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Agrupamentos de escolas e rede escolar: apontamentos históricos e políticos

A história recente da rede escolar mostra uma evolução caracteri- zada pela emergência do “agrupamento de escolas” como solução quase hegemónica no território continental português2. Nas últimas quase três

décadas a “agregação” tem sido generalizada em detrimento da “escola isolada” que durante décadas caracterizou a implantação da resposta escolar no território. Iremos passar em revista alguns dos momentos nucleares desta construção social e política que é o “agrupamento” desde os anos 90 do século passado, para depois analisarmos algumas das dimensões da rede escolar que mais interrogações suscitam, identi- ficando contradições e desafios que nos permitem perspetivar o futuro. A Constituição da República Portuguesa é omissa quanto à defi- nição da rede escolar, a não ser nas abordagens genéricas que apresenta, como é o caso da afirmação de que é dever do Estado criar um sistema público de ensino (Art. 74º, b) e inserir as escolas nas comunidades que servem (Art. 74º, f). Na mesma linha parece ir a afirmação de que “O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população” (Art. 75º, 1) cujo mérito

2 Deixamos de parte as realidades das Regiões Autónomas dos Açores e Madeira por assumirem, ao abrigo do seu estatuto autonómico, orientações próprias neste capítulo da reorganização da rede escolar.

parece ser a garantia de que a rede escolar é mesmo uma obrigação do Estado de direito democrático assumida na sua lei fundamental.

Pode considerar-se que é com a Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE, Lei nº 46/86, de 14 de outubro) que se criam as condições propícias à consagração de soluções diferentes de organização da rede no que às escolas públicas (de iniciativa estatal) diz respeito.

A preocupação que o legislador denota em definir um perfil assente na visão de que a “articulação entre os ciclos obedece a uma sequencialidade progressiva, conferindo a cada ciclo a função de com- pletar, aprofundar e alargar o ciclo anterior, numa perspetiva de unidade global do ensino básico” (Art. 8º, 2) pode dizer-se, decorridos mais de trinta anos, viria a marcar o argumentário oficial de justificação das sucessivas ondas de reorganização da rede escolar.

Sobre a “rede escolar” (Art. 37º), é assumido que “1 – Compete ao Estado criar uma rede de estabelecimentos públicos de educação e ensino que cubra as necessidades de toda a população.” Relativamente ao “planeamento da rede”, ficou consagrado que este “deve contribuir para a eliminação de desigualdades e assimetrias locais e regionais, por forma a assegurar a igualdade de oportunidades de educação e ensino a todas as crianças e jovens” (Art. 37º, 2). Mas a prevista “regionalização efetiva” do “planeamento e reorganização” da rede escolar, bem como a “construção e manutenção dos edifícios escolares e seu equipamento” (Art. 38º), não saíram do papel pois não parece ser esta a natureza dos órgãos desconcentrados criados em 1987 (Decreto-Lei nº 3/87, de 3 de janeiro), conhecidos por direções regionais da educação e que viriam a ter um papel importante na promoção e concretização dos agrupamentos de escolas em períodos posteriores3.

A LBSE não inclui a designação “agrupamento de escolas” mas prevê algo que se pode considerar próximo que é o “grupo de

3 O Decreto-Lei nº 115-A/98, de 4 de maio, que referiremos neste texto, há-de consagrar que “Compete ao director regional de Educação, ouvidos o Departamento de Avaliação, Prospectiva e Planeamento, do Ministério da Educação, os município e os órgãos de gestão das escolas envolvidos, apresentar propostas de criação de agrupamentos para integração de estabelecimentos da educação pré-escolar e do ensino básico, incluindo postos do ensino básico mediatizado de uma área geográfica […]” (Art. 8º, 1).

estabelecimentos”, previsto no artigo dedicado à “administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino” (Art. 45º, 2 e 4).

A publicação da LBSE, em 1986, e o arranque, ainda neste ano, da Comissão de Reforma do Sistema Educativo (CRSE) criaram as condições de enquadramento político, normativo e reformista para que na última década do século XX surgissem algumas das medidas mais marcantes do sistema educativo português das últimas décadas em matéria de rede escolar. Como veremos, as justificações dos decisores políticos para as medidas de reorganização da rede dividem-se entre a racionalização da rede determinada por preocupações administrativas e pedagógicas, o imperativo da modernização e o papel da escola na promoção da coesão social. A última década do séc. XX configura, assim, um tempo de decisões que podemos considerar “programáticas” pelas intencionalidades argumentadas, o que pode ser explicado pela influência dos dois marcos atrás assinalados, a LBSE e a Reforma do Sistema Educativo.

Antes ainda dos anos 90, importa destacar a criação das escolas

C+S (tipologia que abrange o 2º ciclo do ensino básico e secundário)

em 1985. A LBSE viria a determinar o desajustamento desta tipologia com o novo desenho da escolaridade obrigatória de nove anos, o que não significa que as decisões e as lógicas dos atores se acomodem auto- maticamente às orientações novas, havendo geralmente um período de transição ou adaptação em que a nova ordem legal coexiste com práticas mais coerentes com o quadro normativo revogado.

Em 1990, é criada a escola básica integrada (adiante designada EBI, pelo Despacho conjunto 19/SERE/SEAM/90, de 15 de maio) com o pressuposto, como assinalamos no nosso trabalho (Mendes, 1995: 161), de que “é necessário encontrar tipologias que se adaptem à escolaridade obrigatória de nove anos”. A pensar nesta nova realidade que a LBSE havia consagrado, João Formosinho escrevera numa das publicações com a chancela da CRSE: “há tipologias mais congruentes com o espírito das LBSE do que outras. Embora a rede escolar esteja compartimentada por níveis (há escolas separadas do 1º ciclo, do 2º ciclo e do 3º ciclo) é mais congruente com a LBSE a aglutinação vertical” (Formosinho, 1988: 65). Além de designar estas escolas como “escolas básicas integrais”, o autor defende que “a lei ordinária deve mesmo incentivar essa aglutinação em

detrimento da compartimentação por níveis” (id., ibid.). A tipologia EBI arranca com apenas uma por Direção Regional de Educação e a nível da sede de concelho, crescendo em 1992/93 para 26 EBI e em 1993/94 para 41 (Mendes, 1995: 161-162).

Um ano depois, em 1991, é aprovado o regime jurídico de direção e gestão escolar (Decreto-Lei nº 172/91, de 10 de maio, consagrando que “Os estabelecimentos de educação pré-escolar e do 1º ciclo do ensino básico organizam-se em áreas escolares, com órgãos próprios de direcção, administração e gestão” (Art. 4º, 1). Cada estabelecimento de educação pré-escolar ou de 1º ciclo passa a constituir um “núcleo”, embora possam subsistir os “estabelecimentos não agrupados” desde que a sua dimensão o justifique (Art. 6º, 1). Após a via aberta para a verticalização dos agrupamentos proporcio- nada pela criação quer da EBI quer dos TEIP, de que falaremos a seguir, podemos ver nas áreas escolares o embrião dos agrupamentos

horizontais que anos mais tarde vão acelerar o processo de extinção

das delegações escolares4 de base concelhia e com tanta tradição na

administração educativa, sobretudo do ensino primário ou 1º ciclo

do ensino básico com a LBSE de 1986.

Em 1996 são criados os territórios educativos de intervenção prioritária (TEIP, pelo Despacho nº 147-B/ME/96, de 8 de julho e Despacho Conjunto SEAE/SEEI nº 73/96, de 10 de julho), visando instituir medidas de des- criminação positiva para compensar défices sociais e escolares, refletindo experiências de outros países como é o caso das ZEP (Zones d’Éducation

Prioritaire) em França (Costa, Neto-Mendes & Sousa, 2001).

Em 1997 o processo de “reordenamento da rede da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário” (sic) conhece um 4 No ano 2000, dois anos após a publicação do Decreto-Lei nº 115-A /98 – que, recorde- se, generaliza o mesmo regime de governo a todos os estabelecimentos, da educação pré- escolar ao ensino secundário –, o legislador clarifica o destino das delegações escolares desta forma: “A aplicação do regime de autonomia, administração e gestão nos estabelecimentos de educação pré-escolar e do 1º ciclo do ensino básico determina a cessação das comissões de serviço dos respectivos delegados e subdelegados escolares, passando as suas funções para a competência dos órgãos de administração e gestão do agrupamento ou dos órgãos e estruturas da administração educativa a quem as mesmas incumbem nos restantes níveis e ciclos de ensino” (Decreto Regulamentar nº 12/2000, de 29 de Agosto, Art. 16º).

novo impulso com o Despacho Normativo 27/97, de 2 de junho. Aí se afirma que o ano de 1997/98 é de “preparação da aplicação de um novo regime de autonomia e gestão das escolas”, devendo ser equacionadas “novas dinâmicas de associação ou agrupamento de es- colas”, antecipando-se, “de forma relativamente insular e precipitada” na opinião de Lima (2004: 17), um processo que o Decreto-Lei nº 115-A/98, de 4 de maio, viria a institucionalizar. Aliás, a pretensão assumida explicitamente em 1998 (Decreto-lei nº 115-A /98, Art. 2º, 3) de concluir o processo de agrupamento dos estabelecimentos de educação pré-escolar e do 1º ciclo do ensino básico até 1999/2000 não é de todo conseguido. Para Licínio Lima esta sucessão de nor- mativos só pode ter uma leitura crítica: “A lógica racionalizadora e de reordenamento da rede escolar emergia lentamente para não mais deixar de se manifestar, por vezes incapaz de atender a objectivos políticos mais substantivos, de carácter participativo, descentralizador e autonómico, incompatíveis com a imposição burocrática de soluções uniformes consideradas óptimas” (Lima, 2004: 17). A atenção do le- gislador mantém-se ativa e em 2000 fixam-se “os requisitos necessários para a constituição de agrupamentos de estabelecimentos públicos de educação pré-escolar e do ensino básico” (Decreto Regulamentar nº 12/2000, de 29 de Agosto). O agrupamento é apresentado (Art. 2º) como uma unidade organizacional dotada de órgãos próprios de administração e gestão, podendo integrar jardins de infância e escolas de um ou mais ciclos do ensino básico, isto é, o agrupamento nesta fase pode apresentar uma pluralidade de formas: JI+EB1; JI+EB1+EB2; JI+EB1+EB23. Quanto às finalidades a realizar pelo agrupamento, as- sumem destaque na esteira do Decreto-Lei nº 115-A/98: i) favorecer a sequencialidade e articulação do percurso escolar dos alunos abrangidos pela escolaridade obrigatória de nove anos então em vigor, o que já indicia uma tendência para a verticalização que virá a ser consagrada em 2003; ii) combater o isolamento dos estabelecimentos, claramente associado ao abandono e exclusão social; iii) melhorar a capacidade pedagógica dos estabelecimentos e a racionalização dos recursos; iv) generalizar a aplicação do regime de administração e gestão dos estabelecimentos proposto pelo Decreto-Lei nº 115-A/98 a JI, EB1 e EB23; v) uma formulação algo vaga e indefinida que aponta para a

valorização e o enquadramento de “experiências em curso” (Art. 2º), as quais englobam, na nossa análise, tipologias escolares como a EBI e o TEIP atrás referidas.

Em 2003 o agrupamento passa a ser assumido como a forma organizacional escolar preferida pela administração educativa centra- lizada desconcentrada que apelida as medidas tomadas de “política de reforma estrutural do Ministério da Educação e do sistema educativo” (preâmbulo do Despacho nº 13 313/2003, de 8 de julho). Aqui se assume inequivocamente três orientações expressas com uma clareza que ainda se não tinha visto antes: i) por um lado, agrupar todas as escolas (públicas, depreende-se) localizadas no território continental português; ii), por outro, privilegiar a tipologia do agrupamento vertical de escolas por ser a única capaz de favorecer um percurso sequencial e articulado dos alunos abrangidos pela escolaridade obrigatória de nove anos; ii) finalmente, a ideia de que o encerramento definitivo das delegações escolares até ao final de 2003 (excecionalmente admite-se o prolongamento do seu funcionamento no ano letivo de 2003-2004) será o corolário da adoção generalizada do processo de agrupamento de escolas (excluem-se as regiões autónomas dos Açores e da Madeira pela razão já antes referida).

Este processo prossegue o seu caminho inexoravelmente e com as marcas racional-burocráticas atrás referidas. Em 2010, sob a batuta do XVIII Governo Constitucional liderado por José Sócrates, a via do “reordenamento da rede escolar” passa a ser balizada por três orienta- ções: “a) Adaptar a rede escolar ao objectivo de uma escolaridade de 12 anos para todos os alunos; b) Adequar a dimensão e condições das escolas à promoção do sucesso escolar e ao combate ao abandono; e c) Racionalizar os agrupamentos de escolas, de modo a promover o desen- volvimento de um projecto educativo comum, articulando níveis e ciclos de ensino distintos” (Resolução do Conselho de Ministros nº 44/2010, de 14 de junho, 1). Para além de definir que a sede dos pretendidos agrupamentos de maior dimensão deve, em princípio, localizar-se numa escola secundária, esta resolução pretende ainda “arrumar a casa” no que diz respeito à situação das escolas do 1º ciclo com medidas como: i) encerrar as escolas com menos de 21 alunos (depois de se ter começado

pelas escolas até 10 alunos); ii) extinguir efetivamente as escolas cujo encerramento já havia sido determinado.

Cerca de dois meses depois o legislador reconhece à administração educativa competência para, por sua iniciativa ou sob proposta dos agru- pamentos de escolas e escolas não agrupadas, constituir unidades admi- nistrativas de maior dimensão por agregação de agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas (Despacho nº 12 955/2010, de 11 de agosto). É o reconhecimento da solução que viria a ser popularizada como “me- ga-agrupamento” e que é em grande medida responsável pela redução drástica do número de unidades de gestão do sistema educativo no continente, a par, claro está, da extraordinária redução do número de estabelecimentos de 1º ciclo do ensino básico de que falaremos com mais detalhe no ponto seguinte. A atrás citada Resolução do Conselho de Ministros (nº 44/2010), assegura que a construção dos centros escolares, um exemplo de “reorganização da rede escolar e de concentração de alunos”, permitiu “garantir a todos os alunos igual- dade de oportunidades no acesso a espaços educativos de qualidade” e, ao mesmo tempo, “a concretização da escola a tempo inteiro”, um programa-bandeira criado para o território continental português pelo XVII Governo Constitucional.

3. Evolução da rede escolar: estabelecimentos, alunos e