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46 crito, mas a prescrição não funciona o tempo

No documento Impressos / Caderno temático (páginas 47-49)

todo, ele tem aí espaços de negociação. Então, a gente vai vendo, ao longo do tempo, por exem- plo, o debate entre o evolucionismo e o criacio- nismo. Se a escola deve ensinar, já que ensina o evolucionismo, tem que ensinar também o criacionismo. Eu acho que são expressões de como é que essa onda conservadora, que fun- ciona, como a Biancha apresentou bem, numa perspectiva macroestrutural, mas que também vai se construindo nos pequenos fios que vão se amarrando, se tecendo, se desamarrando no cotidiano. Vai criando uma certa naturalização de um conjunto de relações e exclusão de ou- tro conjunto de relações. Com a legislação que obriga a introduzir no currículo a cultura, a his- tória e cultura de matriz africana, a gente tem uma série de relatos de práticas no cotidiano, tanto de professoras e de professores, como de famílias que não querem ou apresentar aquelas propostas ou as famílias que não querem que os seus filhos participem daquelas atividades. Então, tem aí um espaço de muita tensão de como é que isso vai se produzindo, como é que isso vai sendo construído.

Em relação ao diagnóstico e ao trabalho educacional, vou sempre olhar pelo lado de cá que é o único que eu posso olhar, que eu conheço um pouquinho. Eu entendo, quando a professora diz, “olha, eu preciso saber se eu estou fazendo certo ou se eu estou fazendo errado”. Eu entendo isso dentro de uma determinada matriz de compreen- são do trabalho pedagógico, que é um trabalho uniforme. Então, eu preciso ter categorias para que eu possa construir um trabalho que sirva para A, para B, para C e para D, ainda que eu entenda que é bom que estejam todos na sala de aula. Eu acho que essa ideia a gente, de certa forma, já con- seguiu consolidar um pouco. Mas, o trabalho com quem sabe ler é diferente do trabalho com quem não sabe ler, e o trabalho com quem não sabe ler porque não presta atenção, é diferente do traba- lho com quem não sabe ler porque tem alguma... aí alguma... alguma o quê? Então eu preciso alguém que me diga o que que essa alguma é, porque eu não tenho elementos para saber. Então, enquanto a gente trabalha com essa ideia de “o ensino pa- dronizado é o que promove aprendizagem”, essa ideia de transmissão de conteúdo e de procedi- mentos que permitam uma boa transmissão, essa pergunta tem sentido, porque eu preciso saber quais são os recursos para fazer essa transmis- são na medida e qual é a possibilidade, enfim.

Me parece muito difícil, tem sido muito di- fícil, apesar de a gente ter uma produção, pelo menos desde a década de 50 do século passado na pedagogia, de pensar o trabalho pedagógi- co de um outro lugar. Quer dizer, a referência do trabalho pedagógico não é o ensino, é a apren- dizagem, e a aprendizagem é necessariamente plural, aprendizagem não pode ser enquadrada. É claro, você pode construir tipos ideais, mas eles são apenas tipos ideais; e a aprendizagem, ela é múltipla, no próprio sujeito e no conjunto de sujeitos. Quando eu trabalho com aprendiza- gens, na sua pluralidade e na sua complexidade, essa pergunta deixa de ter sentido. Por isso a gente tem investido muito na ideia da profes- sora pesquisadora, que busca conhecer na sua experiência o que está posto naquele conjunto de relações, problematizar, conhecer, compreen- der, confrontar, não é simplesmente identificar. Então, é preciso dar mais consistência a essas perspectivas da pedagogia ou das pedagogias, que vão tomar como centralidade a relação pe- dagógica olhando as aprendizagens, e como é então que os sujeitos que estão nessa sala de aula participam dessa relação aprendizagem/ ensino. Aí essa pergunta, ela vai perdendo o sentido, porque é preciso que eu vá construin- do, na relação com esses sujeitos, porque são eles também que vão me dizendo como é que é possível que esse diálogo se realize. E entre to- dos os sujeitos, porque mesmo as crianças pe- quenas, e claro que os adolescentes e os jovens ainda têm maior possibilidade, mesmo as crian- ças pequenas muitas vezes são elas que nos dizem, “olha, olha como é que o fulano tá fazen- do, olha que desse jeito ele fez melhor. Olha que esse dia o trabalho dele ficou mais bonito”. Quer dizer, também as crianças vão nos ajudando a perceber quais são as propostas que a gente pode produzir na sala de aula que vão alimentan- do com maior intensidade as possibilidades de aprendizagem. Então, me parece que o laudo, o diagnóstico, do ponto de vista do trabalho peda- gógico, ele é desnecessário, ainda que, conhecer essas especificidades seja importante para que eu possa ir constituindo essa relação que se es- tabelece na sala de aula. Então, eu entendo que aí toda classificação hierárquica me parece des- necessária para o processo de aprendizagem e ensino, para aprender e para ensinar. Outras coi- sas são as outras funções sociais, inclusive de seleção que a escola efetivamente na sociedade ocupa, mas aí, quer dizer, é uma outra coisa que está dentro da escola.

C a d e r n o s T e m áT iC o s C r P s P Psicologia em emerg ências e desastres C a d e r n o s T e m áT iC o s C r P s P Psicologia em emerg ências e desastres C A D E R N O S T E M ÁT iC O S C R P S P P a

tologização e medicalização das vidas: reconheciment

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E, nesse sentido, eu sempre me pergunto, entendendo uma determinada função da sala de recursos: por que é que todas as salas de aula não deveriam ser salas de recurso, salas em que nós tivéssemos disponíveis a variedade de materiais e de possibilidades que existem para que os estudantes, todos eles, possam se utili- zar daqueles recursos, inclusive, entre si? Não estou dizendo também que todos e todas nós, independente da nossa condição, em alguns momentos, não precisamos de alguma atenção específica, mas isso é da nossa condição huma- na. Parece-me, por isso ou por aquilo, que em alguns momentos nós precisamos de um traba- lho mais específico, de um trabalho mais talvez individualizado, talvez num grupo menor, alguma coisa que precise, mas eu vejo que isso é uma necessidade humana. Claro, alguns talvez de- pendam mais, precisem mais do apoio de deter- minados recursos do que outros. Então, de certa forma, eu acho que nós vamos alimentando uma ideia de uma certa segregação. É interessante isso, quando a sala de recursos funciona bem, as crianças, todas, querem ir para lá, porque na sala de recursos tem fantoche, na sala de recur- so a gente brinca, porque na sala de recurso a gente desenha, porque na sala de recurso a gen- te faz um monte de coisas. Então assim, quan- do ela funciona bem, não como um espaço de segregação, mas como um espaço pedagógico, todas as crianças querem ir para lá. Eu acho que isso também nos indica coisas de qual é um dos problemas de funcionamento da sala de aula, dessa sala de aula, de certa forma, árida. E vai havendo uma compreensão nossa, professoras e professores, de que realmente são aqueles meninos e meninas especiais que precisam dos recursos. Eu acho que a gente precisa também pensar nessa certa redução da importância do que está ali dentro da sala de recursos, não como algo específico de um grupo, mas como algo que devia ser de uso dos estudantes de um modo geral. Bom, então eu acho que foram es- sas as questões que foram aparecendo. Eu acho que, fundamentalmente, seria a necessidade de a gente colocar em discussão um projeto de es- colarização que é monocultural, numa sociedade que é multi e intercultural. Eu acho que quando a gente coloca isso em discussão, me parece que a gente pode pensar o processo pedagógico de um modo mais interessante.

João Paulo: Bom, rapidamente sobre a questão da onda conservadora, claro que a

gente tem visto que é um fenômeno mundial, enfim, as causas também são múltiplas, mas eu queria chamar atenção só para um dado que também não é específico do Brasil, mas é que tem sido revelado em algumas pesquisas mais recentes, que é a questão da mobilização do afeto, do medo por uma determinada corrente política e de poder, que pode explicar uma parte inclusive dessa admiração de uma parte da ju- ventude por algumas promessas aí de soluções em relação à violência. Aliás, o Chico Buarque, no novo álbum dele na música Caravanas, ele fala que “filha do medo, a raiva é mãe da co- vardia.” A gente precisa pensar um pouco nessa construção também autoritária das nossas re- lações, e isso acho que tem um trabalho muito interessante que tá sendo feito agora pelo Jes- sé Souza, retomando a questão da escravidão como instituição fundadora das relações, para a gente ver como é que a gente faz para desmo- bilizar esse tipo de afeto e começar a trabalhar com outros.

Sobre a neutralidade dos juízes, neutra- lidade eu não acredito em ninguém, nem no juiz e nem em ninguém. Você tem mecanismos processuais que pretendem garantir a impar- cialidade do juiz no sentido de que ele não vá julgar por inimizade, por interesse econômico, interesse pessoal dele e tudo mais. Agora, os mecanismos são falhos, não é? Você tem recur- so, então, quer dizer, você tem primeiro o direi- to a ser julgado por um juiz natural, ou seja, o teu processo vai ser distribuído livremente para algum juiz que você não sabe quem é. Depois da decisão desse juiz monocrático, você tem direito a um recurso, supostamente terá um co- legiado, diminui a chance de você estar sendo de novo julgado por interesse pessoal de um só sujeito. Agora, isso é um sistema criado por humanos e que, portanto, tem as suas falhas. E assim, por mais que as pessoas se debrucem em buscar algumas soluções, no nosso arran- jo institucional, aquele que eu havia menciona- do de constituição aberta, abrangente, ele fica mais difícil ainda. Porque toda decisão judicial, seja ela literal, então eu posso ler o texto da Constituição que está dizendo lá, “o AEE deve ser ofertado preferencialmente na escola”. Pri- meiro que o sistema de justiça não sabe nem o que é AEE, já começa daí, aí já confunde com a educação especial e tudo mais, lê o “preferen- cialmente” eu posso fazer uma interpretação literal daquilo, dogmática, dizer, “eu estou lendo

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