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Ritmo e harmonia: problemas e definições

Não se deve perder de vista que, afora a produção teatral ou a declamatória do século XIX, a poesia lírica que circula em livros é muda, não tem som; traz somente uma partitura que orienta a declamação ou incita a imaginação a produzir uma música latente para o "ouvido mental". Nietzsche comparou-a por isso a uma estátua de um deus sem cabeça, isto é, a uma ruína da antiga lírica, que era feita para ser cantada43.

43 Nietzsche escreve em O nascimento da tragédia (2007: 41): “[...] o mais importante fenômeno da lírica

antiga [é] a união, sim, a identidade, em toda parte considerada natural, do lírico com o músico – diante da qual a nossa lírica parece a estátua de um deus sem cabeça [...]”.

Assim, um dos desafios da lírica oitocentista é lastrear-se em termos de verossimilhança e efetividade sem o apoio comum das práticas anteriores, como a integração do poema a uma melodia externa ou a algum gênero poético. A aposta no ritmo oferece um meio de solidificação da linguagem, na medida em que o ritmo se institui na leitura como uma presença.

A descrição isolada do ritmo de um verso ou poema com base em acentos e pausas esbarra frequentemente num mesmo problema: quando comparados, dois ou mais versos de ritmo teoricamente idêntico podem parecer absolutamente diferentes, e as atribuições de função rítmica que se aplicam a um primeiro exemplo desfalecem em contato com um segundo. Além disso, é comum que um mesmo verso tenha seu ritmo descrito de muitas formas distintas, e não parece haver método sincrônico, diacrônico ou anacrônico capaz de decantar satisfatoriamente essas sempre vivas multiplicidades. Há que levar em conta, por fim, a famosa ressalva ao estudo do ritmo poético escrita por Osip Brik, segundo a qual, assim como as pegadas deixadas por um caminhante na areia não são um ritmo, mas apenas rastros deixados por um ritmo, “o poema imprimido num livro também não oferece senão traços do movimento”; Brik conclui daí que “somente o discurso poético e não o seu resultado gráfico pode ser apresentado como um ritmo” (Brik, in Eikhenbaum et al., 1973: 132). Aqui, não havendo à disposição um “discurso poético” anterior, mas apenas seus “resultados gráficos” (os textos), será preciso algum esforço imaginativo para chegar a conclusões sobre o ritmo a partir dos traços que ele deixou no papel.

Por todos esses motivos, as análises deste capítulo evitam adotar um entre os vários sistemas rítmicos já elaborados na rica tradição castelhana dos estudos métricos e de versificação, preferindo escolher de acordo com cada caso elementos adequados para a exposição de um modo de leitura ou para a discussão de outras hipóteses. Em outras palavras, não se trata aqui de reunir ocorrências poéticas para aperfeiçoar alguma teoria do verso, mas, antes, de reunir quando convém teorias do verso – especialmente aquelas que os poetas modernistas conheciam e produziam – para amparar a leitura dos poemas.

Em relação à harmonia, é preciso considerar outros fatores. Sem restringir-se ao âmbito da sonoridade e separá-lo do sentido, a noção de harmonia é multidirecional: determina, por exemplo, a boa vizinhança entre duas palavras consecutivas pelos aspectos sonoro e semântico, ou entre dois versos pela sintaxe (paralelismo, quiasma), pela rima, pela métrica etc. Em poemas de estilo mais suave, delicado, gracioso ou lânguido como os de Manuel Gutiérrez Nájera e Julián del Casal, ou como os das

Prosas profanas de Darío e do Florilegio de José Juan Tablada, a predominância, em

geral, de símiles e alegorias transparentes sobre metáforas, a fuga ao paradoxo e à obscuridade da elocução ou ao hermetismo e muitas outras marcas estilísticas podem ser compreendidas sob a ideia regente da harmonia, ou, em palavras de Rubén Darío (1901: 102), “bajo el gran sol de la eterna Harmonía”.

Assim, parece justa a seguinte afirmação de Tomás Navarro Tomás (1922: 207) sobre Darío: “El poeta concentraba su culto en la armonía como síntesis aristotélica

definidora del universo, de la naturaleza y de la vida. [...] El imperio de la música que él profesaba era el imperio de la armonía”. Nessa acepção, música e harmonia têm um significado bastante mais abrangente do que o de elaboração eufônica, embora o incluam.

As análises deste capítulo empregam o termo harmonia em múltiplas acepções, sempre de acordo com alguma circunstância oferecida pelo poema: amálgama entre sons e sentidos, figuração onomatopaica, ligação entre partes para configuração de um todo etc. Mas há uma acepção técnica que prevalece ao longo das análises, pois é a que opera mais claramente em conjunção com o ritmo: a distribuição funcional de fonemas iguais pelos versos, sobretudo de vogais. Não se tratará aqui de assumir valores intrínsecos aos sons, à maneira do conhecido poema “Les voyelles” de Rimbaud, que estabelece correspondências entre vogais e cores: “A noir, E blanc, I rouge, U vert, O

bleu: voyelles [...]” (Rimbaud, 1998: 187). Trata-se de identificar repetições dentro dos versos e de investigar sua função rítmica e, eventualmente, semântica, sempre de acordo com disposições internas de cada verso ou poema. Nesse sentido, a investigação das harmonias se aproveita em parte das propostas de Grammont (1947) segundo a sugestão de Tomachevski (in Eikhenbaum et al., 1973), que assim reduz a teoria do estudioso francês: “Sob o nome de ‘harmonia do verso’, Grammont desenvolveu uma teoria sobre a função rítmica das correspondências fônicas. Dever-se-ia conservar esse termo por unir a noção de regularidade eufônica (qualitativa) à das correspondências rítmicas”

(Tomachevski, in Eikhenbaum et al., 1973: 146, grifos do autor). De resto, será

desconsiderada a interpretação que Grammont dá aos valores supostamente intrínsecos dos fonemas, que aliás ocupa boa parte de seu estudo.

Ademais, por afinidade de objeto, as análises da harmonia do verso se aproveitam também de alguns estudos de Navarro Tomás em que o assunto central não é o metro, mas a música do verso. Refiro-me principalmente ao estudo “Ritmo y armonía en unos versos de Rubén Darío” (1973), em que Navarro Tomás colhe na

“Sonatina” de Darío diversos exemplos de harmonia vocálica. Leia-se a primeira estrofe da “Sonatina”:

La princesa está triste... ¿qué tendrá la princesa? Los suspiros se escapan de su boca de fresa, Que ha perdido la risa, que ha perdido el color. La princesa está pálida en su silla de oro, Está mudo el teclado de su clave sonoro;

Y en un vaso olvidada se desmaya una flor. (Darío, 1901: 61)

Nesse poema, o uso de alexandrinos com acentuação regularíssima nas sílabas 3ª. e 6ª. de cada hemistíquio favorece a invenção de espelhamentos de todas as ordens; mas a variedade e a qualidade das harmonias de Darío não deixam de surpreender. Há versos em que se repetem apenas as vogais tônicas dos hemistíquios:

Y vestido de rojo piruetea el bufón

o o

En el que es soberano de los claros diamantes

a a

El feliz caballero que te adora sin verte e e

Há um alexandrino em que a mesma vogal se repete não apenas ao final dos hemistíquios, mas em todas as posições acentuadas:

En la jaula de mármol del palacio real a a a a

Estes versos são exemplos de harmonia por alternância vocálica:

Ir al sol por la escala luminosa de un rayo o a o a Ya no quiere el palacio ni la rueca de plata e a e a Ni el halcón encantado ni el bufón escarlata o a o a

Neste último exemplo, por fim, a harmonia se faz pela repetição das mesmas vogais nas posições tônicas de dois alexandrinos sucessivos:

¿Piensa acaso en el príncipe de Golconda o de China, a i o i o en el que ha detenido su carroza argentina? a i o i

Com base nessas anotações, Navarro Tomás trata a “Sonatina” de Darío como uma espécie de “sumo harmônico” da poesia modernista hispano-americana; em sua composição, como nota o estudioso espanhol (1973: 464), “las combinaciones de

vocales, correspondencias de cláusulas y ordenada disposición de los conceptos contribuyen armoniosamente a la acción del metro y de la rima”. Nem sempre tão simétricas e equilibradas em outros poemas de Darío e de outros poetas, as harmonias vocálicas aparecem com alta frequência e com funções variadas, sempre ligadas ao ritmo, como veremos.