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III. Razões genésicas da Obesidade e Sedentarismo

2. Agricultura e consequências para as sociedades humanas

2.2. Agricultura e estratificação social

Ao contrário das sociedades existentes até então, a intensificação da domesticação das plantas e animais e o consequente incremento substancial da densidade populacional, aumentou também o potencial de cooperação, coordenação e divisão do trabalho nas sociedades humanas, desencadeando uma organização social até então inexistente (Bowles et al., 2010; Richerson e

Boyd, 2001; Wells, 2006). Como salienta Diamond (2002b), a domesticação

impôs, não só, alterações em plantas e animais, como também influenciou mudanças no comportamento humano.

A agricultura desencadeou uma mudança na forma de vida do Homem ao exigir que este se estabelecesse em aldeias e cidades permanentes para permitir a sustentabilidade e defesa da produção de alimento o que, por sua vez, possibilitou o desenvolvimento social das populações e a consequente criação de sociedades organizadas (Diamond, 2002b; Gupta, 2004).

Segundo Wells (2006), à medida que a população ia aumentado, as

relações que caracterizavam as sociedades “igualitárias”88 existentes até então

foram sendo substituídas por relações económicas e políticas, onde o acesso a alimento dependia cada vez mais de direitos e obrigações do que da produção em si. Assim, com a emergência das sociedades complexas há 5 000 anos, surgiram transformações sociais que culminaram com a estratificação social que caracterizou o desenvolvimento de civilizações em diversas zonas do

planeta, como no Egipto, no Médio Oriente, na Índia, na China, na África subsariana, no Peru e no México, onde o controlo da produção de alimento se tornou intensivo (Richerson e Boyd, 2001; Wells, 2006).

Um exemplo das alterações sociais ocorridas foi a divisão de trabalho entre homem e mulher. Tal como muitos outros autores, Haaland (1995) defende que a actividade de recolecção de alimentos era maioritariamente efectuada pela mulher enquanto a de caça era uma função eminentemente atribuída ao Homem, sendo o prestígio deste último geralmente associado ao sucesso da caçada. Com a mudança para uma sociedade mais baseada na agricultura, e a consequente reorganização no trabalho da mulher, as actividades direccionaram-se principalmente para o cultivo de plantas, ao invés de se focarem no prestígio do Homem inerente à sua actividade de caçador. Tal exigiu um certo grau de liberdade da mulher para efectuar as actividades que passaram a ser a base da subsistência, o que poderia ter entrado em conflito com o estatuto do Homem, geralmente detentor de um papel dominante na tomada de decisão, limitando a intensificação da agricultura, numa primeira fase (Haaland, 1995; Richerson e Boyd, 2001). Contudo, mais tarde, com a invenção do arado e a domesticação dos bovinos, a agricultura e a criação de gado tornou-se um trabalho mais reservado aos homens (De Laet, 2000, p. 388).

Para Haaland (1995), a mulher encontrava-se não só ligada a actividades relacionadas com a recolecção e processamento de plantas como também com a produção de equipamentos para essas actividades, incluindo a cerâmica e os instrumentos de pedra. Tal parece ser confirmado através de analogias etnográficas e indícios arqueológicos existentes que demonstram que a mulher terá estado na base de inovações importantes inerentes à

aplicação do fogo89, como a transformação dos potes de barro utilizados para

armazenamento, em utensílios usados para cozinhar alimentos. Por outro lado, a produção de instrumentos líticos, considerado por uns como uma actividade exclusiva do Homem, foi também relacionada como a actividade feminina,

89

A descoberta e a utilização sistemática do fogo remonta a 1,5-1,0 milhões de anos, tendo tido implicações muito importantes na evolução biológica do homem (alterações do tubo digestivo), no seu conforto mediante condições climatéricas adversas e protecção contra predadores (Santos, 2007, pp. 150-151).

suportando também a hipótese que as tarefas ligadas ao processo de preparação e armazenamento dos alimentos seriam efectuadas pela mulher.

Contudo, se a produção de cerâmica veio facilitar a preparação e aumentar o consumo de alimentos cozinhados, esta terá também exigido uma intensificação do trabalho da mulher na aquisição de alimentos através da recolecção e moagem de recursos vegetais, situação que parece ter sido atenuada com o aumento do trabalho infantil (Haaland, 1995).

Para além das implicações no seio das comunidades, a manutenção de uma produção constante de alimento e a maior organização social das sociedades agrícolas possibilitava uma vantagem perante as de caçadores- recolectores (Richerson e Boyd, 2001). Diamond (2002b) salienta ainda que o excedente alimentar resultante da agricultura seria usado para alimentar vários grupos sociais entre os quais, os artesões, os inventores, os reis, os burocratas, os nobres e os soldados, reforçando a estratificação social.

Na mesma linha, Haussmann (1989, p. 95) refere que com a evolução das sociedades, um grupo de homens (numa fase posterior, exércitos) seria responsável pela defesa da população contra os infortúnios e as pilhagens das sociedades vizinhas, sendo compensado com uma parte, cada vez mais abundante, dos produtos alimentares provenientes da agricultura. Esse grupo,

comandado pelas classes governantes – chefes militares e religiosos90 – teria

passado a ser permanente e investido de um poder, muitas vezes abusivo, que lhe permitia despojar o agricultor de todos os bens, reduzi-lo aos limites da escravidão legitimada e exigir-lhe um imposto (em bens alimentícios), remetendo-o para os limites da sobrevivência. A competição pelo maior número de recursos possível que caracterizou as sociedades agrícolas fez então surgir a noção de «propriedade», conceito que apesar de já existir nas sociedades de caçadores-recolectores, assumiu uma importância considerável nessas comunidades (De Laet, 2000, pp. 388-389). Deste modo, as sociedades podiam prosperar porque existiria sempre alguém “que trabalha sem descanso para os alimentar e é apenas pago com o direito de não morrer à fome” (Haussmann, 1989, p. 95).

Assim, o excedente alimentar proveniente da agricultura fortaleceu não só a estratificação social, mas também favoreceu a centralização política e o surgimento de exércitos, vantagens que foram aproveitadas pelas sociedades de agricultores para expulsar os caçadores-recolectores das áreas favoráveis à domesticação (Diamond, 2002b).

Conforme refere Wells (2006), o excedente de alimento possibilitado pela agricultura passou a funcionar como um depósito de gordura “extra- corporal” quebrando a ligação fisiológica entre o armazenamento de energia e o tamanho do corpo. As pessoas de estrato social elevado tinham não só prioridade no acesso ao alimento em tempos de fome, como possuíam também o controlo dos recursos necessário para manipular os outros. O desenvolvimento de excedente alimentar esteve e continua a estar fortemente implicado com a desigualdade social que exerce, ainda hoje, um forte efeito na saúde do Homem.