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ALGUMA TEORIA

No documento anamariastephan (páginas 67-72)

Uma perspectiva não fatalista move então esta pesquisa sobre religiosidades de adolescentes. Que a esfera religiosa vive mudanças profundas, que existe uma busca acentuada pela dimensão não institucional parece ser consenso entre os estudiosos. O significado delas no cotidiano de pessoas que não se colocam limite na elaboração de novas maneiras de ser e de experimentar as crenças dirigiram-me o olhar pesquisador para as situações em que acontecem, pois ali as crenças e a fé

tanto mudam como são mudadas pelas condições. Os adolescentes e os jovens em geral são mais ousados nas transformações e, por não terem compromissos com os cânones de nenhuma religião oficial, também operam as transformações na forma de bricolagens, num fazer cotidiano que irrompe as normas e permitem artefatos inusitados ou até mesmo a supressão de práticas religiosas. Como nos diz Certeau (1994),

A “fabricação” que se quer detectar é uma produção, uma poética – mas escondida, porque ela se dissemina nas regiões definidas e ocupadas pelos sistemas da “produção” (televisiva, urbanística, comercial, etc.) e porque a extensão sempre mais totalitária desses sistemas não deixa aos “consumidores” um lugar onde possam marcar o que fazem com os produtos. A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção qualificada de consumo: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com os produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante. (1994,39)

Pesquisar a religiosidade de adolescentes numa comunidade em movimento, na qual os valores, comportamentos e desejos mudam e se reconfiguram ao sabor das contingências, conscientes e inconscientes; as tradições e linguagens religiosas sobrevivem como resquícios e onde a noção de tempo perde a linearidade teleológica e a de espaço perde seus limites geográficos e simbólicos, e, ao mesmo tempo é amarrada em teias imobilizadora de privações e abandono historicamente construídos, criaram um campo de estudo difuso e multidimensional. Metaforicamente nebuloso, não querendo dizer caótico ou confuso, mas opaco.

O que acontece com a experiência? Ultrapassada e invadida pelo apelo simbólico da possibilidade, ameaça se perder em um presente ilimitado, sem raízes, devido a uma memória pobre, com pouca esperança para o futuro como todos os produtos do desencanto. A experiência se dissolve no imaginário, mas o teste de realidade, na sua dureza, produz frustração, tédio e perda de motivação. Está agora claro que a maneira como os adolescentes constroem sua experiência é cada vez mais fragmentada. Adolescentes pertencem a uma pluralidade de redes e de grupos. Entrar e sair dessas diferentes formas de participação é mais rápido e mais freqüente do que antes e a quantidade de tempo que os adolescentes investem em cada uma delas é reduzida. A quantidade de informação que mandam e recebem está crescendo em um ritmo sem precedentes. Os meios de comunicação, o ambiente educacional ou de trabalho, relações interpessoais, lazer e tempo de

consumo geram mensagens para os indivíduos que, por sua vez, são chamados a recebê-las e a respondê-las com outras mensagens. O passo da mudança, a pluralidade das participações, a abundância de possibilidades e mensagens oferecidas aos adolescentes contribuem todos para debilitar os pontos de referência sobre os quais a identidade era tradicionalmente construída. A possibilidade de definir uma biografia contínua torna-se cada vez mais incerta (Melucci, 2007, 36- 38)

São variados também os crivos de interpretação: metamorfoses, amálgamas, sincretismos, hibridismo, mestiçagem, crioulização e outros conceitos são usados academicamente para dar conta do que não tem um só nome e que acontece ao sabor das disponibilidades sociais, culturais, pessoais e fortemente marcadas pelas variações geográficas e geomórfica de seus territórios. A economia globalizada e tecnologia informacional tingem as transformações com cores indeléveis na contemporaneidade individualista e concorrencial.

Experimentamos hoje uma aguda consciência do novo, e da obsolescência de uma parte pelo menos das categorias através das quais várias gerações de cientistas sociais e educadores pensaram o mundo. O trabalho, a escola, os valores, a política constituem elementos centrais destas transformações, que afetam os jovens, mais do que outras categorias da população, simplesmente porque esta é uma história que está nascendo com eles. (Novaes e Henriques, 2007,1)

Esta confluência não vista anteriormente pelo inusitado das tecnologias que fundem temporalidades, espacialidades e culturas inscritas na performatividade cotidiana das práticas religiosas escapa ao campo de análise dos paradigmas epistemológicos tradicionais. As questões de racialidade, gênero e pobreza, subsumidas no estudo dos adolescentes no bairro Dom Bosco foram tratadas por autores oriundos do terceiro mundo, como indianos, africanos e afro-americanos e diaspóricos europeus a respeito das condições pós-coloniais57. Se considerarmos que esta pós-colonialidade se arrasta no Brasil já há mais de cento e vinte anos para os segmentos destituídos dos direitos advindos da emancipação social e política, e que a língua aqui não é o obstáculo para as interações, pode-se conceber então

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BHABHA, Homi K. (1998), anglo-indiano foi um desses autores que trata da pós-colonialidade na perspectiva das regiões colonizadas em interação com os colonizadores, principalmente a partir do estudo da linguagem e da literatura. Spivak (2010), autora indiana, reflete sobre a prática discursiva do intelectual sobre as classes subalternas como categoria alijada do poder

similaridades entre as condições de vida de outros povos colonizados, após as emancipações políticas ocorridas a partir da segunda metade do século passado.

Quando retorno aos relatórios de campo sinto o quanto eles são insuficientes, o quanto deixaram escapar do dinamismo do cotidiano, da sensibilidade das pessoas, das regras sociais e motivacionais daquela comunidade; e também quando a religiosidade irrompe e se expressa em interjeições de desabafo com resquícios de crenças cujas origens não interessam aos jovens, por desconhecimento ou por descompromisso, a linguagem escrita esbarra em obstáculos de ordem metodológica: enquanto a multidimensionalidade das ações cotidianas é vivida sem conflitos e sem reflexão, a sua análise, transportada para a escrita, tende à linearidade, o que sacrifica a percepção das dinâmicas e do ritmo dos acontecimentos.

A religiosidade insurgente foi estudada por Roger Bastide que a chama de “sagrado selvagem” por oposição à domesticação da fé. Ele situa o fenômeno nas religiões africanas, mas esta pretensão de controle pode ser presenciada em outras situações, considerando-se que a religião católica tem como certo o controle sobre a sociedade e parece se descuidar de fortalecê-lo e nisso as considerações de Bastide se adéquam também ao contexto deste momento estudado no bairro Dom Bosco.

A sociedade e a religião jogam, portanto, igualmente, visando transformar o espontâneo em institucional. Mas naturalmente, e é este o ponto que nos interessa aqui, cada vez que o controle da coletividade relaxar, por uma razão ou outra, aquilo que pode haver de selvageria latente no transe fará rachar sua túnica institucional. E já que nós distinguimos dois modos de controle (que se juntam, além disso, um ao outro) aquele da instituição religiosa e o do código de boas maneiras, distinguiremos, da mesma forma, dois fatores de retorno ao sagrado selvagem; um que tenderá a um enfraquecimento da instituição religiosa tradicional e outro que tenderá à passagem de uma sociedade orgânica (para empregar o jargão dos sociólogos) a uma sociedade anômica. O Brasil nos oferece excelentes ilustrações desse duplo processo de regressão. (BASTIDE, 1992)

Na anomia citada por Bastide ou na hipolucidez de Piette, a religiosidade vislumbrada no bairro foge à domesticação e a colonização, e por aí escapa da subalternidade que é própria aos desempregados, mulheres e analfabetos. No campo religioso eles se transformam em autores inconscientes de mudanças substanciais

mesmo sendo sua relação com a dimensão do sagrado uma forma de silenciamento dos desejos ou de arma de enfrentamento das adversidades.

Para Novaes (2006),

para além das desigualdades sociais e diferenças culturais, são os jovens que têm maiores chances de atualizar os novos sentidos e funções da religião na sociedade. A condição juvenil – socialmente compreendida enquanto momento do ciclo de vida de transferência para a fase adulta - favorece a experimentação dos novos sentidos que a religião como fonte de imaginação simbólica. Desta forma, a juventude vista como espelho retrovisor da sociedade atual, explora as várias possibilidades, faz novos arranjos e dá visibilidade à religião, ressemantizando-a sem pudores e ocultações (...) (2006,137)

Acrescentaríamos que o que dá especificidade ao momento atual, a mundialização da cultura, a globalização da economia e as tecnologias computacionais e dos meios de comunicação, e a imprevisibilidade dos planejamentos para um futuro remoto, toca fundo as questões relacionadas à juventude.

Neste texto, existe uma tensão no que diz respeito à escrita que reinterpreto como uma questão de escala (escala geográfica, dos mapas) e a cada uma correspondendo uma escala também de emoções e de valores. Às vezes essas escalas se confundem nos enfrentamentos de cada dimensão. Lúcia Santaella (2004) levantou um debate sobre isso, dizendo que

Muitas disputas estéreis poderiam ser evitadas pelos pesquisadores, se alguma atenção fosse dada à questão terminológica. Muitas vezes, as confusões e controvérsias intelectuais são geradas por um ou vários dentre os seguintes equívocos: dar nomes novos para fenômenos já conhecidos e com nomes consagrados; manter nomes antigos para fenômenos novos; utilizar diversos nomes para um mesmo fenômeno ou o mesmo nome para fenômenos diversos. (2004, p.54)

Aí que se situa uns dos problemas desta pesquisa: o que é novo, o que é estruturalmente persistente, o que é o antigo revisitado, o que é o antigo mantido enquanto tal; como me referir a isso sem a linearidade de sobreposições/justaposição das dimensões, entendendo-as com interações espaciais e temporais numa condição em que a visualidade do novo, do estruturalmente persistente, do antigo revisitado, do antigo mantido como tal estão embolados e indiscerníveis.

As religiões no bairro pelo que pude perceber estão pulverizadas, por conta das mudanças religiosas, sociais, políticas e econômicas que impactaram a sociedade e suas instituições. Mas, para mim, pareceu muito vagas estas constatações simplificadoras do dinamismo coletivo. Para conseguir pensar sob um parâmetro mínimo de comparação pensei em contrapor os Dez Mandamentos e os Sacramentos cristãos às práticas atuais religiosas e sociais. De uma forma muito concreta, os dez mandamentos é a teoria de sustentação das religiões ocidentais e pode ser colocada como parâmetro das flutuações religiosas no Chapadão.

No documento anamariastephan (páginas 67-72)