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1 O JOVEM HEIDEGGER E O CURSO INTRODUÇÃO À FENOMENOLOGIA DA

3.2 O DISCERE E OS ATOS TEÓRICOS

À memória recorremos quando queremos ver toda a nossa vida, por ela recordamos, seja sensível ou não sensível. Nela conhecemos imagens dos objetos e também aquilo que ali está sem ter entrado por nenhuma porta dos sentidos. Por meio dela podemos conhecer, ordenar o que estava confuso.

Tudo o que dissemos acima só foi possível pela memória. No entanto, devemos concordar que não estamos falando aqui de simples captação de informação. Sabemos, como já foi dito, que a memória ultrapassa tudo isso. Passa a ser um processo também de criação do próprio homem.

Agostinho nos apresenta facilmente que algumas imagens de objetos estão na memória, pois ali entraram pelos sentidos, mas não deixam de ser apenas imagens. A questão que surge aqui diz respeito a lembrança dos objetos sensíveis e no como são apreendidos pelo homem. No entanto, isso mudo quando falamos de objetos não sensíveis, porque aqui não podemos explicar nem pretender determinar como informações entram na memória. Como acontece, portanto, nos atos teóricos?

Não estamos mais falando de imagens de objetos, uma vez que, fica impossível para um homem que escreve, por exemplo, não estar na posse do próprio conteúdo. E aquele que discursa? O conteúdo do qual falamos agora não possui um representante. Para que possamos escrever agora devemos possuir o conteúdo mesmo, não uma imagem. O que temos então, no conhecimento teórico, é um “conhecimento sem corpo.” (AGOSTINHO, 2006, p. 230).

“Sem imagens vemos em nosso interior, tais como são em si mesmas.” (AGOSTINHO, 2006, p. 228), e agora nos deparamos com conhecimentos que se não entraram por nenhuma porta dos sentidos, parecem que ali sempre estiveram,

ser uma caminhada sobre os fundamentos da memória, a direção até ela. Isso concebemos porque a confissão é o lugar que o homem chega ao si mesmo e onde se depara com a impossibilidade de tudo compreender. Notemos que essa dificuldade é posta diante da complexidade da memória que contém tudo o que é do homem, abrindo-o todas as possibilidades, ao passo que também mantém seus segredos, impedindo ao homem tudo conhecer. Portanto, são direções seguidas por Agostinho que necessariamente o encaminham à memória, a saber, a confissão, a busca por Deus, o encontrar a si mesmo e a essência da alma.

como que “já em tempos aprendemos e conhecemos estas coisas.” (AGOSTINHO, 2006,p. 229). Todo conhecimento teórico está na memória e só ali existe, portanto, Agostinho nos revela que quando buscamos tal conhecimento, precisamos de os “coligir” (colligenda) de toda dispersão. Aqui surge o cogitare, que é sempre um colligere. “[...] “só ao ato de coligir (colligere), isto é, ao ato de juntar (cogere) no espírito e não em qualquer parte, é que propriamente se chama “pensar” (cogitare).” (AGOSTINHO, 2006, p. 229)

A trajetória agostiniana na busca por Deus, que é também a busca por si mesmo, leva o homem ao lugar mais secreto onde tudo se realiza: a memória. Esta, por sua vez, procura sempre em si mesma, seja na busca pelo objeto perdido cujo caminho é feito seguindo as imagens dos objetos sensíveis que ali entraram, seja no procurar em seu interior aquilo que existe em si mesmo e que ali sempre se fez presente.52

Agostinho nos dá exemplos de objetos não sensíveis que estão em nossa memória nas três questões levantadas, “se uma coisa existe (an sit)? Qual a sua natureza (quid sit)? E qual a sua qualidade (quale sit)?”,[...] Escondi na memória não as suas imagens mas os próprios objetos (AGOSTINHO, 2006, p. 228). Agostinho ainda acrescenta que há determinadas coisas que “estão sempre que à mão” (AGOSTINHO, 2006, p. 230) e esse “estar disponível determina a maneira como estas três formas de conhecimento, o “an sit, quid sit e quale site”, se relacionam com a memória.” (MARTINS, 2002, p. 395)

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Santo Agostinho nos apresenta uma teoria do conhecimento criando uma separação entre o conhecimento sensível, aquele que está em nós pelos sentidos, e o conhecimento das coisas não- sensíveis que só ao homem é permitido perceber. Aqui o autor medieval se aproxima da teoria platônica da reminiscência ou anamnésis, ou seja, o ato de recordar, mas recordar o que ali já existe, onde aprender seria um recordar o que se viu em outros tempos. Entendendo que Agostinho adotou em parte a teoria platônica das ideias, segundo a qual a alma ao encarnar num corpo trazia de outro mundo as imagens das coisas, podemos perceber que em tal teoria Agostinho viu ali o universo das ideias divinas que os homens recebem por uma iluminação. Dessa forma, os homens recebem o conhecimento das verdades eternas por uma iluminação divina, ou o que para Platão seria o conhecimento de verdades inteligíveis. Assim, quando dizemos o que na memória já existe, nos referimos à teoria agostiniana da reminiscência em duas direções: primeiro o que já nos é conhecido quando partimos a procura de algo, pois não podemos amar o desconhecido, sendo assim a memória busca em si mesma quando procura a imagem certa de determinado objeto que ali entrou pelas portas dos sentidos. Segundo, o que na memória está, o que conhecemos sem auxílio dos sentidos, aquilo que existe por si mesmo, o que é ali depositado, para Agostinho, não porque a alma trouxe de outros tempos, mas porque Deus iluminou a mente humana, colocando ali conhecimentos que a alma utiliza à medida que os recorda.

Heidegger chamou de ad manum positum est, estar ao alcance da mão o que “está disponível já ordenado, isso é o consciente, o aprendido.” (HEIDEGGER, 2010, p.167). Revelando-nos uma memória que age duplamente: compreendendo-se enquanto uma realização agora e como uma saber do que já se realizou, do que “pelo espírito foi juntado, já pensado.” (HEIDEGGER, 2010, p. 168). O que é posto ao alcance da mão significa para Heidegger “o acto teórico do conhecimento; ele não é uma simples visão teórica, mas um conhecimento acompanhado do agir.” (MARTINS, 2002, p. 396).