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A rede escolar tem sido objeto de sucessivas intervenções por parte dos decisores políticos locais e centrais que conduziram a alterações significativas da mesma nas últimas décadas. Para além dos efeitos que as mudanças inegavelmente têm sobre os profissionais (docentes e não docentes) da educação, a sociedade tão depressa reage com vigor ao encerramento de uma escola como parece alhear-se das mudanças ao conservar designações há muito desaparecidas (“ciclo” para escola básica do 2º ciclo, “c+s” para escola básica de 2º e 3º ciclos e “liceu” para escola secundária). As motivações para as mudanças são de vária ordem: i) ora determinadas pela constatação dos efeitos da chamada “crise demográfica” (encerramento de escolas do 1º ciclo do ensino básico, iniciado ainda nos tempos da ditadura), ii) ora apoiadas no alargamento da escolaridade obrigatória (o “ciclo” e a “telescola” para os seis anos de escolaridade; a “EBI” para os nove anos; o “mega-agrupamento” vertical para os 12 anos). Vistas assim, estas motivações parecem fazer sentido, sobretudo se admitirmos que a administração de um sistema educativo orienta as suas decisões segundo pressupostos económicos, administrativos e pedagógicos. Mas será da análise da prevalência destes pressupostos em cada momento da decisão que resultará o veredicto sobre a maior ou menor justiça social e educativa da medida, a forma mais ou menos cuidada como se olha para os territórios já em situação de desertificação ou em risco ou ainda a sustentabilidade da gestão democrática e da capacidade de inovação pedagógica em agrupamentos sobredimensionados onde é permanente o desafio do convívio cidadão dos atores escolares e comunitários.

Os efeitos desta ação não são uniformes nos vários ciclos da edu- cação e escolaridade nem são síncronos, pelo que é vital considerar a historicidade que caracteriza, nesta circunstância, o sistema educativo português. A “reorganização da rede escolar”, que a partir de um de- terminado momento se transformou essencialmente num “processo de agrupamento de escolas” e mais recentemente atingiu o “clímax” com o “agrupamento de agrupamentos”, conheceu várias vagas de decisão política, como vimos nas páginas precedentes. Do ponto de vista ad- ministrativo e pedagógico, não pode ignorar-se a mudança profunda

que decorre da evolução do que era uma “rede de escolas” (que se con- tavam aos milhares) para uma realidade contemporânea, simplificada e pretensamente mais eficaz, da “rede de agrupamentos” (que se contam às centenas) que a administração educativa designa de forma sugestiva por “unidades de gestão”.

O desenvolvimento desta “rede de agrupamentos” pode carac- terizar-se recorrendo ao chamado efeito “bola de neve” para descrever a escalada do agrupamento (área escolar > agrupamento horizontal > agrupamento vertical > mega-agrupamento), mas paradoxalmente é a imagem do “balão a esvaziar-se” aquela que melhor traduz a rarificação relativa da rede escolar, com a redução brutal do número de escolas do 1º ciclo do ensino básico, por um lado, e a racionalização do número de unidades de gestão, por outro. As escolas isoladas, outrora o para- digma definidor da rede, são agora uma realidade em extinção, restando ainda algumas dezenas de escolas (secundárias na maioria...) à espera de agrupar. Esta “reorganização da rede escolar” conduz, no fim de contas, a uma concentração profunda, feita de várias concentrações: dos alunos do 1º ciclo do ensino básico em centros escolares novos ou escolas requalificadas, mas também de um maior número de ciclos (no limite, todos: pré-escolar, 1º, 2º e 3º ciclos do ensino básico e ensino secundário) em cada agrupamento, o que por sua vez produz o efeito já antes referido de redução das unidades de gestão. Ainda sobre o fenó- meno da concentração de salas operado pela lógica dos novos centros escolares construídos para substituir as escolas do 1º ciclo encerradas, há uma interrogação que se justifica: ao privilegiar-se a ligação educação pré-escolar e escola do 1º ciclo não se terá perdido a oportunidade de repensar a ligação entre 1º e 2º ciclos, como lembra o Conselho Nacional de Educação (Recomendação nº 4/2011, de 26 de abril)? Bem sabemos que a relação do município com a educação estabeleceu-se, desde os anos 80 do século passado, com a educação pré-escolar e o 1º ciclo, mas os imperativos pedagógicos e a crise demográfica, pela redução da pressão que coloca sobre as instalações escolares, pediam outras soluções, porventura mais difíceis.

O ponto da situação permite-nos dizer que no ano letivo 2017- 2018 há 814 unidades de gestão, assim distribuídas: 716 agrupamen- tos e 98 escolas não agrupadas, correspondendo estas a 72 escolas

secundárias, 17 escolas profissionais e 9 escolas artísticas14. Note-se

a distribuição desequilibrada da rede pelo território continental, si- tuação que o processo de agrupamento dos estabelecimentos veio por ainda mais a nu: por um lado, é nos grandes centros urbanos das áreas metropolitanas que se verifica a maior concentração de agrupamentos por município (28 em Lisboa, 20 em Sintra, 15 no Porto, 14 em Vila Nova de Gaia...); por outro, não deixa de ser revelador que em 163 dos 278 municípios (58,6%) do território continental se tenha instituído a solução do agrupamento único, geralmente construída através de um consenso entre a administração central e a administração local. Este resultado concreto da reorganização da rede escolar levada ao limite na maior parte dos territórios municipais pode ser vista como mais uma forma que a racionalidade técnica dominante encontrou para conseguir a redução, concentração e simplificação tão do agrado da adminis- tração. As referências à rede concreta de escolas em funcionamento no ano letivo de 2017-2018 não ficariam completas sem a indicação de que há 63 escolas do 1º ciclo do ensino básico que já deveriam ter sido encerradas (por terem menos de 21 alunos) mas que ainda estão ativas por “autorização excecional de funcionamento” (Anexo II da Portaria 31/2018, de 23 de janeiro).

Outra dimensão a ter em conta são as alterações na administração educativa por via da reorganização da rede escolar. A racionalização (redução, concentração e simplificação) da rede teve repercussões sérias na transformação da administração do sistema e do governo das escolas: i) em primeiro lugar, a simplificação da tarefa de coordenação política e administrativa ao reduzir de milhares de escolas para algumas centenas de agrupamentos o universo de unidades a gerir; ii) em segundo lugar, a uniformização do modelo de gestão de estabelecimentos tão diversos como o jardim de infância, a escola do 1º ciclo do ensino básico, a escola do 2º e 3º ciclos do ensino básico e a escola secundária, agora agrupa- dos numa única “unidade de gestão”: um único conselho geral, um(a) único(a) diretor(a), um único conselho pedagógico, um único conselho administrativo; iii) em terceiro lugar, a possibilidade de extinção das 14 Anexo I da Portaria 31/2018, de 23 de janeiro. No número de escolas secundárias há uma que o não é, a Escola Básica da Ponte, em Vila das Aves, Santo Tirso.

direções escolares e das delegações escolares, estruturas que asseguravam

a administração e a coordenação da educação pré-escolar e do 1º ciclo do ensino básico e que, num certo sentido, garantiam já uma forma de agrupamento (de âmbito concelhio no caso das delegações) através dos respetivos “conselhos escolares”; iv) em quarto e último lugar, a redu- ção do nível de desconcentração representado pelas direções regionais

de educação, e consequente recentralização, possível graças à redução e

simplificação operadas na rede que viabilizou o agrupamento de escolas como “um novo escalão da administração central-desconcentrada” que opera a partir da escola-sede (Lima, 2004: 42).

Uma última consideração sobre os efeitos pedagógicos da reorga- nização da rede. O agrupamento vertical de escolas, sobretudo na sua versão mais radicalizada ao abranger um elevado número de estabele- cimentos dos cinco ciclos possíveis, pode configurar a solução ótima do ponto de vista administrativo, como vimos. Mas é do ponto de vista da gestão pedagógica que se levantam as maiores interrogações, a suscitar aprofundamento em investigações futuras: pode o agrupamento, fruto muitas vezes de uma decisão hierárquica do tipo top-down, quase sempre à revelia dos atores escolares, permitir as dinâmicas participativas ne- cessárias a um ambiente autonómico para a tomada de decisão? Pode o agrupamento, que à partida terá tendência a afirmar-se unipolarmente em torno do centro que é a escola-sede, permitir a expressão das realidades multipolares geradas no seu interior? Trabalhos já realizados mostram as limitações que o atual modelo (Decreto-Lei nº 75/2008) ostenta, nomeadamente quando analisada a dimensão praticada. Castro (2010) mostra as limitações do coordenador de estabelecimento que a maioria das vezes não passa de um elo de ligação entre o estabelecimento e a direção do agrupamento, cuja ação é essencialmente burocrática.

Bibliografia

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portuguesa. Análise Social; Vol. 2, No. 7/8, pp. 671-698.

CASTRO, Dora M. R. F. de (2010). A Gestão Intermédia nos Agrupamentos de

Escolas. Os Coordenadores de Estabelecimento e as Lideranças Periféricas. Tese de

doutoramento. Aveiro: Universidade de Aveiro.

CNE (2015). Estado da Educação 2014. Lisboa: Conselho Nacional de Educação. COSTA, Jorge Adelino, NETO-MENDES, António & SOUSA, Liliana (2001).

Gestão Pedagógica e Lideranças Intermédias na Escola: Estudo de caso no TEIP do Esteiro. Aveiro: Universidade de Aveiro.

DGEEC (2016). Educação em Números – Portugal 2016. Lisboa: Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC).

FORMOSINHO, João (1988). Princípios para a organização e administração da escola portuguesa. In CRSE. A Gestão do Sistema Escolar. Lisboa: Ministério da Educação, pp. 53-102.

LIMA, Licínio C. (2004). O agrupamento de escolas como novo escalão da administração desconcentrada. Revista Portuguesa de Educação, vol. 17, nº 2, pp. 7-47. MENDES, António Augusto Neto (1995). Escola Básica Integrada: a “nova”

escola e os “velhos” professores – estudo de um caso. Dissertação de mestrado.

Braga: Universidade do Minho.

TAVARES, Daniela Maria (2008). Educação Básica, Poder Local e Reorganização

da Rede Escolar: um caso. Dissertação de mestrado. Aveiro: Universidade de Aveiro.

Outros documentos

Conselho Nacional de Educação (2011). Recomendação n.º 4/2011. Recomendação sobre reordenamento da rede escolar: a dimensão das escolas e a constituição de agrupamentos. Diário da República, 2.ª série — N.º 80 — 26 de Abril de 2011, pp. 18186-18191.

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