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Em muitos poemas do modernismo hispano-americano, uma combinação particular de recursos rítmicos e harmônicos enseja a figuração de uma corporalidade sonora autônoma a cujo efeito chamamos, por analogia, música. Quando lemos hoje a primeira estrofe do poema “Era un aire suave...”, de Rubén Darío, podemos nos deixar impressionar pela eufonia e pela dança graciosa das palavras:

Era un aire suave, de pausados giros; El hada Harmonía ritmaba sus vuelos; E iban frases vagas y tenues suspiros

Entre los sollozos de los violoncelos. (Darío, 1901: 51)

Percebemos talvez na estrofe um quadro puramente musical: pois, se por um lado é claro que há uma cena sendo montada, e que essa cena (conforme confirmamos nos versos subsequentes) quer nos fazer recordar uma festa galante ao estilo das pinturas de Watteau, o que o poeta pinta de fato é “um ar suave”, “frases vagas”, “tênues suspiros” e “soluços de violoncelos”, isto é, apenas aquilo que não se pode ver. É possível também interpretar o discurso da estrofe não como composição visual de ambiente, mas como descrição direta de música – esse “aire suave” como uma “ária suave” cantada num versalhesco baile de máscaras, acompanhada por um conjunto de cordas cujos sons se assemelham a frases vagas, suspiros e soluços. E, antes de tudo, não deixaríamos de notar detalhes vívidos como a reverberação dos sons pelos versos, as rimas internas e finais, os ecos, os paralelismos, tudo concorrendo para sugerir uma dança de movimentos regrados e graciosos; ou a disposição dos acentos, que vai revelando aos poucos um latente compasso ternário, adequado à dança da festa galante, com ritmo elegantemente variado.

Em seu conjunto de disposições, essa estrofe de Darío concentra muitas das características daquilo que se identificaria historicamente como a música da poesia modernista hispano-americana. Eufonia, graça, beleza, elegância, artificialismo são alguns dos atributos mais recorrentes na apreciação de um estilo de escrita poética que se propagaria rapidamente pela América e conformaria as feições exteriores de um movimento artístico. E as alusões frequentes à música e a instrumentos musicais configuram um apoio semântico inequívoco à interpretação de que o poeta imita a música, ou quer fazer música com suas palavras. Tudo isso, como se vê (e como se ouve), está escrito na primeira estrofe de “Era un aire suave...”.

Mas o que dificilmente ouviríamos hoje no poema é o que diz ter ouvido José Enrique Rodó em 1899:

Nunca el compás del dodecasílabo, el metro venerable y pesado de las coplas de Juan de Mena, que los románticos rejuvenecieron en España, después de largo olvido, para conjuro de evocaciones legendarias, había sonado a nuestro oído de esta manera peculiar. El poeta le ha impreso un sello nuevo en su taller; lo ha hecho flexible, melodioso, lleno de gracia; y libertándole de la opresión de los tres acentos fijos e inmutables que lo sujetaban como hebillas de su traje de hierro, le ha dado un aire de voluptuosidad y de molicie por cuya virtud parecen trocarse en lazos las hebillas y el hierro en marfil. (Rodó, 1899: 19, grifo meu)

Rodó descobre as qualidades musicais dos versos de Darío na comparação com outros versos da tradição castelhana, e não diretamente neles mesmos. Seu comentário oferece elementos para uma compreensão da primeira legibilidade histórica do poema de Darío: valoriza uma audição culta, que não se limita à impressão sensorial, mas desempenha uma ação voluntária de comparação entre o poema que se põe ante os olhos ou ouvidos e outros poemas armazenados na memória. Como um geógrafo sobrepondo mapas, Rodó começa definindo uma escala, ao escolher avaliar os versos pelo cânone do número de sílabas (“el compás del dodecasílabo”); então, coteja dois documentos (o poema de Darío e as coplas de Juan de Mena) para verificar as diferenças de desenho; e por fim, agora já não como geógrafo mas como crítico literário engajado na exaltação da produção contemporânea, dá forma final ao seu parágrafo armando uma breve narrativa teleológica em que os dodecassílabos de Juan de Mena passam pelas mãos dos românticos e chegam a Darío, que finalmente os liberta de uma opressão histórica – e as palavras dançam para celebrar o feito.

A leitura de Rodó desperta dois interesses básicos. O primeiro é que se trata de uma leitura histórica produzida no tempo da primeira recepção ao poema de Darío. O segundo é que abre uma via de acesso à historicidade do próprio poema, na medida em

que o crítico, compartilhando o repertório do poeta a quem comenta, diz “ouvir” no interior dos versos de Darío uma outra música vinda de uma série ressonante de outros versos, os quais, nesse sentido, estariam realmente lá. É evidente, por um lado, que essa latência só se manifesta quando os versos de Darío são lidos por alguém que tem esses outros versos na memória – o que levou muitos críticos a combater o elitismo, o aristocratismo da arte dos modernistas, que afinal se destinaria a um conjunto reduzidíssimo de leitores empíricos. Por outro lado, fica evidente no poema que a percepção da musicalidade não depende inteiramente de comparações cultas como a que faz Rodó: destituídos de suas relações objetivas com versos anteriores e alheios, a partir das quais Rodó construiu sua profundidade histórica, os versos de “Era un aire suave” perdem certamente muita coisa, mas ainda podem conservar plenamente seu desenho melódico de superfície, sua coesão, sua graça, elegância etc. Nesse sentido, caberia avaliar até que ponto o repertório culto de uma seleta confraria de leitores é um verdadeiro pré-requisito dessa prática: ou se não conviria valorizar e estudar a capacidade inscrita nos textos dos poetas modernistas de instruir, ainda que parcialmente, a sua própria declamação, ampliando a “escuta” poética de um público menos restrito do que se poderia supor. É o que sugere outro dos primeiros leitores de Darío, o mexicano Justo Sierra, quando escreve que o poeta “[...] ha entrevisto y nos ha

hecho entrever, un color más en la poesía castellana, un ultravioleta que no conocíamos; [...] nos ha hecho sentir un sonido más no percibido antes de él” (Sierra, 1901, in Mejía Sánchez, 1968: 139).