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1 O JOVEM HEIDEGGER E O CURSO INTRODUÇÃO À FENOMENOLOGIA DA

3.4 A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO

Falamos que na memória estão os afetos da alma, mas de maneira diferente de quando esta os sentiu. Sabemos que a memória guarda as imagens das coisas e que tudo o que ali entrou sem auxílio dos sentidos. No entanto, Agostinho nos lança outra indagação: “Quem poderá facilmente explicar se esta recordação se produz por meio de imagens ou não?” (AGOSTINHO, 2006, p. 232)

Se recordamos algo, por exemplo, uma pedra ou o sol. Se não temos tais objetos diante da vista, podemos afirmar que na memória entraram pela devida porta dos

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Atos intencionais ou na linguagem Husserliana vivencias intencionais. Neste sentido nos diz a autora Maria Manoela Martins Brito: “Os afectos são as vivencias intencionais da fenomenologia noemática, tal como o descreve Husserl [...]. A estas vivencias intencionais correspondem os correlatos intencionais que nós podemos qualificar, em linguagem agostiniana, as imagens representadas e gravadas na memória destes actos intencionais.” (MARTINS, 2002, p. 401). Para uma breve exposição, podemos dizer que Husserl, ao herdar de Brentano o termo intencionalidade, trouxe tal definição ao estudo da consciência, uma vez que todas as vivências se dão na e pela consciência. Esta sendo sempre consciência de algo.

sentidos e o que ali estão são imagens. Mas, o que acontece quando evocamos uma dor? É certo que se não sente o homem a dor, ela não está presente, mas se sua imagem ali não estivesse, como distinguir a dor do prazer? “Aqui já tenho presente o próprio objeto.” (AGOSTINHO, 2006, p. 232)

E quando pronunciamos a palavra memória? De onde temos uma imagem da memória? Será de si mesma? Fica evidente que o hiponense aqui já nos prepara para algo que é oposto a memória: o esquecimento. “Está ela presente a si mesma, pela sua imagem, e não por si própria?” (AGOSTINHO, 2006, p. 233)

“O que é o esquecimento senão a privação da memória?” (AGOSTINHO, 2006, p. 233). Sendo o esquecimento este não estar presente, como podemos falar que se lembra a memória de ter-se esquecido de algo? Como podemos recordar algo já esquecido? Ora, a resposta de Agostinho está em colocar o esquecimento na memória. O homem retém na memória tudo o que se lembra, lembrando-se do esquecimento, logo, a memória o retém. “Sua presença faz com que não o esqueçamos [...]” (AGOSTINHO, 2006, p. 233).

Todavia, nos parece estranha a presença do esquecimento. De fato, Agostinho nos revela que tal presença não permite que nos esqueçamos do esquecimento, mas nos torna esquecidos. Como isso se dá?

“Não se deverá concluir que o esquecimento, quando o recordamos, está presente na memória, não por si mesmo, mas por uma imagem sua? De fato, se ele estivesse presente por si mesmo, faria com que não o lembrássemos, mas o esquecêssemos.” (AGOSTINHO, 2006, p. 233)

Recordamos-nos então do esquecimento, mas é sabido que o recordar está também presente na memória, não apenas a lembrança do esquecimento, mas a lembrança da própria memória. Agostinho nos apresenta agora a presença da lembrança da memória que ao lembrar-se de si, está presente a si mesma e isso alcança por si mesma. Ao lembrar-se do esquecimento, a memória se faz presente e torna também o esquecimento presente (praesto est). Aqui surge um problema que coloca tudo o que dissemos acima em questão ou, ao menos, embaraça-nos as ideias. Se o esquecimento é ausência de memória, como nos conta o autor medieval, como pode

ele estar presente na memória e ainda estar presente juntamente com a memória? Ambos se fazem presentes? E como recordar algo já esquecido ou que não se tem notícia?

A resposta pode ser encontrada numa lembrança do esquecimento, um esquecimento que é conhecido, reconhecido, permitindo que Agostinho diga: “Quando falo no esquecimento e conheço o que pronuncio, como poderia reconhecê-lo, se dele não me lembrasse?” (AGOSTINHO, 2006, p. 233). Aqui não há um objeto para ser reconhecido e recordado, nem o som de uma palavra. A memória reconhece seu significado.

No entanto, a pergunta ainda segue, “como é então, que o esquecimento está presente na memória se, quando está presente, não me posso recordar?” (AGOSTINHO, 2004, p. 230). A dificuldade criada pelo santo Doutor está em compreender o modo como temos a lembrança do esquecimento. Apesar de parecer uma contradição, Agostinho nos revela que o esquecimento, a oblivio, está disponível para o homem, pois se assim não fosse, como saberíamos de sua existência? E mesmo quando esquecemos, por exemplo, o nome de alguém, quando falamos de algo que esquecemos, não podemos dizer que nada existe mais em nossa mente, pois não é verdade que recordamos de tal esquecimento? Está assim disponível.

“E se fala agora do “esquecido”, compreendo o que quero dizer. O esquecer mesmo deve, pois, estar aqui. Quando me represento a oblivio (oblivio: o tornar esquecido e o esquecido) está praesto [disponível para mim]: memoria qua meminerim, oblivio quam mimenerim [a memória pela qual recordo, o esquecido que recordo].” (HEIDEGGER, 2010, p. 170)

Apesar de a exposição agostiniana nos trazer uma ambiguidade aparente, a saber, o esquecimento enquanto ausência de memória estar presente junto e na memória, para Heidegger a memória e o esquecimento estão num “modo de execução” que correspondem o estar presente e o estar ausente, como formas de apresentação. A questão se encontra na presença da memória e da oblivio que não podem estar presentes juntas, simultaneamente presentes. Do que resultaria dizer, para Heidegger, que quando nos recordamos de algo, não está presente o esquecimento,

“a memória se dá aqui [representação] – a oblivio não pode se dar aqui.” (HEIDEGGER, 2010, p. 171)

A memória é como um autorreconhecimento, o que podemos chamar de intencionalidade. Mas, como isso acontece se o esquecimento está presente? O esquecimento é o não-ser-aqui (Nicht-Dasein) e o seu sentido de relação está nesse “não estar presente” (non praesto est). O que Heidegger quer nos revelar é que o esquecimento, se é lembrado, “não é privatio radical da memória, isto é, possui um sentido intencional de relação.” (HEIDEGGER, 2010, p. 174). Quer dizer, na consciência de ter esquecido, aquilo que foi esquecido ainda “está ai”, ou seja, “embora tenhamos perdido algo, ainda o temos de alguma maneira.” (HEIDEGGER, 2010, p. 174).

Na memória, nessa grande potência que “tem não sei o quê de horrendo, uma multiplicidade profunda e infinita.” (AGOSTINHO, 2006, p. 234), o homem se depara com tudo o que a ele pertence, com aquilo que ele não pode atingir por completo, o si mesmo. Ali também o homem encontra a força de vida da memória (tanta vita vis) que faz com que essa vida seja buscada, assim como reconhece que não pode conhecer tudo sobre si mesmo, “seja como for, [...] é inexplicável e incompreensível [...]” (AGOSTINHO, 2006, p. 234)

Em seu procurar, o homem se lança numa jornada que começa no exterior. Direcionado para o interior, busca por si mesmo, almejando encontrar a Deus. Mas, o caminho iniciado agora por Agostinho é justamente aquele onde os mistérios não são compreendidos. “Que farei, ó meu Deus, ó minha verdadeira Vida? Transporei essa potência que se chama memória?” (AGOSTINHO, 2006, p. 235).

Mas, “o que significa “procurar?”[...] que é pois que procuro realmente?” (HEIDEGGER, 2010, p. 174). Transcendendo todas as forças, segue o homem em seu procurar para encontrar aquilo que já possui de algum modo. Aqui o homem caminha num lançar-se em direção a algo, na busca por Deus que se dá, não mais do exterior ao interior, sua jornada já iniciada. Caminha agora no interior de si mesmo, transpondo todas as forças. “Passarei, pois, além da própria memória, para

poder atingir Aquele que me distingui dos animais e me fez mais sábio do que as aves do céu. [...]” (AGOSTINHO, 2006, p. 235). Eis sua trajetória para encontrar algo que todos almejam, pois ali também se conservou a lembrança de uma palavra conhecida e procurada: a felicidade55. Mas, “como”?