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Africanidade & etnicidade: conformação de uma identidade religiosa Tínhamos falado da experiência de vida comunitária que trouxeram os africanos uma

vez expropriados de seu habitat e introduzidos na América como mão-de-obra escrava, mas que essas experiências de convívio não obstruíram os traços marcantes diferenciadores entre as comunidades. Independente de existir zonas de convergências culturais e comerciais, guerras inter-étnicas entre capturados escravizados, alianças matrimoniais, entre outras formas de contato, cada grupo étnico mantinha seus traços identitários. Porque um grupo étnico pode ser definido como um tipo de organização social caracterizada não só pelo auto- reconhecimento, senão pelo reconhecimento dos outros, o que se estabelece como atribuição categórica diferencial entre os grupos. Conforme Barth “uma atribuição categórica é uma atribuição étnica quando classifica uma pessoa em termos de uma identidade básica mais geral, presumivelmente determinada por sua origem e seu meio ambiente”. (1997, p.194)

A diferenciação dos grupos étnicos nas sociedades tradicionais africanas não somente se estabeleceu pela sua origem, meio ambiente ou tipo de organização econômica. No processo de distinção intervieram também traços culturais marcantes, como práticas religiosas, o sistema de parentesco, o papel desempenhado por cada indivíduo dentro do grupo, entre outros aspectos que compunham sua identidade como escarificações dos rostos e corpos, estilos de se vestir ou formas de ornamentar o cabelo.

Como foi demonstrado por historiadores africanistas a exemplo de Robert Slenes (1995), Linda Heywood (2002), Luis Nicolau (2006), Thornton (2004), entre outros, existiam amplas regiões na África com traços culturais semelhantes que, de certa forma, estreitavam os espaços das chamadas fronteiras étnicas, permitindo uma comunicação mais fluida entre grupos diferenciados. Estes autores destacam a necessidade de conhecer essas informações, pois permite aprofundar os estudos sobre as tradições culturais.

Outro autor que aborda a problemática dos contatos culturais na região da África Central é o etnolingüista sueco Armin Schwegler (2002), que estudou o Palenque de San Basílio na Colômbia, antigo sítio de desembarque e concentração de escravos que seriam distribuídos nas colônias espanholas. Hoje o San Basílio é uma comunidade com caracteres antropológicos interessantes, marcados pelos costumes de corte africano que sua população tenta manter. Fala-se uma língua crioula, tipo dialeto, que é empregada apenas dentro da

comunidade. Os ritos religiosos são próprios desse coletivo e, ainda que seja uma comunidade fechada, não existe o incesto. Schwegler estudou também as retenções idiomáticas dos bantos que persistem na linguagem cotidiana dos cubanos.18 Transferência que, segundo mostra o etnolingüísta, ascendeu de um tipo de linguagem religiosa para a sociedade cubana, em geral. O autor chegou à conclusão que a dita língua empregada em determinados círculos religiosos, considerada sagrada e cunhada como de origem banto, era um dialeto comercial empregado pelos povos que etnograficamente caracterizavam a dita região, cuja raiz é de origem ki- kongo. (SCHWEGLER, 2002)

A partir destes estudos salientamos que nunca se pode falar de tipos étnicos puros, cuja pureza se fundamenta no resultado do isolamento de uma comunidade, como refere Barth ao mencionar a tradição antropológica mais antiga que considerava que cada grupo humano mantinha sua cultura graças a uma ignorância belicosa de seus vizinhos, ou seja, graças ao isolamento de tais grupos em relação aos outros. Pelo contrário, a distinção destes grupos gerava-se do intercâmbio entre eles, incluídos os contatos comerciais, culturais, religiosos e mesmo bélicos.

As fronteiras étnicas existem como espaços de demarcações políticas, como lugares imaginários que identificam, delimitam, marcam, mostram e ressaltam determinadas características de distinção entre os grupos humanos. No entanto, elas não são estáticas, sendo constantemente atravessadas pelos contatos que se estabelecem no fluxo desses intercâmbios, em que participam vários grupos, em distintas direções (BARTH, 1997). Significa que existe uma permanente mobilidade social, um constante intercâmbio de informações entre os modos culturais, assim como a incorporação de novos símbolos à cultura, de modo a ultrapassar as fronteiras identitárias.

Em meio a esses intercâmbios, as culturas africanas foram se perpetuando em seus próprios espaços, aproximando-se em suas visões do mundo, em seus conceitos sobre o ser e o significado do grupo social, sobre a comunidade, a família, os idosos, os ancestrais, a natureza, a arte de aprender ofícios, incluindo a de contar sua própria história, valorizando cada ato acontecido. Pela tradição oral, estes conhecimentos foram transmitidos de geração em geração. Portanto, a característica mais forte entre os africanos da África pré-colonial foi a possibilidade de treinar a comunidade para manter e perpetuar na memória cada acontecimento apreendido em sociedade.

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Com a chegada dos europeus às costas africanas e, com isso, da possibilidade de realizar negócios utilizando como mercadorias a venda de seres humanos, a vida de todo o continente transformou-se abruptamente. As condições das guerras inter-étnicas que anteriormente convertiam os capturados em escravos, em que estes não eram obrigados a rejeitar seus deuses, perder suas línguas ou alterar seus modos de se reproduzir, mudou ante a relação com o europeu. O escravo foi transformado em mercadoria que tinha certo valor para os negociadores. Os africanos trocavam os capturados por especiarias, objetos, dinheiro e até armamento militar, enquanto a valoração do destino dessas vidas era calculada de forma mais cruel pelos europeus. Obrigatoriamente coisificados, os escravos eram forçados a produzir lucros durante longas jornadas de trabalho, conviviam em condições difíceis e sua vida social passava a ocupar um segundo lugar, visto que era comandada pelo senhor, dono da dotação de escravos.

O novo status de capturado transformou radicalmente a vida de todos aqueles que estiveram envolvidos no circuito do tráfico para Europa e o Novo Mundo. A partir desse momento os africanos foram transformados em objetos, perdendo toda valorização da sua existência humana, cujo valor como mercadorias dependia de determinadas características físicas. Eles foram expropriados do seu ambiente natural e afastados de tudo quanto lhes era familiar; passaram a sobreviver em condições adversas e instáveis, tendo que aprender a conviver entre estranhos, com os quais imaginaram traços étnicos e culturais comunais, até construírem em conjunto, de acordo com as novas condições, uma identidade baseada nas novas circunstâncias históricas, geográficas e sociais. Identidade que Nicolau (2006) situa no âmbito das etnicidades relacionais, entendida como o resultado de um processo dialógico e de contraste cultural ocorrido entre os diversos grupos englobados sob as várias denominações metaétnicas. Isto é, os falsos etnônimos impostos pelos escravistas aos escravizados vendidos como mercadorias, às vezes por corruptela idiomática ou por simplificações regionais, mas que reduziam em número e diversidade as referências da procedência desses cativos.

Como afirma Robert Slenes, referindo-se à experiência dos africanos provenientes da extensa área etno-lingüística banto:

[...] para muitos africanos esse processo iniciou-se não na experiência compartilhada da terrível travessia para a América, mas antes disso, no suplício da viagem para a costa; e começou pela descoberta que a comunicação com os companheiros dessa viagem não era impossível. A comunicação ou rompimento desse processo, contudo, teria dependido da experiência dos escravos no Novo Mundo, e as suas possibilidades de

encontrar outras afinidades entre si, para além da comunidade da palavra. (1995, p.11)

Ao considerar a afirmação de J. Lorand Matory sobre o comércio transatlântico de escravos como “a maior imigração transoceânica da história da humanidade até aquela época” (1999, p.53), e tomando em consideração a imposição do novo convívio ao qual foram submetidos os escravizados, resulta interessante comentar a forma arbitrária de classificação destes indivíduos para o comércio.

No processo de venda os escravos eram separados segundo a “nação” de procedência. Às vezes este termo coincidia com o lugar geográfico onde estava situado o porto de embarque. No entanto, não referenciava a região de nascença do africano. Era uma denominação mais de corte político que territorial, como afirma Vivaldo da Costa Lima (1974), ao se referir às nações que conformam os candomblés no Brasil. A respeito da questão, Matory salienta que, “de fato, essas nações eram freqüentemente agrupamentos impostos a diversos povos e a distintas ordens de categorias políticas, lingüísticas e culturais que foram unificados primariamente para os propósitos dos traficantes de escravos” (1999, p.56). Mas sempre ou quase sempre, foram designações dos traficantes europeus, cuja etimologia da palavra derivava de uma deformação ou incorreção da pronúncia da palavra original (NICOLAU, 2006).

Isso não significa em termos absolutos que entre os negros africanos escravizados e importados para o continente americano não existiram afinidades culturais ou potencialmente políticas, como afirma Matory (1999), aspecto com o qual concordamos. Contudo, consideramos que esse sistema classificatório foi por vezes excludente, arbitrário, porque dependeu dos pareceres ou apreciações dos traficantes e, sobretudo, dos donos de escravos. Para eles, era obrigação do escravo obedecer servilmente e trabalhar sem contestar. Apesar disso e das divisões inter-grupais, os grupos gerados dessa classificação adquiriram vida própria e cobraram do regime a exclusão cometida.

Alguns grupos étnicos foram preferidos em detrimento do outro em certas áreas da produção; os projetos da evangelização realizada pela Igreja Católica geraram irmandades que afirmaram essas identidades emergentes e integraram modos ancestrais de celebrar ou de adorar o divino. Cantos, ou turmas de trabalhadores, também se juntaram na base dessas identidades. E, como muitos sabem, também conspirações e rebeliões quanto anticonspirações, freqüentemente, seguiam e afirmavam essas novas divisões sociais. (MATORY, 1999, p.59)

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Vale lembrar que a maioria desses africanos procederam de culturas sem escrita, onde memória e oralidade constituíam a divisa fundamental na comunicação e no aprendizado. É por isso que a memória étnica que caracterizou essas sociedades no Novo Mundo funcionou como um bastião de resistência ante o esquecimento impingido pelos colonizadores. Na África, o aprendizado constituiu uma parte importante na aquisição de destrezas para conservar informações, lembrar fatos, transmitir conhecimentos e crenças e, aprender ofícios. Le Goff (1984) salienta que “o primeiro domínio onde se sacraliza a memória coletiva [...] é aquele que dá um fundamento –aparentemente histórico – à existência das etnias ou das famílias, isto é, dos mitos de origem” (1984, p.25). Elemento básico essencial das religiões e religiosidade nascidas das culturas africanas nos países da América, com peculiaridades autônomas.

Nelas, os mitos de origem validaram as sustentações da existência dos orixás e, pelas suas ações, segundo reflete a mitologia iorubana, o mundo se foi conformando. Pelas suas bocas as forças divinas indicaram o caminho a homens e mulheres e fundamentaram ideologicamente as suas existências. Elementos culturais mantidos nas memórias de africanos que se transmitiram de geração em geração, com as deformações que a oralidade impõe, mas que reforça as curiosidades e interesses dos depoentes quanto ao continuum das tradições herdadas e conservadas no Candomblé nagô-ketu e na Santería.

A respeito da oralidade, Hampaté Ba (1982) afirma que a utilização da palavra na África das tradições orais encerrava uma origem divina. Isto é, contribuiu para criar um homem africano particular, de alma africana. Tradição oral que permitiu conservar e transmitir os mistérios da criação, ao tempo que constituiu uma grande escola da vida. Nessas sociedades a memória era a alma da palavra que, em sua máxima expressão, constituía a História sem escrita. Segundo Le Goff (op. cit.), esse tipo de memória mostrou particular interesse pelos conhecimentos práticos, técnicos, de saber profissional e pelo passado ancestral. O historiador francês salienta que “a memória coletiva parece, portanto, funcionar nestas sociedades segundo uma ‘reconstrução generativa’ e não segundo uma memorização mecânica” (1984, p.15). Em tal sentido destaca ainda:

Nas sociedades sem escrita a memória coletiva parece ordenar-se em torno de três grandes interesses: a identidade coletiva do grupo que se funda em certos mitos, mais precisamente nos mitos de origem, o prestígio das famílias dominantes que se exprime pelas genealogias, e o saber técnico que se transmite por fórmulas práticas fortemente ligadas à magia religiosa. (Ibid., p.16)

É necessário que nos detenhamos nestes aspectos sinalizados por Le Goff, tendo em vista a reconstrução estrutural deste tipo de organização social, no novo contexto em que foram introduzidos os africanos escravizados, que marcou esse continuum cultural, social e religioso que os depoentes iniciais – Cao e Rigo – querem constatar comparativamente em ambos os países em estudo, nas manifestações religiosas que estudamos.

Esse tipo de memória foi apenas base da fusão dos diferentes grupos étnicos africanos. Essas reconstruções foram a principal forma com que os descendentes de africanos, nascidos na América, se aproximaram do conhecimento da mitologia ancestral africana, proveniente das culturas originárias de tradições orais. Instrumentos culturais que utilizaram os escravizados para, sobre a base da comunicação verbal, compartilhar fatos, às vezes não tão comuns ou semelhantes, porém que transmitiam conhecimentos que ajudaram na formação de um novo tipo de identidade social, em correspondência com as novas condições de vida.

Os africanos e seus descendentes na América tiveram que construir sua própria identidade, constituir-se como classe social, validar-se como pessoas, mesmo não contando, pelo menos durante os primeiros séculos de escravidão, com meios legais para ser representados como cidadãos. No entanto, eles entraram em um jogo de negociação constante, que constituía um ato de resistência, aproveitando-se da memória treinada para não esquecer sua identidade primária ou de origem, ao fazerem o jogo de adotar vários nomes para poder construir mundos paralelos.

Como componente de sua rebeldia, esses africanos de diversas origens em seus contatos continuaram se comunicando com seus conterrâneos em sua língua materna, quando as circunstâncias o permitiram e, quando era possível, por meio de músicas e de danças, alimentando assim o parentesco por nação, segundo refere João Reis ao descrever “Um natal africano no Recôncavo baiano” (2002). Reconstruindo o relato do capitão de milícias José Gomes para o seu superior, o capitão-mor Francisco Pires de Carvalho e Albuquerque, Reis exemplifica como se produziram essas aproximações étnicas:

Num dia das oitavas do Natal – provavelmente entre sábado e domingo da semana anterior ao 25 de dezembro, que em 1808 cairia um sábado, – um grande número de escravos desceu dos engenhos à Vila de Santo Amaro para celebrar à moda africana. Naquele fim de semana, negros dos canaviais se reuniram aos da cidade, concentrando-se em diferentes locais de acordo aos principais grupos étnicos, ou nações, a que pertenciam: os angolas ocuparam as imediações da Igreja do Rosário, uma devoção muito querida destes africanos; os jejes se juntaram “no sitio do Sergimirim”, um rio local; os haussás e nagôs se reuniram um local próximo, “na rua de detrás, junto ao Alambique que tem de renda Thomé Correa de Mattos [...]” (2002, p.105)

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Percebemos como se demarcavam os espaços de identificação étnica dentro de um mesmo espaço territorial, ao tempo em que se produziram as aproximações culturais inter- étnicas geradas a partir de determinados padrões culturais ou símbolos comunicativos regionais. Citando o documento original, Reis relata outros detalhes dessa aproximação cultural entre haussás e nagôs. Detalhes proporcionados pelo capitão em seu informe:

[...] vestidos de meio corpo, com um grande atabaque, e alguns adereçados com algumas peças de ouro, e continuaram com suas danças não só de dia, mas ainda grande parte da noite, banquetearam-se em uma casa vazia, na mesma rua detrás, e aí houve muito que beber, a custa dos mesmos pretos [rãs.] do dito brinquedo. (Ibid., p.105-106)

Eis outra característica que desapontava as autoridades coloniais: a organização e contribuição para o divertimento, assemelhando as festas do cativeiro às festas comunitárias africanas. Pelo que se infere da leitura do artigo, o fato mais importante era a reunião entre negros de uma mesma etnia, nação ou região. Nesses contatos estava garantida a lembrança e perseverança do legado cultural africano, muitas vezes incompreendido pelas autoridades coloniais. Reis avalia as festas entre os negros como: “rituais de identidade étnica, reunião solidária de escravos e libertos, competição e conflito entre os festeiros e como ensaios para levantes contra os brancos” (2002, p.101), pelo despertar da consciência identitária que elas suscitavam. Essas estratégias de sobrevivência étnica não foram exclusivas dos negros baianos ou brasileiros. Situação similar se evidenciou em Cuba, assim como em outras colônias do Novo Mundo.

Em sentido geral, a festa de natal descrita por Reis lembrara as realizadas em Cuba no dia seis de janeiro de cada ano, o Dia dos Reis Magos, comemoração também festejada no Brasil. Para a ocasião, em Cuba, os senhores donos de escravos autorizavam as reuniões de negros, com as saídas pelas ruas de Havana dos grupos de negros de uma mesma etnia ou nação, tipo de organização conhecida como Cabildos de Nação. Era ocasião propícia para africanos de uma mesma nação se reencontrar, dançar, cantar pelas ruas da cidade e cumprimentar as autoridades coloniais, plenos de alegria e felicidade. Mesmo comemorando o dia dos Reis Magos, atividade que fechava o natal cristão, a festa não constituía uma assimilação dos costumes dos brancos e sim uma oportunidade de reunião ou confraternização e sociabilidade étnica. Eles continuaram adorando seus deuses conjuntamente com os seus companheiros de infortúnio. Ao redor desses deuses construíram uma fortaleza ideológica que

até hoje funciona como porões onde se guardam as lembranças das origens.

Sob pena de submissão à colonialidade do poder, fazia-se necessário manter viva a memória do passado. Nesse sentido, converteu-se em tarefa primordial de sobrevivência recriar e socializar os conhecimentos acumulados desde a África, primeiro entre companheiros de infortúnio e depois entre os descendentes. Reconstruir ou reajustar as vidas ao compasso do tempo constituiu uma necessidade permanente para os sujeitos de origem africana.

O encontro de afinidades propiciou a criação de comunidades sob conceitos mais amplos. Usamos o termo afinidades, no sentido weberiano, como coletividade étnica e como comunidade lingüística e de culto, onde “se nutre uma crença subjetiva na procedência comum, de tal modo que esta se torna importante para a propagação de relações comunitárias, sendo indiferente se existe ou não uma comunidade de sangue efectiva”. (WEBER, 1991, p.270).

As novas afinidades repousaram no auto-reconhecimento e no reconhecimento dos outros, como atribuição categórica e classificatória que compatibilizou os interesses coletivos dos africanos diasporizados, muito mais do que a pureza de elementos étnicos. O processo de identificação mútua ajudou a organizar o relacionamento social entre os africanos com a nova experiência cultural. Em tal sentido a identidade étnica, pelo menos a imposta pelo colonizador, não foi o elemento essencial para o reconhecimento de múltiplas identidades e sim os elementos culturais que foram amalgamados nesses contatos, no percurso histórico da viagem e no convívio como cativos no território americano.

A diversidade cultural foi tão variada e diversificada quanto as possíveis formas de integração dos grupos afins. A História dá conta desses processos de integração que se produziram mediante uniões consensuais. A religião foi um elemento importante na preservação de etnicidades relacionais que deram lugar aos agrupamentos por nações. Portanto, não devemos esquecer que as lutas dos africanos por manterem vivas suas identidades nas novas circunstâncias foram cotidianas. Uma das marcas da luta diária daqueles homens e mulheres africanos foi o estabelecimento de parceiros e a formação de laços de parentesco familiar, mesmo com pessoas de outras origens étnicas. O mais importante eram as redes de sociabilidade que se estabeleceram. Essa oportunidade de manter vivas as tradições era uma contribuição para que elas continuassem a se reproduzir através dos casamentos endogâmicos. É neste ponto da trajetória da vida dos africanos e seus descendentes, em que família e religião convergem em relação à dialética da vida cotidiana

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dos cativos, produzindo um continuum de suas simbologias culturais como forma de preservar e transmitir as tradições trazidas com eles além dos mares.