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uma mudança estrutural sob o signo da racionalização

3. Dominação burocrática

A dominação burocrática que está na base do longo e complexo processo de agrupamento das escolas em Portugal resulta exatamente de um choque de racionalidades que, simbolicamente, pode ser expresso pela tensão entre uma lógica associativa autonómica e uma lógica mo- dernizadora centralizadora, embora existam outras dinâmicas e outros interesses presentes. Contudo, aquelas duas lógicas são o núcleo de um choque entre distintas racionalidades e atores, entre referenciais políti- cos, pedagógicos e axiológicos divergentes, entre duas grandes formas de olhar para a educação escolar racionalmente.

A principal característica da dominação burocrática reside na imposição política, pretensamente neutra e baseada em razões técnico instrumentais, de uma forma singular de racionalidade – a racionali- dade formal referida a meios, subordinando a racionalidade substantiva referida a fins e valores, de acordo com Max Weber (1984). Como o próprio sociólogo alemão observou e como Rogers Brubaker sintetizou com clareza, não existe apenas uma racionalidade única e universal, para além de valores, fora de interesses e de relações de poder. Por isso mesmo, afirma Brubaker (1984, p. 4), “A distinção entre racionalidade formal e racionalidade substantiva implica que o que é racional de um ponto de vista pode ser não-racional ou irracional de outro, e vice-versa”.

Ao desconsiderar dimensões históricas e culturais, processos institucionais, modelos de formação e de prática pedagógica, senti- mentos dos atores locais, crenças e comportamentos, agora hierarqui-

camente associados à tradição, a visões imobilistas e de resistência à modernização, a dominação burocrática operou de modo exógeno, tipicamente técnico e modernizador, ignorando, ou menosprezando, as estruturas que pretendia transformar e recusando-lhes o estatuto de agentes do seu próprio desenvolvimento. Exatamente porque sabia

a priori o que seria melhor para essas estruturas, porque detinha uma

visão global e panorâmica da rede escolar e porque se apresentava como um árbitro distante, imparcial, capaz de usar o cálculo racional como base para o progressivo e acentuado processo de racionalização e formalização escolares, das identidades e das práticas pedagógicas. Ou seja, incorrendo exatamente numa parte daquilo que Weber temia na burocracia enquanto tipo de autoridade racional-legal e que a propósito do conceito de “desencantamento do mundo” foi estudado por importantes autores (ver, por exemplo, Pierucci, 2003 e Schluchter, 2014), esclarecendo como se trata do resultado de um processo de racionalização e formalização baseado numa ação racional deliberada e sistemática, calculável e mensurável, instrumental e im- pessoal, governado por regras heterónomas, correndo riscos acentuados de despersonalização das relações sociais e de desumanização. Os conflitos de valores entre pedagogia e burocracia ganham expressão em tal contexto uma vez que, como lembra Brubaker (1984, p. 22), quanto maior a racionalidade formal da administração tanto maior a sua irracionalidade substantiva.

Só uma dominação burocrática poderia dar resposta unívoca e universal, segura e certa, olímpica e de cima para baixo, em suma, racional formal, perante a existência de agrupamentos resultantes de dinâmicas associativas entre escolas, a partir de interesses comuns, de projetos ou ações de educação partilhados, ou, pelo contrário, como obrigatoriedade a todos generalizada através de injunções administrati- vas capazes de desprezar os atores locais, escolares, sociais e familiares, autárquicos, etc., ainda que mantendo discursivamente o princípio do chamado “reforço da autonomia” das escolas. Aquela resposta, como se sabe, nunca hesitou, a partir de finais da década de 1990, em extin- guir escolas, em exigir o agrupamento das remanescentes, a preferir os agrupamentos verticais aos horizontais, mais tarde a forçar a extinção dos horizontais e a sua reconversão em agrupamentos verticais e, mais

tarde ainda, a exigir a agregação das escolas secundárias não agrupadas a agrupamentos de escolas já anteriormente constituídos, retirando deles a sua sede e relocalizando-a na escola secundária. Os calendários envolvidos a partir de certo momento, até para além do que havia sido estabelecido por decreto-lei, passaram, por força de um despacho, a ser taxativos. Os atores centrais a todo esse processo nunca foram as escolas ou os municípios, os professores, os pais ou os alunos, mas antes os ser- viços centrais do Ministério da Educação e, muito em particular, as suas direções regionais desconcentradas, servidas pelos respetivos centros de área educativa (mais tarde extintos e substituídos por coordenadores). A ação coerciva estabelecida sobre as escolas impediu qualquer dinâmica associativa, a diversidade de soluções, a pluralidade de projetos.

De resto, como defendi há quase uma década e meia atrás (Lima, 2004), o processo burocrático seguido para agrupar escolas, a partir de certo momento conduzido de forma mais acelerada e em força (“musculada”, segundo a expressão pública de um diretor regional de então), não pode ser interpretado apenas como um movimento de modernização e racio- nalização da rede de estabelecimentos de ensino. Tratou-se, também, da própria reorganização do aparelho de administração escolar, designadamente através da criação de um novo escalão de administração desconcentrada – o agrupamento de escolas –, situado entre cada escola concreta e as instâncias centrais e regionais do Ministério da Educação, estas, de resto, sujeitas a um processo de simplificação a partir da extinção das direções regionais e da sua substituição pela Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares, um serviço central da administração direta do Estado dotado de cinco direções de serviços desconcentradas, dirigidas pelos respetivos “delegados regionais de educação” (Decreto-Lei n.º 266-F/2012).

Recorde-se que já em 2002, através do Decreto-Lei n.º 208/2002, fora instituída uma nova orgânica do Ministério da Educação sob o signo de “uma nova cultura de exigência e de responsabilidade”, insistindo no “ordenamento célere e adequado da rede de estabelecimentos de educação pré-escolar e de ensino básico e secundário e para o desenvolvimento eficaz do processo de agrupamento de escolas e de celebração com elas de contratos de autonomia”. Este diploma

“Aponta igualmente para processos de gestão normalizados e desburocratizados e para sistemas de informação de gestão padronizados que permitam à administração educativa recolher automaticamente informação, a qual lhe é essencial para avaliar o desempenho do sistema educativo e para o gerir globalmente”,

sem compreender que as mudanças apontadas talvez pudessem vir a desmaterializar vários processos administrativos, mas que, inversamente, apresentavam condições para a emergência de uma hiperburocracia educacional (Lima, 2012), designadamente através dos instrumentos típicos de uma “burocracia eletrónica” (Meira, 2017).

A referida mono-racionalidade dominante, de tipo utilitarista, e a sujeição de realidades díspares a um padrão considerado formalmente racional representavam, potencialmente, uma deriva burocrática em ter- mos não apenas processuais mas também em termos de substantividade educativa e pedagógica. Por mais que os legisladores, sucessivamente, reproduzissem na legislação um conjunto de finalidades a atingir e de critérios a obedecer para a constituição de agrupamentos – aparentemente substantivos do ponto de vista pedagógico –, quer os processos utilizados quer as condições disponíveis para os alcançar, dificilmente permitiram, até agora, atingi-los. Existe uma certa desproporção entre o reordenamen- to da rede escolar e a sua racionalização através dos agrupamentos das escolas, por um lado, e a magnitude das finalidades educativas politica- mente expressas, por outro. Esta articulação débil e, noutros casos, mesmo desarticulação efetiva, rompe já parcialmente com o racional burocrático e com a sua conexão entre meios e fins. A menos que os fins pretendidos se concentrem mais na modernização técnica e instrumental, nos ganhos de escala, na governança do sistema e na sua gestão desconcentrada através de novas unidades de gestão menos dispersas, do que propria- mente nas finalidades educativas apresentadas, na sua última versão, pelo Decreto-Lei n.º 75/2008, artigo 6.º, n.º 1:

“a) Proporcionar um percurso sequencial e articulado dos alunos abrangidos numa dada área geográfica e favorecer a transição adequada entre níveis e ciclos de ensino;

b) Superar situações de isolamento de escolas e estabelecimentos de educação pré-escolar e prevenir a exclusão social e escolar;

c) Reforçar a capacidade pedagógica das escolas e estabelecimentos de educação pré-escolar que o integrem e realizar a gestão racional de recursos; d) Garantir o funcionamento de um regime de autonomia, administração e gestão, nos termos do presente decreto-lei”.

Quanto aos critérios a que deve obedecer a constituição de agru- pamentos de escolas, o n.º 2 do mesmo artigo dispõe:

“a) Construção de percursos escolares integrados; b) Articulação curricular entre níveis e ciclos educativos; c) Proximidade geográfica;

d) Necessidades de ordenamento da rede dos ensinos básico e secundário e da educação pré-escolar.”

A investigação disponível dificilmente permite concluir que a maioria dos critérios de constituição de agrupamentos terá sido observada, mesmo considerando a sua formulação demasiado vaga, conhecidos que são os processos bem mais pragmáticos e hierárqui- cos que presidiram à sua constituição de facto. Com efeito, o último critério, relativo às “Necessidades de ordenamento da rede dos en- sinos básico e secundário e da educação pré-escolar” parece ter sido o critério dominante, sem no entanto esclarecer que “necessidades” teriam sido essas, do ponto de vista de quem e de acordo com os critérios de quem. Quanto, especialmente, à “Construção de per- cursos escolares integrados” e à “Articulação curricular entre níveis e ciclos educativos”, critérios educativos substantivos, uma vez mais se regista a ambiguidade da sua formulação e a parcial desconexão com a lógica de agrupamento de escolas. Os percursos escolares dos alunos passaram a ser integrados apenas por serem realizados no interior do mesmo agrupamento, embora em escolas de distintos ciclos de ensino, com transições curriculares acentuadas e em esta- belecimentos geograficamente separados? Quando a questão magna da organização dos ciclos de ensino, sobretudo do ensino básico, que é o mais problemático e fragmentado, continua por resolver em Portugal? O que lhe confere tal integração e como alcançar, naquelas condições, a articulação curricular entre ciclos? Sobretudo

a partir da produção de um projeto educativo de agrupamento que só dificilmente consegue atribuir sentido integrado e estratégico à diversidade, quase sempre atomizada, de cada ciclo, de resto com evidentes dificuldades de articulação com a educação de infância e o 1º ciclo a partir da centralidade administrativa e de status escolar atribuída ao ensino secundário? A articulação débil, a tendência para a departamentalização e as distintas dimensões culturais têm surgido na investigação (ver, por exemplo, Duarte, 2009) como indicadores das grandes dificuldades de obter a sequencialidade e a articulação formalmente anunciadas, a partir de uma subvalorização das diversas culturas e subculturas organizacionais e profissionais que, tradicionalmente, marcam sobretudo o 1º ciclo e o ensino se- cundário (Formosinho & Machado, 2005, p. 149).

Com efeito, o percurso escolar dos alunos foi sempre sequencial, como não podia deixar de ser no contexto de um currículo centralizado e de uma escola graduada, estruturalmente não alteráveis pela via do agrupamento das escolas. Mesmo a superação do isolamento de certas escolas, tendo sido radicalmente alcançado, em muitos casos pela sua simples extinção, não foi, contudo, obtido pela sua simples incorporação num agrupamento de tipo vertical em que o distanciamento físico entre escolas permaneceu, acarretando dificuldades de partilha de recursos pedagógicos e de acesso a materiais didáticos no interior de cada agru- pamento (Lírio, 2010, p. 139).

Do mesmo modo, não é líquido que por via do agrupamento de escolas seja possível “Reforçar a capacidade pedagógica das escolas e estabelecimentos de educação pré-escolar que o integrem e realizar a gestão racional de recursos”. Quanto ao reforço da capacidade peda- gógica trata-se de um objetivo contraditório face à sua deslocalização organizacional e, nos outros casos, também face à perda de todos os órgãos de natureza pedagógica que ocorreu mesmo no interior das escolas que deles dispunham anteriormente, aliás visível na baixa ocorrência de assuntos relativos aos ciclos iniciais no conselho pedagógico (Silva, 2008). Já no que concerne à “gestão racional de recursos” a questão é menos problemática do ponto de vista de uma racionalidade económica, embora não seja difícil admitir as suas consequências menos racionais

ou, no mínimo, as possíveis contradições em termos de “funcionamento de um regime de autonomia, administração e gestão” das escolas.