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Em um dos primeiros textos críticos escritos sobre o livro Azul... (1888), de Rubén Darío, o espanhol Juan Valera lança, ainda em 1888, um juízo que será muitas vezes repetido ao longo da história da recepção do modernismo hispano-americano: o de que a novidade do estilo dos contos e poemas que compunham o volume residia na assimilação e na transformação de elementos extraídos das mais diversas “tendências literárias” do século XIX, sobretudo francesas. Com base nessa descrição, Valera propõe uma curiosa imagem para o trabalho poético do jovem nicaraguense:

Lo primero que se nota es que está usted saturado de toda la más flamante literatura francesa. Hugo, Lamartine, Musset, Baudelaire, Leconte de Lisle, Gautier, Bourget, Sully-Proudhomme, Daudet, Zola, Barbey d’Aurevilly, Catulle Mendes, Rollinat, Goncourt, Flaubert y todos los demás poetas y novelistas han sido por usted bien estudiados y mejor comprendidos. Y usted no imita a ninguno: ni es usted romántico, ni naturalista, ni neurótico, ni decadente, ni simbólico, ni parnasiano. Usted lo ha revuelto todo: lo ha puesto a cocer en el alambique de su cerebro, y ha sacado de ello una rara quintaesencia. (Valera, 1888, in Darío, 1905a20: X-XI)

Valera identifica na escritura dos contos e poemas de Azul... uma prodigiosa assimilação de variados autores franceses do século XIX; e, ao observar essa substância

19 In González Prada, 1976: 18.

20 Transcrevo os fragmentos de Valera a partir da 3ª. edição de Azul..., de Darío, em que o texto aparece

como prólogo. Originalmente, o mesmo texto havia sido publicado na coluna “Cartas americanas” do jornal madrileno El Imparcial em 22 out. 1888.

resultante da destilação de vários ingredientes, julga que ela tem algo de todas as “escolas literárias” do século XIX, mas não segue propriamente nenhuma.

O texto de Valera repetia em grande medida o que escrevera o chileno Eduardo de la Barra (1839-1900) no prólogo à primeira edição de Azul... (Valparaíso, 1888). Quando quer oferecer ao leitor um grupo de escritores afins ao jovem Darío, Barra começa mais taxativo do que Valera: “Rubén Darío es de la escuela de Víctor Hugo” (in Darío, 1888a: VII); porém, logo em seguida expande o conjunto, dizendo que Darío lembra às vezes escritores bem diferentes de Hugo (que para ele representa “el

relámpago y el trueno”), entre os quais alguns autores de idílios bastante populares à época21. “Son en verdad”, explica Barra, “estilos y temperamentos mui diversos, mas

nuestro autor de todos ellos tiene rasgos, y no es ninguno de ellos. Ahí precisamente está su originalidad” (p. VIII). O autor do prólogo, que adota um curioso “vosotras” (femenino e plural) para tratar o destinatário textual, quer aclarar o aparente paradoxo com uma alegoria, e então escreve que “aquellos ingenios diversos, aquellos estilos,

todos aquellos colores y armonías, se aúnan y funden en la paleta del escritor centro- americano, y producen una nota nueva, una tinta suya, un rayo genial y distintivo que es el sello del poeta” (idem). Isso já bastaria para ficar demonstrada a semelhança de julgamento que se estabelece entre o prólogo de Barra e a crítica de Valera, publicada no ano seguinte.

Mas Barra ainda insiste no valor comunicativo da alegoria e propõe mais uma: “De aquellos diferentes metales que hierven juntos en la hornalla de su cerebro, y en

que él ha arrojado su propio corazón, al fin se ha formado el bronze de sus azules” (idem). Eis aí nessa imagem da forja, como se vê, uma versão análoga à do alambique para especular sobre o que teria acontecido no cérebro do poeta, cuja “originalidad

incontestable” estaria no fato de que “todo lo amalgama, lo funde y lo armoniza en un

estilo suyo” (idem). Uma terceira versão seria a da “lira policorde”, formulada por Justo Sierra no prefácio a uma reunião de crônicas de Darío: “y sois de todas partes, como

solemos ser los americanos, por la facilidad con que repercute en vuestra lira policorde la música de toda la lira humana y la convertís en música vuestra...” (Sierra, 1901, in Mejía Sánchez, 1968: 144).

21 Barra cita nessa passagem o italiano D’Amicis, pelo “aticismo” e “riqueza ornamental”; o francês

Daudet, pelas descrições da boemia; o francês Saint-Pierre, autor de Paul et Virginie, e o colombiano Isaacs, autor do romance María (in Darío, 1888a: VII).

Na primeira recepção do modernismo, “parecer” é uma palavra chave: na apreciação dos escritos dos novos, iam-se diluindo os critérios do “pertencimento” e da “filiação” a um conjunto (fosse uma “escola literária” ou uma “literatura nacional”) em favor de critérios de semelhança (esse texto se parece com outros, faz lembrar outros etc.). Leia-se, por exemplo, o seguinte parágrafo em que o crítico colombiano Baldomero Sanín Cano esboça a personalidade literária de seu conterrâneo Guillermo Valencia:

Parece parnasiano porque en la forma y en el contenido estos poetas dejaron huella perdurable y su ejemplo es un valor adquirido de que no podrá el hombre desprenderse. Tiene lampos románticos su hechura, porque el romanticismo no fue moda pasajera, sino una renovación de tan hondo alcance y tan significativa extensión, que produjo en el espíritu humano transformaciones perdurables como las religiones y las filosofías. Tomó Valencia de los impresionistas cuanto en esa doctrina vale en el sentido de aproximación a la naturaleza y de ensayo de representación inmediata de las apariencias. De los simbolistas captó la verdad trascendente, la enseñanza de que la palabra es un símbolo y de que el lenguaje nació, ha crecido y se desenvuelve porque el hombre tiene la capacidad divina de transformar las apariencias en símbolos. Toda su poesía es espíritu y, como él mismo lo ha dicho comentando el aforismo de Nietzsche, escribe con sangre porque la sangre es la mejor expresión del espíritu. (Sanín Cano, apud Henríquez Ureña, 1954: 320)

Na leitura de Sanín Cano, o poeta Valencia parece parnasiano, tem lampejos românticos, tomou algo dos impressionistas, captou algo dos simbolistas; mas, cozidos esses ingredientes no alambique, aparece uma poesia com unidade, com uma marca pessoal: toda ela “é espírito” porque foi escrita “com sangue”, segundo o aforismo de Nietzsche. O espírito aí toma o lugar da “rara quintessência” identificada por Juan Valera no Azul... de Darío, no sentido de que é a substância pura resultante da destilação da mistura no alambique.

Celebrando talvez o mesmo tipo de “espírito”, o poeta peruano José Santos Chocano (1875-1934) escreveu esta frase, que usaria como epígrafe para um volume de reunião de suas próprias obras poéticas: “En mi arte caben todas las escuelas, como en

un rayo de sol todos los colores” (1905: 3). Já em meados do século XX, em sua Breve

historia del modernismo, Max Henríquez Ureña tomaria por estabelecida a visão do

modernismo como um alambique de escolas e estilos:

En el modernismo encontramos el eco de todas las tendencias literarias que predominaron en Francia a lo largo del siglo XIX: el parnasismo, el simbolismo, el realismo, el naturalismo, el impresionismo y, para completar el cuadro, también el romanticismo cuyos excesos combatía. (Henríquez Ureña, 1954: 12)

Junto com muitos outros que os seguiriam, os juízos inaugurais de Barra e Valera abrem uma lacuna na lista das categorias classificatórias para as letras castelhanas de seu tempo; paulatinamente, essa lacuna seria preenchida com o nome de modernismo. Passariam a chamar-se modernistas todos os autores de escritos em espanhol que se parecessem em algum grau com textos resultantes de práticas estrangeiras renovadoras ou revolucionárias do século XIX, sem se deixar guiar inteiramente por uma ou outra delas. Consequentemente, nota-se também a representação do modernismo como um movimento de libertação, análogo aos que se haviam registrado em alemão, inglês, francês, italiano e português ao longo do século.

Novamente recorro à narrativa sintética de Max Henríquez Ureña:

En la segunda mitad del siglo XIX se abrieron paso en las naciones de la Europa occidental diversas tendencias renovadoras o revolucionarias, tanto en literatura como en arte, y cada uno de los movimientos que se promovieron con tal motivo en distintos países tuvo su nombre propio: simbolismo, prerrafaelismo, impresionismo etcétera. [...] El vocablo modernismo fue empleado para señalar, desde temprano, el movimiento de renovación literaria en la América española. (Henríquez Ureña, 1954: 11)

Sabemos que, ao longo do século XX, a proposição dessas semelhanças foi feita de diversos modos e com diversas pressuposições. Mas é possível identificar uma recorrência forte no método adotado pelos leitores do fim do século XIX: a valoração dos novos escritos pelo abalo que podiam causar na tradição das letras castelhanas, abalo este que era medido pelos modos de uso do idioma espanhol, e que, com o tempo, viria a ser exaltado como uma libertação da poesia e da literatura em relação às instituições políticas que a regulavam e, finalmente, como a invenção de uma nova música da língua.

Este capítulo pretende expor algumas das principais questões que orientaram a primeira recepção de alguns poetas modernistas, explorando especialmente as metáforas musicais envolvidas nas discussões sobre a composição do “alambique”. Em todas as seções, procuro mostrar como a música da poesia desempenha um papel crucial nas discussões, e como o caráter novo que se atribuiu aos textos dos modernistas dependeu da identificação de uma nova música da língua. Primeiro, será abordada com mais detalhes a trajetória inicial de Azul..., de Darío. O fato de que livro seja tomado frequentemente como marco inicial do modernismo hispano-americano nas periodizações literárias não é o principal motivo dessa escolha, mas sim a rica recepção que ele teve, na qual se delineiam os contornos principais de todos os temas que serão

tratados neste capítulo. Depois, as seções seguintes abordarão os temas da imitação dos franceses, da hispanidade e do americanismo.