• Nenhum resultado encontrado

No início do século XIX, à parte suas notáveis diferenças, românticos de diversas línguas e nações pisam o solo comum em que o ideal libertário divulgado pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa não se quer constrangido por nenhuma regra de arte além das que ele próprio reclama ou inventa. Já se desenvolvia desde a segunda metade do século XVIII um programa extensivo de dissolução da retórica aristotélica e de anulação da aliança entre o regramento da linguagem e o poder das monarquias absolutistas em declínio. Nos românticos, a formulação da expressividade da arte, que faz emergir o gênio criador acima de todo engenho e arte, e a migração do belo desde a pátria exterior da obra até a interior do leitor ou da crítica, que leva à arte a “revolução copernicana” de Kant, procuram fazer frente ao império da imitatio, representada então como um moribundo sem campa nem alma; e logram instituir uma teoria literária inteiramente diversa, cuja novidade se pode medir, segundo M.H. Abrams (1976), pela observação de que os juízos de um escritor do seiscentos como John Dryden (1631- 1700) se parecem mais com os da Arte poética de Horácio do que com os de outros ingleses nascidos setenta anos após sua morte, os poetas William Wordsworth (1770- 1850) e Samuel Taylor Coleridge (1772-1834).

A música tem um papel fundamental nessa revolução. As artes das cortes passam a ser confrontadas como artes das meras aparências e convenções, que teriam cerceado a criatividade dos artistas e confinado os homens num labirinto de representações falsas; havia, porém, os sons, capazes de transcender barreiras: “Por meio do ouvido, abre-se a porta que [...] permite uma comunicação recíproca com o

mundo exterior. Esta imensa inundação [...] vence todos os limites da aparência” (Wagner, 1987: 26). O discurso dos românticos se deixa invadir pela imensa inundação: a música lhes aparece como a primeira das artes a escapar da cadeia mimética, e por isso é colocada como modelo a ser seguido por todas as demais. Especialmente para os poetas, a exaltação da música é uma alternativa ideal contra os regramentos baseados no símile horaciano da poesia como a pintura, ut pictura poesis. Poetas de diversas línguas empenharam-se em colocar a música como meta e como metáfora da poesia, e em perseguir a virtude expressiva da exploração musical da palavra, do verso, do discurso.

Ao longo do século XIX, a perseguição dessa paridade não é o único caminho. A teoria estética abraça o ideal da fusão das artes; diversos escritores empenham-se em ampliar a linguagem poética com as virtudes da escultura, da pintura etc. Baudelaire puxa da pintura contemporânea os motivos particularizadores da modernidade, assim como também faz John Ruskin em seu livro Modern Painters (1843). O músico Wagner e o poeta Hugo apostam alto no drama. E nem mesmo a música de românticos e modernos se deixa constranger pelo status superior que se lhe atribui entre as artes: não só na ópera, para cuja composição naturalmente concorrem elementos da poesia lírica e dramática, como também na música instrumental aparecem claras imitações do que deveria ser próprio da poesia, da pintura, da escultura. Basta lembrar a profusão de poemas sinfônicos, convenções descritivas (fórmulas melódicas para representar uma tempestade, uma cavalgada, a morte) e metáforas plásticas (cromatismo). Exige esforço compreender um parágrafo como o seguinte, em que o musicólogo Nikolaus Harnoncourt procura esclarecer didaticamente as transformações da arte musical na época romântica:

Grosso modo, eu diria que a música anterior a 1800 fala e a música posterior a esta pinta. Uma delas precisa ser compreendida, pois tudo o que é dito pressupõe uma compreensão, enquanto a outra se expressa através de atmosferas, sensações, que não precisam ser compreendidas, mas sentidas. (Harnoncourt, 1998: 49)

A “música que fala” seria, por exemplo, a de Bach, organizada sobre bases dispostas pela instituição retórica que regulava os usos da linguagem nas cortes absolutistas da Europa. E a possibilidade de uma “música que pinta” teria dependido justamente da dissolução dessa retórica e da formulação da estética romântica, que admite a ideia da expressão de sentimentos. Porém, se o nome de uma forma musical

tipicamente romântica como o “poema sinfônico” junta duas coisas, explicar essa forma dizendo que ela “pinta” é pôr ainda mais um ingrediente nesse alambique...

Em todos os casos – desde o de uma música que quer pintar poeticamente até o de uma poesia que quer cantar como a música pinta etc. –, o que está sempre em xeque no século XIX é o monopólio de alguma instituição sobre a normatização da arte. Na América Latina, desde a década de 1880, os poetas modernistas representaram sua prática como luta no âmbito literário, como armas pelas letras; pretenderam reviver os triunfos históricos dos românticos e modernos, o círculo de Jena, os Lake Poets e Lord Byron, a “batalha de Hernani” entre os jovens melenudos e os perucas acadêmicos; os tísicos anjos negros e azuis da poesia maldita, sempre que bem-dita; e a resistência tácita dos raros, que Rubén Darío identificou, seguindo Camille Mauclair, como os protagonistas de uma “arte em silêncio”, entregues à “misión difícil, agotadora y casi

siempre ingrata del hombre de letras, del artista” (Darío, 1905b: 7-8). Em Darío, a música é metáfora mestra de toda atividade artística, não só da poesia. O maior elogio que se pode dirigir a um grande artista é o de “músico” (os poetas Eugénio de Castro e Gabrielle D’Annunzio, o pintor Puvis de Chavannes e o escultor Auguste Rodin são alguns dos artistas a que Darío chamou “músicos”); e, ainda que em seus versos Darío tenha aproveitado extensamente a sugestão das outras artes, pretende tê-lo feito “bajo el

divino imperio de la música” (1968: 697), e recebe o seguinte elogio de Justo Sierra: Es suyo el instrumento poético, enteramente suyo. Quiero decir que Rubén lo domina al grado que parece su creador, que parece el inventor de su modo de hacer versos; y ese instrumento es un orquestrión: clarín, flauta, címbalo, arpa, violín y lira, todo lo pulsa por igual. No sé si alguno haya dudado jamás de que este poeta fuese capaz de cincelar su estrofa en mármol clásico como Leconte de Lisle y Núñez de Arce, ó en bronce como Hugo y Díaz Mirón, ó en arcilla de Tanagra como Campoamor y Banville; muestras de su destreza de escultor ha dado no para olvidarlas; pero es músico y es músico wagneriano. (Sierra, 1901, in Mejía Sánchez, 1968: 139)

Com tudo isso, percebe-se que o lema verlainiano “De la musique avant toute

chose” não pode ser tomado como marco inaugural das postulações musicais para a poesia finissecular, mas como enunciado reorientador de uma questão que já vinha sendo tratada ao longo do século. Este capítulo investiga a pertinência da música da poesia modernista hispano-americana a um conjunto mais amplo, que não se restringe a uma aclimatação da música da poesia contemporânea francesa – “simbolismo” –, mas que reúne e intervém sobre diversas proposições poéticas do século XIX.

Para estudar essa empreitada, seria interessante percorrer fragmentos teóricos e poéticos diversos; arrolar os títulos “musicais” de inúmeros livros e poemas; estudar as

variadíssimas maneiras como a poesia se faz musical. No entanto, o corpus possível seria imenso, e não convém aqui deixar que a inundação musical do século XIX transborde. As seções a seguir consistem em exposições e discussões pontuais de alguns dos textos que podem ser considerados decisivos na elevação oitocentista da música. Pretendem mostrar que as relações entre música e poesia propostas ao longo do século XIX têm sentidos históricos apreensíveis e passíveis de descrição, ainda que se apresentem muitas vezes sob nuvens de fumaça. Fundamentalmente, postulam haver nessas proposições um preceito comum que, em contraste com o uso normatizado do ut

pictura poesis horaciano, estabelece a música como metáfora principal para a poesia ou

como meta da própria poesia.