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III. Razões genésicas da Obesidade e Sedentarismo

2. Evolução da Actividade Física e Sedentarismo

As evidências antropológicas apontam a actividade física como tendo sido uma prática integral e necessária aos nossos ancestrais que viveram no período do Paleolítico Superior (Cordain et al., 1998). Chakravarthy e Booth (2004) referem que as sociedades de caçadores-recolectores teriam que ter uma actividade física diária intensa para satisfazer as suas necessidades básicas de sobrevivência, como a ingestão de alimentos, de água e a procura de abrigo, entre outros, que exigiriam, muitas vezes, a deslocação por longos percursos. Dado que a actividade de encontrar alimento nem sempre era bem sucedida (Diamond, 2003), os hominídeos teriam passado por períodos de

abundância intercalados por períodos de escassez de alimentos56 resultando

em ciclos de abundância–escassez assim como de actividade física–descanso (Chakravarthy e Booth, 2004).

Vários autores especulam que nestas sociedades de caçadores-

recolectores, um fenótipo57 que favorecesse a inactividade física iria aumentar

a probabilidade de estes e dos seus descendentes serem eliminados através

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Chakravarthy e Booth (2004) sugerem que os períodos de escassez poderiam ser consequência de condições ambientais adversas, caçada sem sucesso ou incapacidade para caçar devido a inactividade física ou doença.

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O fenótipo refere-se às características observáveis, ou seja, bioquímicas, estruturas e comportamentais que se apresentam num organismo ou numa população de organismos. Genótipo diz respeito ao material hereditário de um organismo ou presente numa população de organismos. O fenótipo resulta da interacção do genótipo com o meio ambiente (Provine, 1991, pp. 286-304).

da selecção natural58 (Booth et al., 2002), uma vez que seriam incapazes de obter alimento através da caça ou actividade recolectora (Chakravarthy e Booth, 2004). Por outro lado, como Booth e Lees (2007) referem, um fenótipo que potenciasse uma actividade física moderada, permitindo uma maior capacidade de obter alimento para produzir a energia necessária ao trabalho físico, seria mais provável de sobreviver, sendo o seu “pool” genético transferido para as gerações futuras.

Tais considerações basearam-se no conceito de “thrifty genotype”59

proposto por Neel (1962, 1999), no qual certos genótipos, os “thrifty”, seriam seleccionados no genoma humano devido a determinadas vantagens evolutivas apresentados sobre aqueles não “thrifty”. O mesmo autor definia o genótipo “thrifty” como sendo excepcionalmente eficiente no armazenamento e/ou utilização dos alimentos. Consequentemente, em períodos de escassez de alimento, os indivíduos com o genótipo “thrifty” apresentariam uma vantagem evolutiva devido à maior capacidade de armazenamento prévio de energia (nos períodos de abundância de alimento), essencial para manter a homeostasia, relativamente aos que não o possuíssem, ficando estes últimos em desvantagem e por isso, com menor probabilidade de sobreviverem. Contudo, como Stannard e Johnson (2004) acentuam, a vantagem de um armazenamento energético rápido e eficaz, proposto pelo genótipo “thrifty” de Neel, seria de pouca valia se o alimento não fosse primeiramente obtido, pelo que os genes que preservassem a capacidade física, em períodos de privação alimentar, seriam de maior importância para a sobrevivência do Homem.

Chakravarthy e Booth (2004) referem que durante o último século se verificaram, nas sociedades industrializadas, inúmeros avanços tecnológicos que permitiram ao Homem produzir, armazenar e transportar alimentos com o mínimo de esforço físico, ficando estes últimos disponíveis 24 horas por dia. Na realidade, as recentes alterações culturais remeteram o esforço físico para fora da vida diária do Homem contemporâneo, dado que, ao contrário dos seus ancestrais, a maioria das pessoas, actualmente, não necessita utilizar trabalho

manual para procurar alimento60. Assim, nestas sociedades, os ciclos de escassez de alimento e actividade física deixaram de existir, passando a prevalecer ciclos de abundância de alimento – inactividade, o que resulta num maior e provavelmente menos saudável armazenamento de energia proveniente da alimentação.

Norteados por esta assumpção, Wendorf e Goldfine (1991), no seu trabalho pioneiro sobre a diabetes mellitus tipo II, propuseram que o fenótipo “thrity” deste tipo de diabetes poderia contribuir para a resistência da insulina

no músculo61 acarretando vantagem em períodos de escassez de alimento. No

entanto, os resultados de alguns estudos etnográficos têm demonstrado uma

disponibilidade similar de recursos alimentares entre sociedades

contemporâneas de caçadores-recolectores e agricultores pré-industriais, sugerindo que ambas passam por idênticos períodos de abundância e escassez de alimento. Assim, os resultados não sustentam o argumento de que os caçadores-recolectores ancestrais tinham acesso a menos alimento e que passavam por ciclos frequentes de “abundância e fome”, e que tal traria uma vantagem selectiva para o “thrifty genotype” (Benyshek e Watson, 2006). Contudo, as ilações destes estudos não têm em consideração que o clima do Plistocénico Superior era bastante diferente do actual e que, por isso, teria imposto várias condicionantes na abundância de recursos encontrados pelas sociedades ancestrais de caçadores-recolectores.

Numa outra perspectiva, Chakravarthy e Booth (2004) alargaram o

conceito de “thrifty genotype”, proposto por Neel, para a actividade física, sugerindo que alguns genes “thrifty” foram seleccionados há 10 000 anos, num contexto em que a pressão ambiental de uma sociedade de caçadores- recolectores exigia uma actividade física para a sua sobrevivência, dado que somente através desta seria possível a obtenção de alimento. Reiterando esta

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A esse respeito, verifica-se que, actualmente, o homem para obter alimentos, pode facilmente dirigir-se ao supermercado mais próximo e escolher das suas prateleiras o que mais lhe agrada. Mais ainda, os recursos hoje disponíveis permitem-lhe em questão de minutos (quiçá segundos), obter alimentos prontos a comer, os chamados alimentos fast-food.

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A diabetes tipo IIresulta da incapacidade dos tecidos de responder à insulina, causada pela diminuição da secreção desta hormona ou pela diminuição do número de receptores para a mesma. O número reduzido de receptores para a insulina resulta em níveis elevados de glicemia, os quais induzem os adipócitos a converter a glicose em gordura (Seeley et al., 1997). Este facto acarretaria vantagem em períodos de escassez de alimento uma vez que os indivíduos com o genótipo “thrifty” seriam aqueles com mais reservas.

ideia, Booth et al. (2008) indicam que o aumento no armazenamento de gordura após o início da inactividade física é um mecanismo de sobrevivência herdado para armazenar energia em antecipação a um período de deficiência alimentar. Assim, existe uma diminuição da sensibilidade à insulina na repartição da glicose pelo músculo esquelético inactivo que passa a ser utilizada pelos adipócitos, ocorrendo o armazenamento da gordura. Contudo, este fenótipo torna-se mal adaptado quando a inactividade física permanece por meses ou anos.

Por outro lado, Speakman (2008) refere que a maior probabilidade de sobrevivência dada pela suposta vantagem evolutiva que o armazenamento e/ou utilização de alimentos poderia proporcionar em períodos de escassez é, actualmente, uma explicação insuficiente para a propagação dos genes “thrifty” uma vez que os períodos de escassez são fenómenos raros no tempo moderno. Este autor argumenta que os genes que favorecem a obesidade não foram seleccionados no passado como uma vantagem evolutiva, como advogado no conceito “thrifty genotype”, tendo sido submetidos à deriva

genética62 devido à ausência de selecção. Segundo o mesmo, a gordura

corporal foi historicamente regulada por um sistema que envolve dois limites: um pelo risco de fome e outro pelo risco de predação. Contudo, há 2 milhões de anos, o Homem passou por uma transição na sua exposição ao risco de predação devido ao desenvolvimento do comportamento social, das armas e ao uso do fogo, que eliminou esta forma de regulação da gordura corporal, passando esses genes a serem sujeitos a mutação e deriva aleatória. Esta hipótese é uma alternativa à hipótese do “thrifty genotype”, designando-se por hipótese do “drifty gene”.

À luz do conhecimento actual sabe-se que quase todos os genes ou mecanismos reguladores epigenéticos que o Homem apresenta actualmente foram originalmente seleccionados pelos humanos comportamentalmente modernos que aparecerem em África há cerca de 100 000 - 50 000 anos. Nos milénios que se seguiram existiu uma evolução genética, exemplificada pelas

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alterações na pigmentação (cabelo, olhos e pele), na retenção intestinal da lactose para além da infância e nas defesas adaptativas contra microrganismos (hemoglobinopatias e adaptações do sistema imunitário) (Eaton et al., 2010), contudo os processos bioquímicos e fisiológicos foram mantidos (Smith e Morowitz, 2004).

Assim sendo, vários autores admitem que o Homem contemporâneo se encontra ainda geneticamente adaptado a uma forma de vida de caçador- recolector, o que sugere uma ligação entre o exercício físico e a procura de alimento na selecção comum de genes ao longo da evolução humana, dado que esteve quase sempre relacionado com a sobrevivência dos seus ancestrais (Booth e Lees, 2007; Chakravarthy e Booth, 2004). Nesta linha de

pensamento, Booth et al. (2008) defendem que o genoma humano terá

evoluído para suportar altas taxas metabólicas e actividades envolvendo força

muscular, necessárias numa forma de vida fisicamente activa63, as quais não

são mantidos actualmente face à adopção de um estilo de vida mais inactivo por parte do Homem contemporâneo.

Hoje, o nível de actividade física está, muito provavelmente, abaixo do limiar fisiológico e bioquímico, determinado geneticamente, e que foi programado ao longo da evolução humana (Booth et al., 2008; Cordain et al., 1998). Assim, uma actividade diária mínima imposta a um sistema condicionado para uma actividade aeróbia resulta, primeiramente, numa redistribuição energética para minimizar o aporte de glicose no músculo e maximizar um armazenamento de gordura que, eventualmente, progride para a obesidade e diabetes mellitus tipo II (Booth et al., 2008). Desta forma, a inactividade física provoca uma expressão genética anormal, sendo um factor causal directo da maioria das doenças metabólicas e cardiovasculares da actualidade (Booth et al., 2008; Booth e Lees, 2007).

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Como advogado pelos autores, a actividade física era fundamental para a aquisição de alimento, defesa e reprodução (Booth et al., 2008).

Booth et al. (2002) argumentam ainda que o exercício é usualmente visto como uma ferramenta para reparar a expressão do genoma, quando, na

verdade, o exercício físico induz a expressão normal do genoma64.

Sobre este assunto, Eaton e Eaton (2003) afirmam que hoje existe um confronto entre a biologia geneticamente controlada dos ancestrais humanos e determinados aspectos da sua vida diária. O fenótipo “thrifty”, anteriormente vantajoso em períodos alternados de abundância e escassez de recursos alimentares, apresenta-se actualmente desvantajoso em indivíduos sedentários com pleno acesso a alimentos (Booth et al., 2008). Estes factos levaram a uma crescente consciência, por parte da comunidade científica, de que as enormes alterações ambientais (caso da dieta alimentar e estilos de vida) que

começaram com a agricultura e a domesticaçãode animais há cerca de 10 000

anos, ocorreram demasiado rápido numa escala evolucionária para o genoma humano se adaptar (Cordain et al., 2005).

Mais particularmente ao longo dos últimos 100 anos, têm-se verificado grandes alterações nos padrões de actividade física do Homem, acompanhadas por uma abundância de recursos alimentares nos países industrializados. Apesar deste facto, o consumo calórico absoluto do Homem contemporâneo é menor comparado com o dos seus ancestrais (Cordain et al., 1998; Eaton et al., 2010), tornando-se maior, em termos relativos, quando considerado o gasto calórico destes últimos nas actividades que tinham que enveredar para a obtenção de alimento (Eaton et al., 2002).

Como consequência, aqueles alelos65 que evoluíram para a função,

vantagem selectiva e sobrevivência no Paleolítico Superior, estão agora expostos a um estilo de vida sedentário, a dietas ricas em gorduras e pobres em fibras, a um desequilíbrio calórico e a um aumento da esperança média de vida, que associadas, resultam numa desvantagem no que respeita às doenças

crónicas e à longevidade66. Assim, um genótipo que favorecia a sobrevivência

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Sobre este propósito, os autores vão ainda mais além quando defendem que nos estudos sobre o exercício físico, o grupo de controlo a utilizar deveria ser o grupo de pessoas fisicamente activas (Booth et al., 2002).

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pela necessidade de uma vida activa do Paleolítico Superior falha actualmente devido à adopção de uma vida sedentária (Booth, Chakravarthy, e Spangenburg, 2002; Booth et al., 2008; Booth e Lees, 2007).

Booth et al. (2002) relatam que a partir do final do séc. XX verificou-se uma contínua redução da actividade física necessária para a sobrevivência diária do Homem, assim como houve um aumento dramático da incidência de doenças crónicas. Vários autores referem ainda que, nas sociedades ocidentais, o sedentarismo contribui para a ocorrência destas doenças, assim como para a ocorrência de mortes prematuras e invalidez acarretando consigo grandes custos económicos e sociais (Fox e Hillsdon, 2007; Graham et al., 2008; Pearson et al., 2002; WHO, 2011b).

Contudo, as mudanças que ocorreram na vida do ser humano não estão circunscritas ao último século, uma vez que este passou de uma forma de vida baseada na caça e recolecção de alimentos para uma sustentada na produção de alimento, com a agricultura, há cerca de 10 000 anos. Assim, importa analisar este fenómeno para se compreender o que sucedeu desde então.