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O início do século XX em Cuba caracterizou-se pelo recrudescimento dos sentimentos racistas e, de certa forma, pelo medo incontrolável do negro, na condição de classe subalterna e marginalizada e como sujeito portador de traços culturais, uma ideologia religiosa e valores opostos àqueles sustentados pelas elites brancas no poder, portadoras da ideologia do regime.

O historiador cubano Eduardo Torres-Cuevas, no seu livro “En busca de la cubanidad” (2000), ao refletir sobre o pensamento político social cubano da década de 1870, contrapõe duas tendências liberais: uma conservadora reformista, correspondente ao pensamento cubano mantido até a primeira metade do século XVIII, e a outra radical, que tinha como centro as teorias emancipacionistas que a partir de 1860 caracterizaram as guerras de independência de fim do século XIX.

Para analisar a primeira tendência, o autor se centra nos status sócio-econômico da Ilha antes do levante de 1868, afirmando que o distanciamento entre a escravidão e as classes médias foram fatores não só econômicos, mas também culturais e sociais que representaram um despojo dos preconceitos raciais. Enfatiza o autor:

Nem sempre os mais fortes antiescravistas ou os que eram contrários ao tráfico agiram por razões humanitárias. Na realidade, o argumento mais recorrente estava no rechaço ao negro e na idéia obsessiva, já assinalada por Arango e Parreño e José Antonio Saco, de branquear a Ilha “até apagar a memória da escravidão”. Muitas vezes, o antiescravismo também era profundamente racista. Para este setor da oligarquia, a extinção da escravidão também fazia parte do processo de marginalização social do negro e, se possível, sua redução ao mínimo dentro do conjunto da população. Por essas razões, junto ao processo jurídico que declarava livre o negro – isto é, a eliminação legal da fronteira racial –, desenvolvia-se um amplo processo de segregação e marginalização deste setor, submetido agora à discriminação e aos prejuízos sociais. (TORRES-CUEVAS, 2006, p. 294)

Nesse ambiente de desvantagem racial e social, a partir do pensamento liberal emancipador, quaisquer negros, africanos ou crioulos radicados em Cuba foram incorporados ao campo de batalha, como condição, de certa forma obrigatória, para alcançar sua independência, visando à luta pelo bem-estar dos cubanos. Esse grupo, mesmo com contradições políticas, sociais e raciais internas, entre seus ideais postulava uma ruptura total com a metrópole espanhola, através do desenvolvimento de um sentimento nacional de

soberania, que marcou uma continuidade conseqüente na construção de uma Pátria eminentemente cubana. Pensamento crioulo que se enquadrou na perspectiva da “cubania” como uma corrente ideológica dos meios intelectuais, mas também de ação que se aderiu à concepção político-social de liberdade.

A ação bélica começou quando Carlos Manuel de Céspedes, crioulo fazendeiro da zona oriental do País e considerado o Pai da Pátria, quase empobrecido deu liberdade aos seus escravos em 10 de outubro de 1868, levando-os consigo ao campo de batalha para lutar pela independência da Ilha. Tal iniciativa foi repetida por outros fazendeiros e deu início à guerra dos 10 anos que, mesmo frustrada em 187829, não abafou inteiramente a vontade de liberdade e independência.

Outras figuras de destaque foram o mulato Antonio Maceo, político, estrategista militar desde 1868, protagonista da Protesta de Baraguá30 e da invasão de Oriente e Ocidente em 1895-1898; e José Martí, político excepcional, com visão anti-imperialista para Cuba e para toda a América Latina, ideólogo de uma concepção humanista revolucionária que liderou a luta pela independência até 1898. Martí pretendia estabelecer uma República integrada por todos os seus habitantes, em que se respeitariam os direitos de negros e brancos, espanhóis e cubanos, ricos e pobres, cultos e ignorantes31.

De modo geral, o movimento independentista viu-se frustrado, dada a traição da Espanha quando estava perdendo a guerra, ao firmar o Tratado de Paris em 1898, permitindo, assim, a intervenção norte-americana, que instaurou de imediato um governo militar provisório na Ilha, que teve uma duração de quatro anos. Só em 20 de maio de 1902 se proclamou o regime republicano neocolonial, que limitou a participação política e social dos que verdadeiramente lutaram para obter a independência.

Mesmo parecendo uma contradição a utilização do termo “República neocolonial”, como se conhece o período compreendido entre 1902 e 1958, Cuba se converteu em uma colônia dos Estados Unidos da América, porquanto a verdadeira independência, como foi apontada, não se obteve e ainda que se proclamasse um governo republicano suas funções responderam aos interesses norte-americanos.

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Esta guerra terminou de forma frustrante para seus organizadores, quando se firmou traiçoeiramente um tratado de paz condicionado, conhecido na historiografia cubana como Pacto del Zanjón.

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A Protesta de Baraguá foi um dos episódios políticos mais transcendentes da história de Cuba, por ser uma evidente manifestação de intolerância revolucionária ante a inescrupulosa proposta de paz sem liberdade, firmada em 1878 no povoado conhecido como el Zanjón.

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Ver LECUONA, Oscar Zanetti. La República: notas sobre economía y sociedad. La Habana: Editorial Ciencias Sociales, 2006.

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A intervenção militar ocorreu após a iniciativa do governo dos Estados Unidos, de cuidar da ordem na Ilha enquanto sua população se restabelecia da guerra. Mas o que sustentou o prolongamento da intervenção militar foi o medo do negro. Durante a Guerra dos Dez Anos (1868-1878) e posteriormente na Guerra Chiquita (1895-1898) os negros incorporados ao campo de batalha adquiriram altas gradações militares e potencialmente estavam aptos para aspirar a cargos políticos de comando, oportunidade descabida na mentalidade norte-americana que tinha uma postura de xenofobia.

Nessa época, as ambições expansionistas do governo vizinho sobre a Ilha do Caribe, em virtude de sua posição geográfica, não eram segredo. Além disso, os Estados Unidos realizaram alguns investimentos em solo cubano, motivo pelo qual se sentiam com o direito de intervir nos assuntos internos de Cuba, justificados por idéias “protecionistas”.

Ao finalizar a guerra, o Capitão Geral da Ilha, o espanhol Valeriano Weyler32, impediu aos combatentes do exército libertador, denominados mambises, voltar às suas cidades de origem, pretextando razões de sanidade. Este fato é conhecido na historiografia cubana como “a concentração Weyler”, que ocasionou muitas mortes entre a população negra e civil das camadas populares.

Em 1902, convencidos os norte-americanos de que a Ilha se encontrava sob controle, puseram formalmente fim à ocupação militar. A partir desse momento começou a etapa neocolonial que correspondeu ao período republicano. Mesmo dirigida por governantes cubanos, Cuba permanecia submetida aos desígnios dos governantes norte-americanos, pois, antes da transferência dos poderes, o Presidente eleito D. Tomás Estrada Palma assinou um acordo em que se estabeleciam as bases da subordinação política e militar aos Estados Unidos. De fato, a Ilha não se converteu em uma colônia norte-americana. Porém, essas bases foram instituídas devido à possibilidade de intervenção das tropas ianques, sempre que os Estados Unidos julgassem necessário ou achassem a “paz da Ilha ameaçada”, o que de “fato” os ameaçava como vizinhos. Assim, decidiram unilateralmente estabelecer bases navais e carboníferas em solo cubano, das quais uma ainda existe 33, e experimentaram sua nova forma de colonização do poder.

Nesse sentido, Eduardo Torres-Cuevas assinala:

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Valeriano Weyler e Nicolau (1838-1930) foi militar e político espanhol, Capitão Geral de Cuba durante a etapa final das guerras de independências entre 1868 e 1898, período no qual protagonizou a Política de Reconcentração.

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Referimo-nos à Base Naval de Guantánamo, situada no extremo sul da região mais oriental da Ilha, que hoje constitui um centro de prisão internacional. O governo dos Estados Unidos mantém este território ilegalmente fora de seu espaço nacional e forma parte daqueles territórios ocupados por força e mantidos da mesma forma pelas tropas norte-americanas.

[…] Cuba teve um 20 de Maio [de 1902] porque tinha uma tradição revolucionária, expressa nas forças mambisas [...]: por isso, não teve o triste destino de Porto Rico. Agregaria que a Constituição de 1902 foi feita pelos mambises, pelos 13 generais do movimento independentista e por homens como Juan Gualberto Gómez, delegado de Martí em Cuba; Gonzalo de Quesada; a direção do Partido Revolucionário, e os membros do último governo insurreto, entre outros patriotas.

Nessa Constituição […] foi adicionada como apêndice a Emenda Platt, aprovada sob a ocupação norte-americana, ante a ameaça de ou é aprovada, ou não saímos daqui […] (TORRES-CUEVAS, 2006, p. 352).

Mas que rumo estava tomando a sociedade cubana? Por onde andava o pensamento social? O que ocorreu com a cultura e a religiosidade afro-descendente cubana? Acabada a guerra dos 10 anos, durante o período conhecido como “Trégua Fecunda”, que preparou a continuação das lutas bélicas, algumas camadas da população negra e mulata pertencentes à categoria popular, devido aos ofícios e profissões que desempenhavam, trataram de abrir caminho dentro da decadente sociedade colonial elitista e racista do final do século XIX. Esta, por um lado, enfrentava os estragos sociais e econômicos da guerra de independência e, por outro, se esforçava por acompanhar a modernização tecnológica da indústria açucareira, que ainda vivia a herança dos séculos de escravidão.

Nos livros “Capas populares y modernidad en Cuba (1878-1930)” e “Sociedades negras en Cuba (1878-1960)”, das historiadoras Maria del Carmen Barcia e Carmen Victoria Montejo Arrechea, respectivamente, elas explicam as estratégias utilizadas pelos negros e outros representantes das camadas populares para lograr inserirem-se na sociedade cubana antes e depois da abolição total da escravidão, em 1886.

A partir de 1880 podemos falar do aparecimento de uma pequena intelectualidade negra e mulata em Cuba. Até 1878, o governo colonial espanhol tinha a obrigação de oferecer educação gratuita e obrigatória a todos os cidadãos, o que se aplicava também às províncias de ultramar. Ainda que não fosse integralmente implementada a negros e mestiços, alguns deles conseguiram aproveitar essa política de instrução obrigatória e alfabetizar seus filhos, o que, de certa forma, ajudou africanos e crioulos a desenvolver habilidades para diferentes ofícios, sobretudo nas cidades, onde se concentrava o maior número de negros livres. Isso num País colonial, no qual vivia uma elite enriquecida com o comércio do açúcar, aristocracia nacional conhecida na historiografia cubana como sacarocracia (FRAGINALS, 1978).

Assim, músicos, poetas, pintores, carpinteiros negros e mestiços gozavam de certa popularidade e visibilidade social. Alguns intelectuais negros que tinham se formado fora do

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País, principalmente na França, voltavam para a Ilha, enquanto as instituições cubanas abriam suas portas e começavam a educar negros nos centros de estudos de educação superior. Carmen Victoria Montejo registra o fato da seguinte forma:

A partir de 1878, o governo colonial abriu a Universidade e os institutos de Segundo Ensino para jovens de cor, desrespeitando, desse modo, o Código de Sangue vigente até o Pacto do Zanjón. Segundo esse Código, os negros, os judeus ou qualquer outro que praticasse o ministério vil, só poderiam estudar até terminar o ensino básico […] e aprender ofícios; por essa razão, a maioria dos negros era artesãos e os que conseguiam realizar estudos superiores o faziam na Europa. (MONTEJO, 2004, p.54-55)

Juan Gualberto Gómez, por exemplo, nascido em 1854, foi destacado político cubano e delegado de Martí em Cuba. Filho de escravos que nasceu de ventre livre, depois de uma formação básica em Cuba viajou para a França para continuar estudos universitários. Conseguiu se graduar como jornalista numa universidade de Paris. Dirigiu um diário em Havana e pertenceu à Sociedade de Cor “Club Atenas”.

Esses homens e mulheres negros com espírito de progresso lograram alguma ascensão visível dentro da sociedade. Para eles, na aquisição de determinado nível de instrução educacional e de educação formal se achava o cimento do progresso da sua raça, o que lhes permitiria certa tranqüilidade econômica e ascensão na escala social. Lembremos o estado de marginalização total desse setor, uma vez que a base econômica que suportou o regime escravista havia desaparecido atrás do véu do movimento de modernização da economia dessa época, na qual o negro, na sua condição de livre e iletrado, não tinha conseguido encontrar espaço no mercado industrial:

Cabe destacar que este processo acontecia no âmbito de uma sociedade arraigadamente mestiça, mas permeada de preconceitos racistas, onde o medo do negro foi utilizado tanto pela administração espanhola para controlar a independência política, como pelas camadas economicamente dominantes para impedir a subversão social. A necessidade de branqueamento impulsionou, então, uma política de imigração que privilegiou brancos, especificamente peninsulares e canários. (BARCIA, 2005, p.21-22)

Neste contexto, promulga-se a Lei de Associações de 13 de junho de 1888, aproveitando-se os pequenos espaços de legalidade que o momento propiciou às autoridades para restabelecer a ordem na sociedade. De início, a autorização das ordenanças favoreceu os imigrantes brancos, independentemente do status que possuíssem; porém, em seguida,

possibilitou a defesa de direitos e lugares na sociedade para negros, mestiços e pessoas de distintas nacionalidades ou profissões.

Essa possibilidade ficou conhecida como Direito de Petição e foi promulgada em 23 de setembro de 1888 pela Administração Colonial da Espanha, para ser aplicada nos territórios de ultramar. Mediante essa lei, todos os cidadãos tiveram o “direito jurídico e legal” para pedir ao Estado sentenças favoráveis, especialmente nas demandas de ordem coletiva, que regulavam assuntos como o Registro Geral dos Expedientes ou o Registro de Estabelecimento 34. Essa conjuntura foi propícia para negros e mestiços na luta pela inserção social, pois implicava um espaço de visibilidade numa sociedade que os omitia, mesmo que se beneficiasse com seus serviços.

A luta de negros e mestiços pelos direitos civis continuou durante a República. Nem a participação destacada durante a Guerra de Independência, nem os esforços para ajudar a liberdade desde a emigração, nem a presença nas fileiras do autonomismo, conseguiram eliminar as diferenças estabelecidas durante quatro séculos. O conservadorismo das mentalidades, essa prisão de longa duração que se manifesta na resistência às mudanças, sobretudo nos grupos economicamente mais poderosos e nas camadas médias, manifestou-se durante esses anos e foi garantido por posições racistas da administração durante o período da intervenção norte- americana. Os Estados Unidos da América também tinham sido marcados pela escravidão e nessa sociedade se produzia um confronto entre brancos e negros muito mais forte que aquele que se estava produzindo em Cuba: este se tinha transladado para a Ilha junto com as forças militares e os funcionários civis. (BARCIA, 2005, p.29-30)

O início do século XX marcou os anos de defesa da cubanidade, condição que foi arraigando-se em todos os setores da vida dos cubanos, tanto pública quanto privada e, obviamente, nas diferentes esferas sociais, até finalizar a década de 1920. Como processo por vezes lento e por vezes acelerado e cruel, produto dos novos avanços científico-técnicos que abalaram o mundo e influenciaram a vida sócio-econômica cubana, as novas tendências político-sociais alimentaram o anseio de progresso das classes melhor colocadas economicamente e, com isso, o branqueamento da sociedade, o que justificava, de fato, as subseqüentes intervenções norte-americanas dentro da Ilha, ao mesmo tempo em que negros e mestiços continuavam defendendo seus direitos cidadãos como condição sine qua non da inserção social e cultural no País.

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Trabalho de Diploma: CALIZ, Arminda Hernández; GARCÍA, Xiomara Pérez; MENDONZA, Jorge Enrrique.

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Entre a frustração que implicou a implantação da nova República neocolonial e os espaços conquistados pelos cidadãos negros e mestiços organizados em instituições legais, alguns círculos racistas deram-se à tarefa de criticar abertamente tudo o que se originava das culturas de ascendência africana, pois, no entender deles, não trariam bons costumes por serem contrárias à religiosidade cristã e à civilização ocidental.

Nesse sentido, Torres-Cuevas (2006) assinala que o desenvolvimento do novo modelo de sociedade civil imposto durante a República foi marcado pelo forte conteúdo racial e nacional da elite, e menciona algumas publicações da época que contribuíram para o debate sobre o País, seu povo e seus problemas. Em matérias publicadas no período, circulavam posições especulativas sobre a “raça negra” e outras que reproduziam o debate científico sobre questões raciais em moda na primeira metade dessa centúria, que responderam às tendências positivistas e sociais darwinistas.

Nas instâncias publicitárias, fizeram-se as críticas mais desfavoráveis e debochadas às religiões de ascendência culturais africanas arraigadas na população negra e mestiça, criando sessões satíricas em jornais e revistas com manchetes tão sugestivas como o que representa a imagem anexada “Los crimenes de la brujería”, publicada no Diário La Prensa, em novembro de 1919.

Às vezes, inclusive, chegaram-se a incitar a linchamentos massivos de negros, justificados pelas potenciais execuções de sacrifícios humanos, barbárie e canibalismo. Estas acusações receberam resposta por parte dos homens “da raça de cor” que estavam, nesse momento, nos setores privilegiados da sociedade, como analisaremos em outra parte deste capítulo.