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A instauração dos governos republicanos em Cuba e no Brasil diferencia-se não tanto pela época em que cada País chegou ao patamar republicano, nem pelas políticas governistas predominantes, mas pelos processos sociais e políticos que envolveram as formações sócio- econômicas cubana e brasileira.

No Brasil, País que de Império se converteu em República Federal, em 1889, dirigida inicialmente pelos militares, a troca de poderes não contemplou os interesses das diferentes classes sociais do País, mas sim o capital econômico e financeiro das elites do café e do gado de São Paulo e Minas Gerais respectivamente, que deram um golpe de Estado. O novo rumo exigia a contratação de uma força de trabalho mais qualificada, que garantisse o desenvolvimento do setor agrícola. Por isso, a prioridade dessa elite, especialmente a paulista, era introduzir, da Europa, a maior quantidade de mão-de-obra branca28 que tivesse certo nível de instrução. Estes foram trabalhadores assalariados que vieram para a América com vontade de avançar na vida, à procura de fortuna. Desta forma, consignavam o desprezo para com a população negra, considerada, desde os tempos da escravidão, como uma subclasse, desinteressada pelo trabalho e com déficit de qualificação.

Tais transformações na mentalidade dos brasileiros, um tanto abolicionista e outro um tanto positivista, tocavam os interesses das classes possuidoras de bens materiais e de consumo. Porém, não atingia as classes populares, constituídas por uma população carente, majoritariamente negra e mestiça, que, a partir do momento em que se efetivaram as leis abolicionistas, passaram a fazer parte do exército de desempregados que perambulava nas grandes cidades do País, agravando, assim, a própria condição social.

Conseqüentemente, no processo de emancipação que veio à luz em 1888 a única implicação positiva para os escravos ainda em cativeiro foi a possibilidade de ganhar a condição de livres, como o restante de seus concidadãos que já o ostentavam. Sensação ilusória, porque a sociedade continuava sendo hierarquicamente branca e racista, o que justificou, como já apontamos, o aumento do fluxo de europeus e, posteriormente, de asiáticos como trabalhadores assalariados, a fim de proporcionar à nação um futuro menos negro e mais miscigenado. Esta atitude esteve incluída na agenda do País, visando à reconstrução da realidade social representada por uma elite intelectual que, seguindo modelos evolucionistas e sociais darwinistas europeus, justificaram a teoria imperialista de dominação, sob o

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preconceito da inferioridade genética dos negros que limitava suas funções sociais e lhes impedia de avançar culturalmente. Tentava-se implantar esse pensamento num Brasil que ambicionava ser moderno e queria diferenciar-se do restante das nações do continente e aproximar-se de Europa, ocultando o seu rosto negro, cor que, nas teorias racistas da época, implicava pobreza cultural e econômica (SCHWARCZ, 1993).

No caso de Cuba, a instauração do governo republicano, a partir de 1902, foi uma farsa eleitoral dirigida a partir de Washington. Ao finalizar-se a Guerra de Independência, em 1898, o País estava preparado para seguir caminho pelas vias republicanas, mas a intervenção norte-americana interrompeu os sonhos de independência dos cubanos que lutavam contra o poder colonial de Espanha. Durante quatro anos, o poder dos Estados Unidos fez-se sentir em solo cubano e, com ele, toda a carga de racismo e segregação que acompanhou a política norte-americana.

Se os cubanos pensaram por um momento que ao finalizar-se a guerra os problemas sociais enfrentados no período colonial terminariam, de fato a realidade foi outra. O período que vai da intervenção militar em 1898 à instauração da República em 1902 marcou o futuro dos cubanos, com base ideológica numa sociedade que tinha anseios de civilização, se organizava e era portadora de princípios cristãos, semelhantes àqueles que reinavam na sociedade norte-americana. A partir desse momento, e repetindo velhos esquemas, a democracia era representada pela cor “branca” da pele daqueles que acumularam as suas riquezas em séculos de escravidão. Sob essa égide se erigiu o poder republicano na Ilha. Contudo, desde o princípio, encontrou a resistência de quem lutou organizadamente para alcançar melhores patamares de vida.

Refletindo sobre as primeiras reações sociais durante a instauração da República, Tomás Fernández Robaina, em seu livro El negro em Cuba 1902-1958, comentou:

A partir dos primeiros instantes da nova ordem reinante, os artesãos e os camponeses se sentiram marginalizados ao serem relegados para os trabalhos mais simples pela cor de sua pele, ou por terem que se empregar pelos salários mais baixos. Provavelmente, os que mais sentiram essa marginalização foram aqueles que, com algum preparo e instruções gerais, aspiravam a suprir vagas no serviço público para alternar com as classes que antigamente os discriminavam. Eles, por terem um nível intelectual destacado, começaram a batalhar publicamente pelo fim da discriminação e das barreiras que impediam o desfrute total dos direitos sociais. (1994, p. 21- 22)

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É, portanto, objetivo deste capítulo analisar as condições de discriminação racial, social e religiosa em que se viram envolvidos setores negros e mestiços das sociedades cubanas e brasileiras durante os anos de instauração republicana, processo que correspondeu ao primeiro terço do século XX. Nesse período, tanto a imprensa quanto as autoridades policiais arremeteram contra a cultura religiosa nascida ao calor da convivência social entre africanos e negros crioulos durante o período da escravidão. Essa arremetida teve como protagonistas as elites intelectuais de ambos os países, baseadas em correntes positivistas e social-darwinistas vindas da Europa e amparadas pelos novos governos instaurados.

As teorias raciais defendidas dentro da academia brasileira na virada do século XIX e no princípio do XX, tiveram em sua agenda um debate ampliado versado na questão da cidadania, que teve impactos negativos principalmente sobre a população negra. Basta lembrar que a segunda metade do século XIX foi o período de “transição” da mão-de-obra escrava para livre, justo antes do início do regime republicano. Por isso, algumas discussões acadêmicas visavam definir os critérios de cidadania para perfilar a projeção social do País.

No artigo “Usos e abusos da mestiçagem e da raça no Brasil: uma história das teorias raciais do século XIX”, Lilia Schwarcz (1996) destaca como em meio à discussão sobre o problema da raça e do debate da cidadania entre os círculos de intelectuais, as teorias positivistas e sociais darwinistas introduzidas da Europa apontavam aos homens de ciências o lado nefasto do problema da miscigenação no Brasil. Tal interpretação teve sérios desdobramentos políticos e sociais que ajudaram a desculpar o problema das desigualdades sociais no País, a reduzir as margens do conceito de cidadania, que certamente implicava uma ampliação dos setores marginais onde se incluíam a população negra que acabava de adquirir a condição de livres, com a conseguinte onda de repressão, que sugeria a coerção de suas manifestações culturais, com independência do controle que exigiriam sobre ela e sua descendência, além das medidas higiênico-sanitárias que se tornariam medidas de controle social.

Como tínhamos referido, Nina Rodrigues foi uns dos defensores dessa linha de pensamento. Em nome das teorias deterministas científicas e raciais reconhecia as diferenças entre os homens e justificava as desigualdades entre as raças. Como destaca Lilia Schwarcz no artigo antes citado, Nina, “em consonância com o pensamento de Lombroso, chegou a defender a existência de códigos jurídicos diferentes para os negros e para os brancos, uma vez que ambos tinham diferentes estágios de evolução” (1996, p. 88). Rui Barbosa foi outro

intelectual brasileiro que avesso à presença negra no Brasil mandou queimar os registros de escravos para “apagar a mancha negra” no País Republicano.

Silvio Romero foi um desses intelectuais que adaptou as teorias raciais, mas de modo peculiar. Ainda que defensor da idéia darwinista social de que os homens são de fato diferentes, Romero acreditava num branqueamento evolutivo e darwiniano por intermédio da mistura com a imigração européia, o que implicava que apoiava a entrada de europeus e aprovava seus cruzamentos com nativos, como tábua de salvação para os problemas raciais brasileiros. Assim, fazia uma combinação de darwinismo racial com evolucionismo racial, teorias originalmente diferentes.

Do mesmo modo como no Rio Janeiro, Salvador também foi palco de políticas higienistas e de projetos de controle e estudo sobre reformas urbanas, no contexto do período republicano. As notícias dos jornais da época dão conta da vontade do governo de higienizar os espaços públicos e das medidas adotadas para afastar os terreiros de candomblés e outros comércios comandados por negros para as zonas periféricas da cidade, o que constituiu outra prova da vontade que tinham as elites brancas de afastar os negros dos lugares públicos.

Alberto Heráclito em “Desafricanizar as ruas: elites letradas, mulheres pobres e culturas populares em Salvador, 1890-1937” (1998/9), destacou as ações intervencionistas dos governos de J. J. Seabra e Calmon na reformulação da cidade e de seus costumes, com nítida pretensão de “apagar a máculas do passado”, a imagem declaradamente negra da cidade de Salvador, considerando Salvador como uma cidade que contrariava os ideais de civilização.

Sobre o problema da modernização aponta,

Aos sombrios e decadentes casarões coloniais, às ruas estreitas e insalubres, à ameaça constante de epidemias e endemias [...] acrescentavam-se a predominante tez escura da população, os costumes africanizados largamente difundidos, ‘licenciosidade’ das mulheres pobres [...] Higienizar o espaço público era tarefa que exigia novos padrões de sociabilidade, com vistas à reorganização radical da família, do trabalho e dos costumes. Nessa perspectiva, o projeto de reforma urbana, para além do sentido manifesto de melhorar a qualidade de vida da população, tinha fortes bases ideológicas e morais. (FERREIRA FILHO, 1998/9, P. 241)

Nessa direção, não foi gratuito a repressão aos terreiros de candomblés, as pretas ganhadeiras e quituteiras que percorriam a cidade mercadejando seus produtos e garantindo sua sobrevivência e a de seus familiares. Sobre a repressão aos candomblés trataremos mais adiante.

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