presente, mas que em parte foi esquecido, os medos do homem ganham novos significados, são então puros, pois nascem no amor e na procura do bem, no amor a Deus.

Temer faz parte do viver fáctico, da vida do homem. O medo puro nasce no momento em que o homem percebe a grandeza de Deus e teme perdê-lo. Esse medo não surge na dispersão da vida, já não teme o homem as tentações, mas as recebe com alegria, pois aqui se confirma sua decisão. O medo puro cresce na fé e na certeza de que Iaweh “me sondas e me conhece: conheces meu sentar e meu levantar [...]. Para onde irei, longe do teu espírito? Para onde fugirei da Tua face?” (SALMOS, 139:1-7)

4.3 CONCUPISCENTIA CARNIS

Heidegger apresenta a concupiscência da carne a partir do desejo (voluptas), o atrativo dos aromas (illecebra odorum), os prazeres do ouvido (voluptas aurium), os prazeres dos olhos (voluptas aculorum) e desejo pelas coisas exteriores (operatores et sectatore pulchritudinum exteriorum.

A concupiscência da carne se refere aos prazeres da sexualidade, do comer e do beber, da música e dos aromas. Agostinho reconhece sua luta e revela: “sustento uma guerra quotidiana com jejuns, reduzindo o corpo à escravidão.” (AGOSTINHO, 2006, p. 246). Essa luta constante acontece na “facticidade na qual me mantenho e na qual me deparo com a “existência [...] que perpassa e atravessa o meu existir ‘autêntico’. Insegurança, perigo, possibilidade [...]”. (HEIDEGGER, 2010, p. 199)

No comer e no beber não reside nenhum problema quando destinados para a sua verdadeira tarefa. A pergunta de Agostinho é se comemos e bebemos para conservar o corpo ou se nisso adquirimos algum prazer. Heidegger percebe a inquietação de Agostinho nessa guerra cotidiana: “Agostinho percebe estas experiências: preocupações de seu dia a dia. Esta cotidianidade (dia e noite) envolve horas de refeição e horas de repousar.” (HEIDEGGER, 2010, p. 198)

Para o homem, o comer e o beber devem ser como “medicamenta” para o corpo, ou seja, existe uma necessidade para se conservar o corpo. Por outro lado, o comer e o beber podem passar da necessidade ao prazer. Aqui Heidegger esclarece que o homem buscando reparar as forças do corpo, se deixa levar pelo prazer que há no mundo, travando assim uma incessante guerra em seu si mesmo, pois “somos um ente corruptibile e temos que suportar com dificuldade tal peso.” (HEIDEGGER, 2010, p. 198)

O comer e o beber carregam dois lados opostos, ou seja, a saúde do corpo e o mero prazer. Mas o homem, exposto às tentações, sofre com a concupiscência do comer e do beber, pois “esta paixão não é coisa que se possa cortar logo de uma vez [...] quem não se deixa arrastar além do limite da necessidade?” (AGOSTINHO, 2006, p.

249). No entanto, mesmo que abandone os prazeres do comer e do beber, o homem segue, nessa caminhada em busca da vida feliz, numa inquietação que não cessa, pois ainda que se livre dos prazeres, não pode o homem livrar-se de si mesmo67.

O maior exemplo de concupiscentia carnis é o desejo sexual. Assim como o comer e o beber trazem em si momento opostos, a saber, a saúde e o prazer, o desejo sexual carrega o dilema da reprodução e também do mero prazer, onde o homem se afasta de Deus. No entanto, como podemos constatar nas Confissões, o desejo sexual pode ser abandonado, como fez Agostinho, mas o comer e o beber se configuram numa dificuldade, pois não pode o homem simplesmente abandoná-los.

Agostinho se refere ao desejo sexual através de imagens que aparecem no sono. Aqui o autor das Confissões se questiona sobre o seu “eu”, se é o mesmo “eu” quando acordado e quando dormindo. Heidegger deixa claro que esse “eu” a que se refere Agostinho não está na consciência, mas na passagem do sono ao acordar, ou seja, no deixar levar-se pela tentação durante o sono e a decisão que acontece quando desperto. É nessa passagem entre a sedução e a decisão que a experiência da facticidade se manifesta, pois “nessa experiência, eu caio em mim mesmo, re- caio sempre no mundo de mim mesmo (Selbstwelt); eu ‘sou’ e ao mesmo tempo ‘não sou’ eu mesmo, o meu ser cai – e com isso se – em um mais originário não-ser.” (ESPÓSITO, 2010, p. 36)

Não é sem razão que Heidegger ao tratar da concupiscência da carne fala também do “problema do eu sou”. Incluindo a experiência que acontece na dualidade entre ser e não-ser como Agostinho relata em suas Confissões a experiência do olfato que, mesmo não sendo um problema maior, não se pode confiar, pois o homem pode sempre errar, revelando um questionamento sobre si mesmo: “Quem é que,

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O maior exemplo de concupiscentia carnis é o desejo sexual. Assim como o comer e o beber trazem em si momento opostos, a saber, a saúde e o prazer, o desejo sexual carrega o dilema da reprodução e também do mero prazer, onde o homem se afasta de Deus. No entanto, como podemos constatar nas Confissões, o desejo sexual pode ser abandonado, como fez Agostinho, mas o comer e o beber se configuram em dificuldade, pois não pode o homem simplesmente abandoná-los. (Cf. AGOSTINHO, X, 21). Agostinho se refere ao desejo sexual através de imagens que aparecem no sono. Aqui Agostinho se questiona sobre o seu “eu”, se é o mesmo “eu” quando acordado ou quando dormindo. Heidegger deixa claro que o esse “eu” a que se refere Agostinho não está na consciência, mas na passagem do sono ao acordar, ou seja, no deixar levar-se pela tentação durante o sono e a decisão que acontece quando desperto.

sendo pior, não se pode tornar melhor, e de melhor descer a pior?” (AGOSTINHO, 2006, p. 250)

Nessa possibilidade de sempre cair, Heidegger conclui que “o que é a vida” é a própria experiência do si-mesmo. Mas, “não é a vida do homem sobre a terra uma tentação constante?” (AGOSTINHO, 2006, p. 244). Ainda que a vida do homem seja uma tentação sem fim, não se pode dizer que a dispersão é a responsável pela facticidade. Pelo contrário, o dispersar-se nas muitas coisas do mundo acontece e se “funda nessa facticidade”. (ESPÓSITO, 2010, p. 27). Assim, o tornar-se continente não é uma experiência que exige um distanciar-se de si mesmo, mas antes, a continência acontece nesse estar lançado no mundo.

4.3.1 Voluntas e Voluntates

No livro VIII das Confissões, Agostinho relata sua conversão apresentando a luta travada entre as vontades, uma concupiscente e a outra espiritual. Agostinho reconhece uma dependência do homem em relação ao divino, pois mesmo que caminhe em direção ao bem, sem o auxílio de Deus, não pode o homem livrar-se de sua prisão. “O inimigo dominava o meu querer e dele me forjava uma cadeia com que me apertava.” (AGOSTINHO, 2006, p. 173)

É possível notar que reside no homem uma vontade e que essa vontade possui aspirações, seja para o bem, seja para o mal. Tal pensamento foi retirado do problema apresentado por Paulo ao dizer: [...] não consigo entender o que faço; pois não pratico o que quero, mas faço o que detesto.” (ROMANOS, 7:15). Na passagem da Carta de Paulo aos Romanos, podemos ler e entender que existe uma vontade que se dirige ao bem, mas existem nele as aspirações da vontade para o mal68.

A vontade humana pode cair e isso fica evidente no relato das Confissões, no livro VIII, onde Agostinho apresenta uma vontade (voluntas) que deseja e vontades

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São Paulo se refere aqui ao problema, também colocado por Agostinho, do homem interior e exterior. Este homem interior designa a razão humana que se opõe ao homem exterior, ou seja, ao corpo que se dirige as coisas do mundo.

(voluntates) que caem e se encaminham para o mal. O que Agostinho pretende é