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80 Agora, se você não tem condições de avaliar

No documento Impressos / Caderno temático (páginas 81-83)

aquilo que está ficando para trás, o cara não está aprendendo matemática, não dá para dei- xar de aprender soma para poder ir pra frente, não? Então vai ficando para trás. Como é que você vai agir nisso aí? Então fomos perceben- do o número de crianças que estavam nessas classes especiais e que, com trabalhos razoá- veis, porque eu nunca alfabetizei ninguém, sou péssima nisso, mas com trabalhos razoáveis, as crianças saíam um pouco desse lugar. Então o problema era anterior. Eu estou falando algumas crianças, gente, mas que fosse uma só. Não que nas classes especiais não houvesse crianças com comprometimentos graves, mas é uma en- grenagem que uma vez que as crianças iam para lá, elas saíam da política do ensino regular.

Caminhamos muito com a política da edu- cação inclusiva e, sempre vale ressaltar, as me- tamorfoses do poder. Então essas crianças não estão segregadas numa certa sala, mas muitas vezes estão segregadas dentro de uma sala regular. Então é maravilhoso porque o trabalho continua, não é? Mas o que eu quero dizer é que essa questão nos trouxe uma pergunta que é “como esses trabalhos de avaliação estão sendo

feitos que faz com que essas crianças sejam en- caminhadas pras classes especiais?”.

E o meu mestrado foi sobre essas crian- ças de classe especial. Crianças de classe es- pecial, era uma ação que eu precisei desistir da pós-graduação, só que a minha orientadora não ficou sabendo que eu desisti, e depois eu voltei. Eu desisti sem a orientadora saber, por- que não adiantava mais fazer o que eu fazia, não adiantava mais me encontrar com essas crianças, fazer grupo com essas crianças, con- versar com essas professoras, não adiantava. Não adiantava porque a gente não conseguia variar essa história, ou se a gente variava era muito pouco, e eu estava numa linha pichonia- na de grupo, que eu achava que eu ia conseguir, que outros pichonianos de grupo teriam conse- guido, a questão é que eu não consegui. Mas o que eu quero ressaltar aqui é que aprendemos com esse trabalho que havia uma questão que não era colocada para essas crianças. E veja, colocar uma questão não significa um adulto perguntar; colocar uma questão significa essa questão se tornar necessária para essa crian- ça. Não havia a questão de “como será a minha

vida o ano que vem?”. Porque a classe especial

funcionava como um mini manicômio. Você ia fi-

cando, não tinha o ano que vem “será que eu

vou pra terceira? Será que eu vou repetir? Será que eu vou pro quarto? Será que eu vou...”. Não

tinha essa questão. Então tínhamos de pensar essa questão num certo ano. Bom, o que impor- ta aqui é que foi desenvolvido um certo traba- lho que gerou uma certa reflexão e poucos anos depois, dois anos depois, na rede onde eu tra- balho lá em São Paulo, na rede municipal, eles me chamaram na verdade, nessa época era do Estado, eles me chamaram e falaram assim, em dezembro “Adriana, nós temos 130 crianças para

fazer avaliação psicológica, você podia pegar?”.

Em dezembro que é aquele mês bom de você ir para escola, certo? Tudo calmo, tranquilo, tudo funcionando normal. Por que era dezembro? Porque essas crianças eram colocadas numa kombi, iam para uma conveniada da prefeitura e voltavam com o diagnóstico, às vezes com duas consultas voltavam com diagnóstico. No ano seguinte, dependendo do diagnóstico, elas iriam ou não para uma classe especial. Eu me lembro que, na época, era como se fosse hoje uns 200, 250 reais a avaliação, 200 vezes cento e tanto. Eu gosto de contar isso porque já pres- creveu. Eles puseram esse dinheiro na minha conta, a gente montou uma equipe de 16 pes- soas para no ano seguinte ir nas 20 escolas que essas crianças estavam e realizar um trabalho que durou uns seis meses e esse dinheiro foi gasto paras conduções e para os materiais que eram necessários para essas 16 pessoas.

Eu brinco que eu gosto de falar porque era tudo errado, não pode pegar o dinheiro do Estado, pôr na conta do banco de uma pessoa. Depois essa pessoa pegar o dinheiro e montar uma equipe, tudo sem papel. Mas por que que é interessante contar? Porque tinha uma aposta. Uma aposta feita na construção de uma rela- ção de aliança. Assim, eu confiava muito nes- sas professoras e essas professoras confiavam muito em mim, e nós tínhamos que fazer avalia- ção psicológica de 130 crianças. Então nós cria- mos um procedimento. E olha que interessante gente, a gente foi para as escolas, vocês podem falar “bom, mas eu estou no meu consultório”. Mas aí o que eu quero dizer é que a inspiração que eu tenho é a partir dessa experiência.

Nós fomos para as escolas, conhecemos essas crianças, conhecemos os professores, conhecemos a escola, participamos da rotina e constituímos ter o que dizer. Mas os elementos imprevistos nesses trabalhos eram incríveis,

C a d e r n o s T e m áT iC o s C r P s P Psicologia em emerg ências e desastres C a d e r n o s T e m áT iC o s C r P s P Psicologia em emerg ências e desastres C A D E R N O S T E M ÁT iC O S C R P S P P a

tologização e medicalização das vidas: reconheciment

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porque, de repente a gente tinha de dizer que 20 dos 130 encaminhamentos eram porque as crianças estavam bem. Mas fala “ué, mas por

que que a professora quer uma avaliação psi- cológica porque a criança está bem?”. Porque

eram professores, muitas vezes da classe es- pecial, que queriam que essa criança voltasse para o ensino regular. Mas vejam bem, somos professores do ensino regular, vou receber uma criança que estava na classe especial, o que vai acontecer comigo? Primeira vez que ela der uma detonada, eu vou ficar insegura, vou falar “gen-

te, primeiro que ela estava na classe especial, ela tem problemas graves, eu não sei o que fazer, ela acabou de bater no menino, o que será que é isso? Que uma criança bateu em outra?”. isso

vai ser significado dentro de uma história que me constituiu achar isso estranho, porque essa criança era dessa escola e eu não a via nos úl- timos três anos porque ela estava lá na classe especial, com recreio separado para não fazer bagunça. Então, é muito legítimo o que essa professora está pedindo. A gente foi perceben- do que a avaliação psicológica participa de um campo de disputa. Dependendo da forma como vamos dizer o que conhecemos, participaremos desse campo de relações, que é o nosso objeto, mudando mais ou menos.

Olha que interessante: Eu avaliar uma me- nina que tem uma doença grave, que tá sempre quietinha, tem um problema neurológico, tem medo, depois de três meses na escola, ela já bri- ga pelo lugar que ela quer sentar. E eu avaliar um menino na vida 10, na escola zero, né? Guarda os carros, bacana, articulado, analfabeto. Três me- ses depois articulado, bacana, analfabeto.

Eu pergunto para vocês: quem está me- lhor? A menina ou o rapazinho? A menina, e ela tem uma doença neurológica grave, ela está muito melhor, porque eu estou avaliando a mu- dança nesses três meses. Então, tem um mote do Lourau, analista institucional, bem interes- sante que é: “nós não conhecemos para trans-

formar, nós transformamos pra conhecer. Não se conhece sem ser em transformação”.

Uma professora que diga para mim “ele é

de uma família pobre” ou “ele é irmão de fulano e, portanto, não vai aprender” é autoritário e gra-

víssimo eu colocar umas aspas na fala dessa mulher, colocar na minha dissertação de mes- trado ou na minha tese de doutorado dizendo que essa mulher é preconceituosa. Começamos

a conversa, de repente pode ser que ela tenha falado isso porque está muito difícil, porque foi muito difícil com o irmão, ela foi marcada des- sa maneira e ela está isolada nesse trabalho. Como que esse elemento está presente nas nossas avaliações psicológicas? Que é algum elemento que construiu a forma de uma pro- fessora sentir ou pensar, ou a gente vai lá e diz que ela é equivocada, né? Ela é equivocada e nós somos históricos? Não, ela é perfeita, ela é construída num certo campo de relações, per- feita nesse sentido. A perfeição da construção de um certo fenômeno.

Então, fomos convocados a fazer esse tra- balho, entramos em contato que, no processo de avaliação psicológica, as coisas mudavam. Tinha gente que retirava a queixa. Sabe assim, igual delegacia? “Ai, Adriana, a gente não quer, mas

não precisa mais desse trabalho com essa criança porque você viu como está aquela sala de aula?”.

“Não, nada, ela até está melhor”, “mas você viu

como está essa sala de aula?” Então dependen-

do da maneira como a gente entra em contato com essa demanda, a demanda é uma porta de entrada, é uma oportunidade. A gente vai criar as variações que nos dirão se a avaliação psicológi- ca foi boa ou ruim. E repetindo: a avaliação psico- lógica da Vilmara, dessa menininha, tá indo tudo bem; a avaliação psicológica do Welington tá di- fícil, ele permanece no mesmo jeito e ninguém o quer, como que a gente vai fazer isso?

É interessante também pensar que, no ano de 2003, eu fiz parte do Conselho Federal de Psi- cologia, e foi o ano que saiu uma regulamenta- ção sobre avaliação psicológica, documentos, atestado, relatório, avaliação psicológica. E eu amava a definição que estava, a gente demorou assim, cinco dias lutando horas, palavra por pala- vra. Depois isso mudou, em 2018, houve uma ou- tra resolução e essa foi revogada e a resolução atual é uma resolução muito mais ligada a como os testes psicológicos tão sendo utilizados, qual é a padronização, qual é a necessidade, enfim.

Mas o que eu quero dizer é que na defini- ção, o objetivo de uma avaliação psicológica é servir como instrumento para atuar não somen- te no indivíduo, mas na modificação dos condi- cionantes que se operam desde a formulação da demanda até a conclusão do processo de ava- liação. Quer dizer, a avaliação tem que ser ins- trumento de disputa. Tanto a gente sabe disso que quando a gente quer dar uma de bacana e

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