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3 DIVERSIDADE CULTURAL E ÉTNICA NA SERRA: SIGNIFICADOS E

3.2 AFRODESCENDÊNCIA E PATRIMÔNIO CULTURAL NA SERRA

O município da Serra possui variados patrimônios históricos e culturais, apresentamos alguns deles: Congo, Igreja Nossa Senhora da Conceição, Ciclo Folclórico e Religioso de São Benedito, Folia de Reis, Museu-residência Histórico da Serra e o espaço multicultural Casa do Congo, Igreja e Residência Reis Magos, Sitio Histórico e cultural de Queimado, Sítio Histórico e Arqueológico de Carapina etc. Elencamos esses patrimônios para melhor explicitar a amplitude da diversidade cultural serrana. Muitos dos patrimônios culturais reconhecidos da Serra possuem suas raízes nas contribuições culturais e étnicas de afrodescendentes, que são maioria no município.

Para falar sobre o povo negro e suas raízes culturais na Serra, pedimos licença para iniciar esse tópico discorrendo um pouco mais sobre história do munícipio, mais especificamente, sobre um fato ocorrido no século XIX, nomeado classicamente de “Insurreição do Queimado”. O ocorrido permeia as memórias e identidades, podemos dizer capixaba, pois, por sua relevância transpõe-se a história local.

Foi em 1849 na chamada Freguesia de São José do Queimado pertencente à cidade de Vitória na época. Embora fizesse parte de Vitória nesse período, o território e povoado do Queimado sempre estiveram mais correlacionados a Serra. Foi nessa localidade que ocorreu uma das mais importantes revoltas dos negros no Espírito Santo, contra a escravidão. “Por lei provincial desse ano (1846), sob nº 9, é elevada à categoria de freguesia a antiga povoação do Queimado, com o título de São José do Queimado, marcando-se--lhe por divisas pela freguesia da Serra e rio Tangui e porto do Una” (DAEMON, 2010, p.369).

Resguardadas algumas questões sobre a escrita da História, pois sabemos que as narrativas históricas se dão como uma construção humana, e que esse trabalho até o inicio do século XX, foi realizado por homens brancos de elite, que possuíam o olhar de sua época, intentamos contar aqui, de forma breve a história da Revolta de Queimado.

Narra-se que no final da primeira metade do século XIX, o Frei Gregório José Maria de Bene, natural da Itália e atuante na província, ao chegar na localidade vislumbrou a construção de uma igreja no local. Para tal, obteve o auxilio dos negros escravos da região (trabalhavam nos domingos e dias santos), por meio de uma espécie de acordo firmado, outros dizem subentendido, de que, os seus senhores lhe dariam a liberdade após a inauguração da igreja que foi erguida em homenagem a São José. No entanto, a tal promessa não se cumpriu, os negros, liderados por Elisiário, Chico Prego, João Monteiro e João Pequeno colocaram em prática um já articulado plano de revolta. A Revolta evidenciou a força, astúcia e união dos negros da região e mesmo a forte repressão empregada pelo Estado, que além de castigar, prender e condenar a morte alguns dos revoltosos, buscou apagar das memórias tais feitos do povo negro, não impediu que o clamor em forma de revolta ecoasse pela Província do Espírito Santo.

Emanuel Vieira de Assis (2017) que pesquisou sobre educação, patrimônio e relações étnico- raciais, com professores e estudantes da Serra no sítio histórico de Queimado, nos aponta algumas fontes documentais que comprovam o fato histórico, vejamos:

O principal documento histórico que indica fatos relacionados à construção da Igreja de São José de Queimado trata-se da carta do Frei Gregório Maria de Bene enviada ao presidente da Província, Luiz Pedreira Couto de Moraes, em 12 de maio de 1847. Nesta carta, o padre relata que a pedra fundamental para a construção da igreja se

deu em 15 de agosto de 1845, pelo próprio vigário, que esteve à frente das obras durante todo o tempo (ASSIS, 2017, p.50).

Na obra intitulada Província do Espírito Santo – sua descoberta, história cronológica, sinopses e estatística, publicada em 1879, escrita por Basílio Daemon, intelectual conservador do Espírito Santo, podemos observar um registro do fato:

Tendo-se insurgido neste ano (1849), no dia 19 de março, os escravos das fazendas da freguesia de São José do Queimado, e havido no dia 20 um ataque no lugar chamado Aruaba, entre eles e a força de linha comandada pelo alferes José Cesário Varela da França, sendo coadjuvado espontaneamente por seis cidadãos, entre eles pelo então bem moço o Sr. coronel Manoel Ribeiro Coutinho Mascarenhas, todos sustentando fogo contra os insurrecionados com o maior valor, deu em resultado muitos escravos se refugiarem nos sertões, por muito tempo esteve a força ali estacionada e os lavradores de Cariacica, Serra, Itapoca e Queimado se conservaram sempre armados. O pânico por este fato foi imenso em toda a população da província; daqueles insurgentes foram logo alguns capturados e outros posteriormente sofreram castigos nesta cidade, sendo também justiçados dois cabeças pelos crimes que cometeram entre eles Prego e João, tendo os outros três condenados à forca um se suicidado e outros fugido da cadeia, dos quais não houve mais notícia alguma. Muita energia mostrou e serviços prestou nesta ocasião o alferes Varela França (DAEMON, 2010, p.377).

No exposto, notamos a dimensão da Revolta, até pelo tamanho da força empregada pelo governo da época, e apreensão com que ficaram os proprietários de terras e escravos. Ressaltamos que, embora o fato da Insurreição do Queimado tenha sido brevemente citado por Basílio Daemon, em sua obra de 1879, esse, como típico conservador não ofereceu muita ênfase ao caso, reprovando a ação dos escravos. De acordo com Lavínia Coutinho Cardoso (2008) que pesquisou em seu mestrado sobre a Revolta de Queimados, a história ocorrida em Queimados será tratada com maiores detalhes e se tornará mais conhecida, a partir da obra clássica Insurreição do Queimado de 1884, do historiador e abolicionista capixaba Afonso Cláudio. Pesquisando a partir de fontes e obras de diversos autores sobre Revolta do Queimado, Coutinho Cardoso (2008, p.18) assim compõe:

A rede de ações que antecede o dia 19 de março de 1849 se traduz no que denominamos espaços de liberdade, a definir-se como uma espécie de “sincopa” libertária, na medida em que busca negociar a liberdade e exercitar o diálogo como forma de fazer ou de promover políticas cotidianas emancipatórias. As revoltas e os tumultos nos revelam as contradições existentes em uma determinada rede relacional, desmascarando a hegemonia, o consenso e a harmonia social preexistentes na forma dos códigos sociais definidos na lei. A Insurreição do Queimado constituiu um movimento de escravos inseridos em uma complexa rede social e cultural heterogênea.

Figura 1 - Ruinas da Igreja de São José no Sítio Histórico de Queimado

Fonte: Secretaria de Turismo da Prefeitura Municipal da Serra (2018)7. Proteção legal resolução nº4 1992 do Conselho Estadual de Cultura Inscrição no Livro do Tombo Histórico sob o nº183 do Conselho Estadual de

Cultura.

Nos dedicamos até aqui a história da Revolta de Queimados, por saber o tamanho da importância desse fato para memória dos que vivem ou convivem na Serra. Nela se alicerça parte importante do patrimônio cultural imaterial e material do Espírito Santo, como o Sítio Histórico do Queimado, onde se sustenta as ruinas da antiga igreja. Embora esse não seja o nosso objeto de pesquisa, não poderíamos deixar de apresenta-lo, pois, representa um elemento imprescindível para tratar de cultura e patrimônio afrodescendente na Serra.

Como já exposto, o que ocorria é que na prática, as fugas, a organização de quilombos e revoltas não era algo incomum (MACIEL, 2016), ainda mais na região da Serra, localidade onde havia muita mão-de-obra escrava. Seres humanos que como bem sabemos, enfrentavam as piores atrocidades, vivendo em condições desumanas. Condições que foram notadas até mesmo pelos que eram beneficiados pela escravidão, vejamos as observações escritas por Teresa da Baviera, no período em que realizava várias incursões no Espírito Santo em 1888:

Preenchemos a tarde de hoje cavalgando durante quatro horas em direção a Carapina, às ruínas de um mosteiro jesuíta. No início, o trajeto seguia ao longo da baía, bem acima do nível do mar e depois entramos no canal entre as colinas, ao norte da cidade. Na beira da estrada havia algumas fazendas isoladas. Além da casa senhorial, havia algumas moradias de negros. Tratava-se de cabanas de barro e palha enfileiradas e, vistas de fora, mais pareciam estábulos. A julgar pelas cabanas

7 In: TALLON, Gabrielle. "MUSEU A CÉU ABERTO" DA SERRA, RUÍNAS DO QUEIMADO VÃO SER RESTAURADAS. Prefeitura Municipal da Serra, Serra, 19 nov. 2018. Disponível em: http://www.serra.es.gov.br. Acesso em: 29 mar. 2019.

miseráveis, nada indicava uma atenção especial dos fazendeiros em relação aos escravos (BAVIERA, 2013, p.138).

Toda complexidade do processo histórico de africanos e afrodescendentes no Brasil, nos trazem percepções como: primeiro, que é indiscutível que as disparidades sociais e racismos que existem hoje, foram gestados por um processo colonizador arbitrário fundamentado na escravização de seres humanos, bem sabemos pelos estudos históricos que essa era a realidade na Serra e em todas as regiões do Brasil. Esse contexto, já aponta para necessidade que temos hoje de compreender mais a fundo as constituições sócio culturais afro-brasileiras, trabalhando o tema com afinco no processo educacional, como já previsto na lei 10639/03, a fim de combater ideias e atitudes racistas e preconceituosas. Além disso, justifica a necessidade de avanço nas políticas públicas para o enfrentamento as desigualdades sociais.

A segunda percepção tem a ver com as diversas nuances de resistência do povo negro, que não deixou-se desumanizar dentro do processo escravista idealizado pelo europeu. Sendo assim, temos além das lutas aqui retratadas como fugas, suicídios, organização de quilombos e revoltas, a cultura afro-brasileira como símbolo da persistência negra no território brasileiro, sendo incontestável a sua influência e predominância em nossa constituição enquanto sujeitos. Não foram poucas as tentativas de impor silêncio ou dissimular a herança cultural negra, mas podemos dizer que graças à firmeza e a capacidade de reinventar de um povo, essas tentativas não foram suficientes para barrar as negritudes aqui estabelecidas.

Além de castigos e prisões, aos escravos eram proibidos os divertimentos e o uso de adornos. Havia ainda uma série de restrições discriminadoras quanto à participação deles nas atividades do cotidiano social.[...] uma lei instituída em 1857, pelo Governo do Espírito Santo, que proibia os escravos de participarem do “entrudo”, uma espécie de brincadeira carnavalesca de rua, sob pena de 25 açoites e 24 palmatórias. Num terceiro caso, ocorrido em Cachoeiro do Itapemirim, em 1888, um escravo foi preso porque acompanhava um “Pagode dos Reis” (MACIEL, 2016, p.85).

Sobre o legado cultural Afro no Brasil o antropólogo Kabengele Munanga (2012, p.12) nos afirma que:

Além da história, outro fator constitutivo da identidade negra é a cultura (religiões, artes, medicinas, tecnologias, ciências, educação, visões do mundo, etc.) Geralmente, quando se fala dos povos que construíram o Brasil, pensam-se logo em colonizadores portugueses, imigrantes italianos, alemães, espanhóis, árabes, sírio- libaneses, orientais (em especial os japoneses), etc. No imaginário coletivo, acredita- se que os africanos foram trazidos aqui depois de sua captura, apenas como primitivos que chegaram “nus” acorrentados e, como todos os primitivos, não

trouxeram nada ao Brasil que importasse para ser considerado como uma contribuição digna de nome. No entanto, os aportes culturais africanos fazem parte do cotidiano de todos os brasileiros: culinário, artes musicais, visuais, religiões populares, estão presentes na maneira de ser brasileiro e brasileira. De fato, a cultura brasileira no plural e sua identidade nacional foram modeladas pelos aportes da população negra.

Diante do que discutimos, e sabendo ser o município da Serra correspondente a esse panorama, por ter calcada em seu coletivo as afro-brasilidades, queremos tratar de um patrimônio cultural que não omite essas origens, como tem ocorrido ao longo de nossa história. O trabalho com a história afro-brasileira em seus diversos formatos, ainda se mostra insuficiente (MUNAGA, 2012). Na Serra, por exemplo, esse contexto e desafio está posto nas escolas, a pesquisa de Emanuel de Assis (2017, p.92) transpareceu essa realidade, observemos o que o autor relata sobre a resposta que os alunos de uma escola do município deram ao seguinte questionamento:

Você acha que a história dos negros no Espírito Santo é preservada e valorizada? Alguns alunos afirmaram que sim, e as justificativas foram de que há festas e museus em referência à população negra no estado e as escolas ensinam a temática. Questionamos quanto a forma como é ensinado e alguns alunos disseram que nem todas as escolas trabalham o assunto como deveriam e outros disseram que este trabalho é suficiente para conhecer a história dos negros. [...] Outros alunos, a grande maioria, discordaram sobre esta preservação e valorização. Uma aluna afirmou que “o mundo de hoje as pessoas não valorizam o que o povo africano sofreu e com tudo isso o preconceito ainda rola”, ideia compartilhada por outro aluno, que afirmou que ainda hoje há escravização e matança do povo negro, o que segundo ele, comprova que não há respeito e valorização da história e cultura dos negros.

Compreendendo as problemáticas que acompanham o ensino da cultura e história afro- brasileira, e a desvalorização dos patrimônios dessa origem, ratificamos aqui o nosso estudo sobre a cultura imaterial junto aos professores do município, pelo recorte das culturas do Congo e da Folia de Reis. O caminho almejado é pelo conhecimento e valorização do patrimônio cultural imaterial local, tendo por guia os elementos e significações do Congo e da Folia de Reis de Nova Almeida, realizando reflexões e debates sobre as heranças étnicas, culturais, ensino e enfrentamento a racismos nas escolas do município. No próximo tópico iremos explanar sobre os delineamentos dessas culturas.