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No Brasil, a virada do século XIX traz consigo uma República erigida em 1889. A situação política e sociocultural diferencia-se da cubana em muitos aspectos. No entanto, a sorte dos cidadãos negros e mestiços, junto com os setores populacionais marginalizados – africanos e crioulos negros e brancos pobres –, une a história destes países a ponto de – guardadas as devidas proporções, como as dimensões geográficas, as estatísticas demográficas e as riquezas naturais –, permitir-nos uma comparação entre os aspectos qualitativos referentes às mudanças da cultura em geral, a religião de ascendência africana e a atitude racista dos seus governantes e elites intelectuais na virada do século XIX ao XX.

Diferentemente de Cuba, o Brasil passou de colônia de Portugal à monarquia imperial de 1822 a 1889, ano da destituição de D. Pedro II e exílio da família imperial, junto com parte do seu séqüito. Os ideais libertários dos republicanos históricos, chamados positivistas, que defendiam o respeito à ordem pública, saíram da burguesia cafeeira e pecuarista organizada em São Paulo e Minas Gerais, representando os partidos políticos que haviam alcançado seu máximo poderio durante o período imperial.

Durante o período monárquico, a dependência econômica marcou a riqueza do País, representada pelas províncias de Pernambuco e Bahia, situadas na região Nordeste, e de Minas Gerais e São Paulo dedicadas à lavoura e exportação do açúcar, ao cultivo do tabaco, café, mineração e pecuária. Mesmo quando o comércio do açúcar declinou, devido ao surgimento de novos mercados e tecnologias avançadas e, com ele, os territórios que os fizeram florescer, o País conseguiu substituir e elevar-se com outras atividades econômicas. Exemplo disso foi a condição de País agrícola e eminentemente escravista.

Sob o lema “centralização-desmembramento, descentralização-unidade”, os descontentes com a Monarquia imaginavam que o fortalecimento das províncias esvaziaria o poder do imperador, abrindo caminho para a implantação de um novo regime. (MENEZEZ, 2003, p.802)

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Os militares aliaram-se ao setor da elite agrícola. Eles representaram a força repressiva que, depois da guerra contra Paraguai, passava pela reorganização e moralização de seu pessoal, incluída uma nova filosofia de Ordem e Progresso. Independentemente do fato de os militares se encontrarem divididos e de existir opiniões heterogêneas dentre as vozes de mando dos superiores, unia-os a necessidade de um governo novo, com um pensamento e ação política e econômica avançada que tivesse, entre seus compromissos, a responsabilidade pelo futuro do País, o que significou o exercício do poder de Estado.

Imbuídos dessa nova concepção, os militares e a elite juntaram-se a favor do futuro da Federação e, em novembro de 1889, a força militar propiciou um golpe de Estado contra o poder de D. Pedro II, pondo termo a mais de 60 anos de governo monárquico sustentado pela economia escravista. Lembremos que, um ano antes, em 1888, tinha-se decretado, oficialmente, a liberdade dos escravos. A partir desse momento, e durante quase 15 anos, se sucederam vários governos militares. Sobre o tema Murilo de Carvalho afirmou:

O movimento republicano posterior a 1870 foi integrado principalmente por fazendeiros, profissionais liberais, jornalistas, professores, estudantes de cursos superiores e oficiais do Exército. Era uma combinação de proprietários rurais, predominantemente do partido paulista e representante de setores médios urbanos, mais presentes no grupo do Rio de Janeiro. Povo mesmo, no sentido de trabalhadores rurais e urbanos, operários, artesãos, pequenos proprietários, funcionários públicos de nível inferior, empregados, não havia. A proclamação do novo regime foi feita pelos militares... (2002, p. 61)

Como afirma Murilo de Carvalho, o poder estava em mãos dos militares, mas era assegurado pelas elites agrárias que representavam os partidos políticos de São Paulo e Minas Gerais na República Velha. Por isso, a política desenvolvida durante esse período é conhecida popularmente como “política do café com leite”, atividades agrícolas que desenvolviam ambos os estados que, além de grandes produtores agrícolas, eram, desde o ponto constitucional, fortes praças eleitorais porque agrupavam o maior percentual de futuros votantes. Utilizamos o termo “futuros” porque, segundo o historiador brasileiro acima citado, as eleições desse período histórico caracterizaram-se pela baixa presença às urnas.

A trajetória republicana caracterizou-se também pelo profundo ataque ao exercício da cidadania, com tendência à anulação de alguns dos seus cidadãos mediante o impedimento de votos de um setor da população integrado por mulheres e negros. O direito cidadão era reservado à homens alfabetizados e gerenciados pelos coronéis. Lembremos que Carvalho

assinala que o “povo mesmo” não participou do movimento republicano e o mais grave ainda foi que não participou também das eleições presidenciais em virtude do “coronelismo”.

O coronelismo foi uma conduta política que se tornou comum na vida brasileira da República Velha. Como grande proprietário rural, possuidor de grandes extensões de terra e, por conseguinte, concentrador das riquezas e recursos naturais, o Coronel exercia forte influência sobre as riquezas materiais do território que dominava e – por que não acrescentar? –, até sobre as riquezas espirituais, porque se sentia com plena liberdade para manipular o exercício da cidadania. Era “propriedade sua” não só o poder econômico, mas também, na prática, o poder político local, o poder judiciário e até o eclesiástico, independentemente da força repressiva com que contava. Esta figura paradoxal sentia-se com o poder de adicionar ou subtrair votos durante as eleições, segundo seus interesses. Naturalmente, para eles, os interesses populares não contavam.

No Brasil, a tradição de lutas políticas por ideais comuns, com a participação de todos os setores sociais, sem mediação de condição social, econômica ou racial, difere da realidade cubana, caracterizada por guerras armadas de independência e grande politização dos setores operários que representavam a parte da população mais humilde, integrada principalmente por negros, mestiços e chineses.

Durante a República Velha, no Brasil, as camadas populares, ou seja, a gente comum: negro, mestiço, classe operária, em geral ficou às margens dos mecanismos formais de participação, ou fora da engrenagem do próprio sistema político. Neste sentido, retomamos Carvalho, que enfatiza essa marginalidade quando aponta:

Populações rurais e urbanas revoltaram-se contra políticas do Estado central que, embora legais, entravam em conflito com seus valores, tradições e costumes. Elas se revoltaram contra o recenseamento, o registro civil, a introdução do sistema métrico, o recrutamento militar, o aumento de tarifas de transporte coletivo, a secularização dos cemitérios. Eram medidas do Estado que freqüentemente conflitavam com estilos tradicionais de vida. (2002, p. 70)

Disso se infere o pouco ou nenhum interesse que a elite governante tinha em conscientizar esse setor populacional mais desfavorecido. Daí que essa população não se interessasse pela política eleitoral e o Estado não se preocupava tampouco em fazê-la compreender a necessidade de realizar políticas de controle social, de urbanização das cidades, de saúde pública para prevenir doenças. Essa falta de interesse provocou inúmeros conflitos contra seus executores, que também, como parte do aparelho governamental, não se

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preocuparam em oferecer explicações racionais para os opositores. Isso justificou, de certa forma, por exemplo, a Revolta da Vacina, ocorrida em 1906, no Rio de Janeiro.

Essas conseqüências nefastas que se arrastavam desde o período imperial, como foi assinalado anteriormente, acarretaram a invisibilidade desta parte carente da população, representada principalmente por negros, não vistos nem tratados como sujeitos sociais de ação. Já em 1884, Joaquim Nabuco, em discurso pronunciado em Recife, defendeu o direito à democratização da terra junto com a emancipação dos escravos como caminho legítimo do negro à cidadania. Assim, chega o século XX, trazendo consigo os males herdados do Império, que quinze anos de vida republicana alimentaram e aprofundaram ainda mais.

Qual a situação sócio-cultural do começo do século XX?

O Brasil estava entre os países com menor percentual de instrução educativa, apenas 31% da população era alfabetizada. Entretanto, na Cuba colonial de fim de século XIX, 59% dos seus habitantes tinham, pelo menos, instrução fundamental; dentre eles, 13% eram negros, na faixa etária entre 5 e 17 anos. É só para lembrar que essas cifras corresponderam à obrigatoriedade de ensino para as crianças no nível elementar, adotada pela metrópole espanhola e que incluía as províncias de ultramar. No Brasil, às vezes, nem mesmo os coronéis tinham níveis educacionais tão altos. Se o índice de escolarização aumentava, era devido aos imigrantes europeus que chegavam com algum nível educacional. Isso contribuiu para a exclusão da população negra e seus descendentes do direito ao voto e inibiu, de certa forma, sua vontade de participação política. Contrariamente ocorreu com os coronéis, alguns tão analfabetos quanto os negros, mas predominantemente brancos e donos de terras que se converteram em manipuladores do poder econômico e político.

Em meio a esse caos, as populações negras, que se concentraram majoritariamente nos territórios do Nordeste, viviam momentos agônicos, marginalizadas pelos setores fundamentais da economia e, conseqüentemente, pela sociedade. Durante o período colonial, escravos e libertos urbanos que trabalhavam nas ruas tinham-se organizados em grêmios e cantos, como analisamos no primeiro capítulo. Já na fase republicana, essa população negra urbana aumentou ainda mais, pois os ex-escravos que chegavam às cidades na procura de empregos, tendo que aceitar trabalhos que a população branca desprezava. Essa superpopulação negra acabou ocupando nas periferias das cidades as zonas mais insalubres, vivendo em condições de vida muito desconfortáveis.

Como construtores da própria história (VOGT, 2003), a maioria das vezes contada pelos brancos, fantasiada ou adulterada pela imprensa, os negros ocuparam certo espaço na

literatura e na história brasileiras. Jossiana Arroyo em seu livro “Trasvestismos culturais: literatura y etnografia en Cuba y Brasil” (2003) se refere a este particular, mas o problema não é o espaço do negro nessa literatura senão como ele foi representado nela. No Nordeste, especificamente na Bahia, essa elaboração histórica se vincula à religiosidade negra, sendo seu precursor Raimundo Nina Rodrigues35, cujas publicações foram concomitantes com uma série de reportagens nos jornais sobre a vida dos negros, seus costumes e religiosidade. Mas a verdade é que em todas essas publicações tanto o homem quanto a mulher negra não eram considerados como bons exemplos de cidadãos. Pelo contrário, foram catalogados como gente de baixa categoria e incultos. Antes de passar ao conteúdo dessas publicações, distinguiremos alguns pontos chaves que apontam o caminho a seguir nesta comparação.

Como foi apontada, a situação sócio-cultural dos negros no Brasil atingia os níveis mais baixos. Sem educação garantida, emprego, nem moradia o negro foi considerado como cidadão de segunda categoria. Não podemos esquecer que, tanto no Brasil quanto em Cuba, o mercado de trabalho era disputado por negros, mestiços e imigrantes europeus. Aos primeiros correspondiam aqueles empregos rejeitados pelos imigrantes brancos, razões pelas quais as estratégias de vida dos negros e seus descendentes ficavam fora de qualquer controle ou expectativa social, sob fiscalização sanitária e policial que os classificava como malandros e vagabundos.

Neste sentido, dois grandes estudiosos da temática negra, Fernando Ortíz, de Cuba, e Nina Rodrigues, do Brasil, em suas primeiras obras científicas sobre os negros cubanos e brasileiros foram enfáticos em suas generalizações quanto ao valor negativo de homens e mulheres negras, ao classificá-los como licenciosos, ociosos, malandros e dados à “má vida”, termo este que virou tema de estudos em Fernando Ortiz, sob o título “El Hampa Afrocubana”36. A suposta natureza “malandra” do negro serviu como pretexto para criticar suas projeções culturais e entrou nessa corrente positivista que justificaria a política de branqueamento, intensificada logo depois da abolição da escravidão.

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Ver: RODRIGUES Nina. O animismo fetichista dos negros bahianos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S. A., 1935; RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. Brasília: Editora da UNB, 1988.

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Os livros que apareceram sob este rótulo se intitularam “Los negros brujos”, cuja primeira versão é de 1906, “Los negros esclavos”, de 1911 e finalmente “Los negros curros”, de 1917.

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Notícias da imprensa: semelhanças e diferenças da repressão religiosa