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A família como espaço de construção de identidade na religiosidade de ascendência africana

Como vínhamos analisando, a vida comunitária foi um dos símbolos culturais característicos que uniu a diversidade étnica africana introduzida como mão-de-obra escrava

na América. Assim como comunidade-natureza-religião formava um todo indissolúvel nas culturas africanas, a família era o laço especial de união no interior dessas comunidades. Portanto, procurar parceiros nessas novas condições certamente significava um passo fundamental na vida dos africanos em cativeiro.

Os estudos sobre família escrava são numerosos no Brasil19, mas não em Cuba. O fio principal dos estudos brasileiros sobre a temática baseia-se em demonstrar sua existência como célula social e organismo comunitário; assim como as suas estratégias de sobrevivência cultural, econômica e social, no que diz respeito ao papel dos parceiros e à importância dos filhos nesses relacionamentos.

Em Cuba o trabalho pioneiro sobre o tema da família escrava é o da historiadora Carmen Barcia (2004) 20. Sem grandes referências de estudos anteriores, Barcia vasculhou os expedientes do Arquivo Histórico Nacional e os Registros Paroquiais para demonstrar a existência dessa forma de união consensual entre escravos cubanos e para mostrar as especificidades da vida comunitária entre eles. Derrubou, assim, a tese colonialista que tentava provar a sua inexistência, baseada no fato real da constante mobilidade da população escrava, haja vista o ato de compra e venda a que foram submetidos, que separava casais, pais e filhos. No entanto, chegou-se à conclusão de que, apesar da constante mobilidade da população escrava pelo sistema colonial como política desestabilizadora, a vontade de união entre eles constituía uma necessidade humana de sociabilidade.

Outras autoras que se debruçaram sobre esse tema de pesquisa foram Aisnara Perera e María de los Ángeles Meriño que, na mesma perspectiva de Carmen Barcia, vasculharam

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Podem-se mencionar, entre outros: MATTOSO, Kátia. Família e Sociedade na Bahia do Século XIX. São Paulo: Editora Corrupio, 1988; SLENES, Robert. Na senzala uma flor: esperanças e recordações da família escrava. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000; REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. Histórias de vida

familiar e afetiva de escravos na Bahia do século XIX. Salvador: Centro de Estudos Baianos, 2001; REIS,

Isabel Cristina Ferreira dos. A família negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas, São Paulo, 2007. GUDEMAN, Stephen. Purgando o

pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII. In: REIS, João José (Org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 39-59;

OLIVEIRA, Maria Inês Cortês. O liberto: o seu mundo e os outros. São Paulo: Corrupio, 1988; OLIVEIRA, Maria Inês Cortês. Viver e morrer no meio dos seus: nações e comunidades africanas no século XIX. Revista da

USP, n. 28, Dossiê Povo Negro - 300 Anos, dez. 95/fev. 96, pp. 175-193. GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

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Entre outros trabalhos que podem ser mencionados sobre a temática, se encontram: DÍAZ, Aismara Perera; FUENTES, Maria de los Ángeles Meriño. Esclavitud, família y parroquia em Cuba: Outra mirada desde la microhistória. México: Universidad Nacional Autónoma de México/Instituto de Investigaciones Sociales.

Revista Mexicana de Sociología, nº. 68, enero/marzo, 2006. pp. 137-180; DÍAZ, Aismara Perera; FUENTES,

Maria de los Ángeles Meriño. Matrimonio y Familia en el ingenio: una utopía posible (1825-188). La Habana: Editorial Unicornio, 2008. BENÍTEZ, María Elena; ALFONSO, Marisol. La familia como categoría demográfica. In: ESTRADA, Ana Vera (org.). La familia y las ciencias sociales. Bogotá: Centro de Investigación y Desarrollo de la Cultura Cubana Juan Marinello, 2003. p. 179-180.

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arquivos e paróquias em busca de indícios sobre os laços familiares que uniam os escravos, reconstruindo genealogias de famílias negras a partir de sobrenomes que apareceram registrados nos livros de casamentos das paróquias. Com isso, demonstraram que as uniões não eram simplesmente consensuais, mais ainda: existia toda uma vontade de formalização matrimonial no ato de reconhecimento da estrutura familiar, já que os filhos nascidos dessas uniões ou até os adotados eram registrados nos arquivos da instituição religiosa de forma bastante regular. Aspecto este que não tinha somente um caráter urbano senão também rural, porque, como assinalaram as autoras, sendo o açúcar a sustentação econômica de Igreja Católica convinha aos clérigos exercer seus serviços periódicos nas paróquias das fazendas açucareiras, realizando batizados e casamentos entre as dotações de escravos. (PERERA, MERIÑO, 2008)

O mais importante aporte desses estudos, tanto os brasileiros quanto os cubanos, reside em mostrar o elemento psicológico compensador que representou o ato de união consensual, isto é, a procura de parceiros. Essas redes de relações sociais que incluiu a família como categoria histórica social, não só desenvolveram laços afetivos, relações consangüíneas e maritais, mas também constituíram espaços de sociabilidade onde se cultivavam as tradições ancestrais. Espaços que serviram, ademais, como reservatórios de tradições e fontes de onde se alimentaram posteriormente as culturas que representavam os povos cubano e brasileiro.

Segundo o etnólogo cubano Jesús Guanche (1983), em um documento enviado da Metrópole espanhola para as colônias de ultramar, em 1789, se regulamentava a vida dos negros por disposição real. O documento conhecido como Códigos Negros apontava para o tipo de moradia que deviam ocupar os escravos nas plantações. Os Códigos dispuseram que os senhores permitissem aos escravizados construir suas casas perto uma das outras, desde que se mantivessem sob a vigilância das autoridades. Desta forma, nos períodos de descanso os negros juntavam-se para colaborar mutuamente na construção de suas vivendas. Isto significou uma via de cooperação ou de ajuda mútua entre cativos, além ter se constituído em um signo de identificação comunal, familiar ou fraternal. No entanto, os obrigava a reproduzir um tipo de convivência familiar monogâmica imposta pelo colonizador espanhol.

Essa disposição foi suspensa e substituída no século XIX devido ao temor às múltiplas sublevações de escravos (GUANCHE, 1983), o que não implicou na desaparição deste tipo de união ou forma de convivência entre os cativos. Tampouco os laços de parentesco foram esquecidos como conseqüência dos métodos abusivos e divisórios empregados pelas

autoridades coloniais, cuja política visava manter sob controle as sublevações ou simples reuniões de escravos negros.

As concepções africanas de família, seguindo o estilo comunitário e as características culturais próprias de cada etnia não funcionaram exatamente iguais no cativeiro. Razões objetivas como a forma de convivência nas senzalas; as longas e duras fainas do trabalho rude; o fraco sistema de alimentação; os estupros constantes das escravas pelos senhores, as quais eram utilizadas como objetos sexuais, desestimulavam e inibiam a vontade de união entre os escravizados rurais. Se a situação reduzia objetivamente a proliferação da unidade familiar em zonas rurais, por outro lado não fez desaparecer este mecanismo de união, especialmente nas cidades e entre os libertos. Neste sentido, Maria Inês Côrtes aponta:

[...] a organização de comunidade africana no Brasil teve na família dos libertos um de seus elementos chaves. A endogamia presente tanto nas uniões legais quanto consensuais, denota que além do apoio financeiro e afetivo, os africanos buscavam nos parceiros também uma identificação étnica que permitisse a continuidade de suas tradições transmitida aos seus descendentes sem a intervenção da cultura branca. (1988, p. 69)

Esta afirmação nos remete à argumentação de Costa Lima à respeito da ressignificação do conceito de nação a partir de uma concepção mais sócio-religiosa:

[...] o seu significado está intimamente ao conceito de família sobre o qual os sociólogos e antropólogos ainda tanto discutem. A expressão é entendida nos candomblés como um equivalente significativo dos sistemas familiares tradicionais, certo sem as racionalizações analíticas e definitórias que fazem da família um conceito ainda polêmico, da sua definição à sua estrutura e de sua tipologia à sua universalidade. (2003, p.24)

Como membros de sociedades com culturas de tradições orais, os libertos africanos confiavam a educação dos filhos às mães. Conseqüentemente, o casamento com mulheres africanas garantia a continuidade da herança cultural das tradições autóctones africanas, inclusive da religião, como apontamos anteriormente. Contudo, sempre houve exceções. Por exemplo, alguns filhos de africanos nascidos de estupros ou de relações extraconjugais dos senhores com as escravas foram educados dentro das casas grandes como crias dos amos ou damas de companhia e receberam a influência cultural dos donos. Deste modo, às vezes, renegaram a cultura africana, embora isso não impedisse certo contato com as tradições orais africanas.

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Para trabalhar esse aspecto das tradições orais tomamos como referência três autores: Mestre Didi21 (2004), Mirta Fernández Martínez (2005) e Felix Ayoh’Omidire (2005), que coincidem em suas reflexões sobre a função ideológica da oralidade africana no Novo Mundo, segundo as diferentes vias de transmissão.

Mirta Fernández ao referir-se aos iorubás afirma que, ainda hoje, a boca é considerada uma parte sagrada do corpo, sempre que dela se emitam palavras consideradas verdadeiras. Afirma ainda que as palavras verdadeiras contem axé, porque transmitem a sabedoria acumulada de tempos imemoriais, como legado dos ancestrais. Para exprimir o valor ideológico da oralidade africana como legitimadora de um saber a ser transmitido, apreendido e memorizado, mencionou o seu impacto na cultura nacional cubana como língua viva, principalmente entre os seguidores das religiões de origem africana. Fato constado em investigações realizadas na década de 1950 por pesquisadores como Lydia Cabrera, William Bascon e Teodoro Díaz Fabelo. Fernández ressalta que os livros resultantes dessas pesquisas22 não só tem valores científicos como também possuem valores literários, alegando “no prólogo que para Anagó, vocabulário lucumí realizou o importante etnólogo francês Roger Bastide afirmou que a ‘poesia está nele como flor da ciência’” (2005, p.99).

O que queremos destacar com estas referências de Mirta Fernández são os valores da comunicação oral africana em geral, como expressão da memória coletiva de um determinado grupo social, que defendeu os seus interesses culturais e transcendeu no tempo ao semantizar e ressignificar seus sentidos comunicativos com outros símbolos que serviram à comunicação humana, transcendendo os espaços familiares e religiosos para se situar em um plano sócio- cultural mais abrangente.

O certo é que nestas novas condições a influência feminina trazia certas vantagens no processo de preservação das tradições. Como assevera o nigeriano Felix Ayoh’Omidire (2004), nas condições transatlânticas as narrativas orais conseguiram se preservar como categorias bem sucedidas, quase sempre nas vozes femininas ou de idosos que entretinham a criançada.

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Deoscóredes M. dos Santos, Mestre Didi, Asssobá do Ilê Axé Opô Afonjá e fundador do Ilé Asipá há mais de 25 anos. É bisneto da fundadora do primeiro candomblé ketu-nagô no Brasil, Marcelina dos Santos (Obá Tossi), pertence à linhagem de Axipá, uma das sete famílias fundadoras do reino ketu-iorubá na atual República do Benin. É escritor, escultor e contista.

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Fernández refere-se a: CABRERA, Lydia. Anagó, vocabulário lucumí. (El yoruba que se habla em Cuba). Colección Chicherekú. La Habana: Ediciones C. R., 1957; e FABELO, Teodoro Díaz. Guiné Gongorí. Lengua

A sua presença como elemento mnemotécnico da memória étnica africana é prova de que o negro escravizado não perdeu a sua identidade durante a terrível travessia forçada que o trouxera para o desconhecido. Relatos da época da escravidão em quase todas as sociedades escravocratas sempre falam de como escravas que serviam de amas de leite e as que tomavam conta dos filhos do senhor nos criadouros das Casas Grandes costumavam ninar os mesmos com cantilenas ou cantigas em línguas africanas. (2007, p.3)

Essa atividade assegurou a preservação e a importância que tiveram as narrativas africanas no continente americano, lhes garantindo um novo valor simbólico enquanto significação sócio-cultural. Ainda que fossem cantadas ou faladas, segundo as usanças tradicionais de cada cultura representadas pelos africanos, a ressignificação das mesmas se sustentou na função ideológica adquirida tanto dentro do âmbito familiar quanto no religioso, já que serviam para transmitir valores às novas gerações, dar a conhecer a sabedoria da natureza e o culto dos ancestrais como parte dos ritos de passagem e de iniciação, como mostra o Mestre Didi (Op. cit.).

Era um esforço para que as novas gerações não perdessem a cultura herdada de África, nem esquecessem a luta de resistência dos escravizados africanos no Novo Mundo, nem daqueles que ficaram no continente africano como guardiões das tradições e protetores dos Orixás invocados nesta parte do continente e das demais entidades rigorosamente cultuadas na diáspora, como destacou Omidire ao valorizar a obra literária do Mestre Didi.

O certo é que tem se convertido em gênero literário essa ressignificação ou travessia ideológica da narrativa africana no Novo Mundo, como conceitua Omidire, no processo da transmissão oral de conhecimentos entre africanos e descendentes, que teve na família e na religião o ambiente propício para se desenvolver, como foi apontado por Bastide no prólogo do livro de Lydia Cabrera, que adquiriu relevância política e ideológica e que Omidire denominou de orilatura (2004).

Uma vez analisado o papel da conservação e da transmissão de traços da cultura africana via oralidade, vale salientar o exposto anteriormente de que de modo algum podemos afirmar que houve nas famílias conformadas tanto por escravizados quanto por libertos, em Cuba e no Brasil, uma reconstrução da vida comunitária, segundo o estilo de cada nação. Houve sim uma reconstrução parcial do modo de convivência porque a oralidade assim o permitiu, e é possível até afirmar que se produziu uma recriação ou ressignificação do conceito família, tendo em conta os sistemas familiares tradicionais que estabeleceram um estilo próprio de comunidade de interesse em torno das memórias culturais africanas

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amoldadas na América, que teve na religião sua forma mais acabada de realização, de acordo com o conjunto de tradições das quais foram depositários os africanos no Novo Mundo.