• Nenhum resultado encontrado

Rubén Darío e o triunfo do modernismo

4. Hispanidade

4.1 Rubén Darío e o triunfo do modernismo

Pode-se considerar que, após alguns anos marcados por intensas discussões sobre o impacto do modernismo na tradição das letras castelhanas, um livro de Rubén Darío viria a selar um novo modo de relacionamento entre os modernistas hispano- americanos e os letrados da Espanha: trata-se de Cantos de vida y esperanza, lançado em Madri em 1905.

A história desse livro remonta a alguns acontecimentos anteriores. Para os espanhóis, 1898 ficaria conhecido como o ano do desastre: a derrota militar contra Cuba e os Estados Unidos marca a perda de suas últimas colônias e o início de uma crise de largo alcance. O jornal argentino La Nación quer enviar um correspondente para informar seus leitores, por meio de crônicas instrutivas e deleitáveis, sobre os rumos da ex-metrópole, chamada ainda, por força de velhos hábitos, la madre patria. O escolhido é Rubén Darío, o mais ilustre membro da redação, considerado naquele momento um grande poeta e o principal responsável pela fervente modernização das letras e das artes que circulava pelos jornais da América Latina – simultaneamente em textos dos cubanos José Martí e Julián del Casal, do mexicano Manuel Gutiérrez Nájera e do colombiano José Asunción Silva, entre outros – desde a década de 1880.

Darío já havia ido a Madri em 1892, mas as circunstâncias eram bem diferentes. O governo da Nicarágua o enviara como representante na celebração do quarto centenário da chegada de Colombo à América. A incipiente fama europeia do escritor se devia sobretudo às “Cartas americanas” com que Juan Valera saudara a publicação de

das letras espanholas – Marcelino Menéndez y Pelayo, Miguel de Unamuno, Salvador Rueda e outros. Mas, apesar da aposta generosa de alguns, o espírito geral era de muita reserva em relação a suas preferências literárias, vistas como afrancesadas e demasiado simpáticas com o temido decadentismo. Anos mais tarde, o jovem nicaraguense se queixaria de ter tido que engolir o estigma de rastaquouère (palavra com que se depreciava o latino-americano ostentador recém-chegado à Europa); e de ter ouvido um cáustico Unamuno desqualificá-lo duplamente dizendo que escondia sob seu elegante chapéu francês um penacho indígena centro-americano.

Agora a história era outra. Dois livros de Darío publicados em 1896 consolidaram o modernismo, que, firme na América, já começava a angariar adeptos também entre jovens poetas espanhóis. Nas Prosas profanas, cujo título ostentava uma erudição provocativa para um conjunto de poemas, Darío exibia em verso o estandarte modernista que com Azul... começara a confeccionar em prosa. E em Los raros, apresentava ao público latino-americano perfis literários de artistas e intelectuais contemporâneos, entre os quais Verlaine, Jean Moréas, Lautréamont, Ibsen, Eugénio de Castro e José Martí.

Na primeira das crônicas espanholas de Darío, que seriam reunidas posteriormente no volume España contemporánea (Madri, 1901), o correspondente está atravessando o Atlântico e começa a escrever suas impressões e expectativas. Destaca- se um episódio emblemático. Darío se recorda de que, na viagem anterior, seu navio havia encontrado em alto-mar um barquinho de um só tripulante. Teria ele sobrevivido a um naufrágio, precisaria de ajuda? O navegador intrépido enfia um escrito numa lata de sardinhas e a arremessa em direção ao navio. “Soy el capitán Andrews y voy solo, en

este bote, por la misma ruta de Colón, al puerto de Palos, enviado por la casa del jabón Sapolio, de Nueva York. Ruego avisar por cable al llegar al continente, el punto en se me ha encontrado.” “Efectivamente”, comenta Darío, “aquel curioso commis voyageur

de la jabonería yanqui, era el Colón de los Estados Unidos, que iba a descubrir España...” (Darío, 1926: 12). Desnecessário apontar a analogia entre a situação do aventureiro e a do cronista. Era sua vez.

O império da Espanha terminou; começa o dos Estados Unidos. A latinidade se enfraquece ante o utilitarismo avassalador, que o uruguaio José Enrique Rodó identificaria como um vivo Caliban em seu ensaio Ariel (1900). “Un gran vuelo de

cuervos mancha el azul celeste”, escreverá Darío (1968: 642). Crise na Espanha. Temor na América Latina pelo intervencionismo norte-americano, sintetizado nesta metáfora à

maneira de Victor Hugo no poema “A Roosevelt”: “Los Estados Unidos son potentes y

grandes. / Cuando ellos se estremecen hay un hondo temblor / Que pasa por las vértebras enormes de los Andes” (Darío, 1968: 640). Espanhóis e hispano-americanos clamam por uma voz representativa. Rubén Darío é candidato; em 1905, publica o livro

Cantos de vida y esperanza, los cisnes y otros poemas. Dos poemas aí reunidos, a maior

parte foi escrita entre 1899 e 1905. O assunto dos Cantos é a situação pós-98; criticam- se a “anquilose” (palavra com que se costumava designar o enrijecimento do verso e, por extensão, da cultura espanhola) e o conservadorismo nacionalista (o “casticismo” em versão expandida do campo linguístico para o político e o cultural); propõem-se como solução, por meio da glorificação da hispanidade e da latinidade, a elevação do sentimento coletivo e a luta contra o avanço “bárbaro” dos ianques. No prefácio, lê-se o decreto de um Darío soberbo: “el movimiento de libertad que me tocó iniciar en

América se propagó hasta España, y tanto aquí como allá el triunfo está logrado” (1968: 625), que, mais adiante, assim justifica a entrada de temas da política contemporânea em sua poesia:

Si en estos cantos hay política, es porque aparece universal. Y si encontráis versos a un presidente, es porque son un clamor continental. Mañana podremos ser yanquis (y es lo más probable); de todas maneras, mi protesta queda escrita sobre las alas de los inmaculados cisnes, tan ilustres como Júpiter. (Darío, 1968: 626)

Publicado em Madri, sob os auspícios do então jovem poeta Juan Ramón Jiménez, o livro e seu autor são consagrados pela juventude espanhola – incluindo, embora com ressalvas, a maior parte dos escritores da chamada geração de 98 (os irmãos Machado, os irmãos Baroja, Unamuno, Valle-Inclán e outros)39.

Com sua carga simbólica, a “conquista da Espanha” por Darío já foi considerada um dos eventos capitais da literatura hispano-americana, em termos de seus impactos culturais e sociais. Mas é preciso atentar para o fato de que, se na poesia de Darío a hispanidade e a latinidade só aparecem como temas centrais a partir dos Cantos de vida

y esperanza, o trabalho modernista de renovação da língua espanhola vinha sendo

desempenhado e discutido desde meados da década de 1880, como atestam, por exemplo, os fragmentos críticos da primeira recepção de Azul... que transcrevi no início deste capítulo.

39 Daí em diante, Darío viveria na Europa (Madri, Paris, Maiorca), visitando esporadicamente a América

(incluindo duas passagens pelo Rio de Janeiro e uma por São Paulo), até voltar para morrer na Nicarágua em 1916. Publicaria também El canto errante (1907) e outros volumes de crônicas e poesia.