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“RECOMPOSIÇÃO-INOVAÇÃO” DO RELIGIOSO

No documento anamariastephan (páginas 193-200)

Anjos e mensagens do além

“RECOMPOSIÇÃO-INOVAÇÃO” DO RELIGIOSO

Vou narrar um depoimento que pode servir de amostra de uma religiosidade confusa na sua exterioridade, mas que não é considerada assim por essa pesquisa, sendo que, juntamente com outras narradas do mesmo modo, permeiam as crenças e fés comuns e estão no mesmo nível de aceitação do que as demais narrativas do panteão de santos e divindades. São sim demonstrativas de crenças em mutações.

Estava em visita a uma família cuja senhora dona da casa, mãe de uma das mulheres que compunham as famílias assistidas pela ABAN e avó de uma adolescente falou de suas experiências religiosas. Hesitei em me referir a essa narrativa anteriormente, por ser de uma pessoa meio fora do perfil escolhido dos protagonistas desta pesquisa, mas nenhum outro depoimento foi tão contundente e rico em detalhes e, além disso, essa avó era quem, de acordo com a afirmação de sua neta, havia ensinado o que ela, a neta, sabia sobre religião. Esclarecendo, sua neta, de doze anos naquele momento, declarou-se católica, mas não tinha sido batizada. Na ausência de catequese a avó era a ponte histórica.

Não foi uma narrativa linear, mas sim sujeita a idas e vindas e também aos gestos, mudanças bruscas de entonação de voz, olhares voltado para o alto, enfim toda uma performance teatral, colocada aqui sem nenhuma ironia ou depreciação.

Conta ela que estava sofrendo de muita angústia, pois não tinha dinheiro nem meios de suprir sua casa, além de estar doente e sua filha também e, com isso os netos também estavam com fome. Ajoelhou-se então e, juntando as mãos a implorando aos céus por socorro, pediu a Deus que lhe desse meio de suprir sua casa. Acabou sua prece e nada de resposta. Aí ela foi até a porta de sua casa e viu passar duas mulheres com um saco nas costas cada uma e elas eram guiadas e protegidas por dois anjos que, quando passaram por ela, lhe sorriram e desapareceram. Para ela foi uma iluminação, pois ela entendeu que devia, como as mulheres que passavam na rua, juntar latinhas de refrigerantes, e buscar na rua o que precisava para sua casa.

Daí ela começou a fazer coletas e em algumas ruas de um bairro vizinho, de classe média, passou a ser conhecidas das pessoas que juntavam as latinhas para ela e uma delas se apiedou e ajudou-a, posteriormente, a conseguir uma aposentadoria que a sustenta hoje. Além disso, disse ela que por onde passava, fazia amizades que lhe renderam doações como móveis, a televisão de vinte e nove polegadas (que ela disse que chegou a sua casa, no alto do morro, num carrinho de mão) e alimentos, que ela disse que nunca mais faltou em sua casa. Exalta os anjos vistos como seres de luz que lhe abriu caminhos. Uma garota também disse ter visto anjos.

Em outro momento ela narrou o percurso religioso de sua vida. Conta ela que quando nasceu ela nasceu, ela ia ser batizada, mas o padre não deixou porque

disse que a mãe dela não merecia. Então resolveram levar a menina para a “religião do capeta” e estava deitadinha numa esteira onde a deixaram enquanto a cerimônia não começava e então Nossa Senhora apareceu e tomou-a nos braços e não a deixou ir para a outra crença. Por não ser de uma nem de outra crença ela passou a vida sofrendo e muito triste. Até que os anjos acima apareceram e ela pode enfim ganhar alguma estabilidade e abdicar da duplicidade e ficar só com Nossa Senhora.

Trouxe essa narrativa para a reflexão, pois me parece que elas são boas para se pensar o universo religioso dos que afirmam ter religião. Não só ela teve influência direta na formação religiosa da neta, mas também ela é vista pelos adolescentes com os quais conversei meio como uma reserva de fé comunitária. Disseram que ela reza muito, mas que nunca a viram na igreja, nem em missa, nem em procissões, nem nada. Pelo que depreendi ela é muito respeitada por eles.

Essas pessoas, nem sempre as mais velhas, são reconhecidas na comunidade e mesmo os adolescentes mais rebeldes não se permitem formas de depreciação e deboche que são comuns em relação a outras pessoas. Talvez seja essa outra forma de manifestação de respeito às coisas sagradas, como também é respeitada a Capela e não outros locais. A sede da ABAN no bairro está com todos os vidros do prédio quebrados por pedradas.

Modulada por respeitos impensáveis, a religiosidade vivida pelos adolescentes no Chapadão está associada às experiências de vida no mundo consumista contemporâneo, matizadas pela pobreza, pela preponderância racial negra, pelo baixo nível educacional, pela cobiça da especulação imobiliária e principalmente pela individualização das relações com o simbólico e o sagrado. Diante desses condicionantes espaços-temporais, a religiosidade é percebida, exterior e posteriormente, como bricolagem, como libertação de compromissos pesados em suas antigas moralidades: os pecados foram banalizados (os pecados mortais foram amenizados, os capitais desqualificados e os veniais quase desapareceram).

Um dos jovens que esteve entre os fundadores do RAGGAEBEM, agora já não é mais adolescente, tem uma história interessante, narrada agora por um colega seu, mas com depoimento registrado em vídeo. Disse-me ele que o colega em questão, Paulo, havia se metido numa confusão sem tamanho. Paulo já era pai de

um menino cuja mãe havia rompido relacionamento com ele antes de a criança nascer e não o deixa visita-lo porque ele não paga a pensão alimentar e, além disso, ela quer distância dele. Depois disso, ele se envolveu com uma garota de 15 anos e, quando ela ficou grávida, ele passou a morar com a família dela, pois até então ele não tinha morada fixa: ora com a avó, ora com colegas. Quando ele foi morar com a nova mulher ele passou a frequentar a igreja católica conforme consta nos seus depoimentos gravados em vídeos em 2010 e no qual conta de estava se preparando para a crisma e fala também de outras atividades religiosas desenvolvidas na Capela.

Agora, no segundo semestre de 2012, sua vida mudou bastante, de acordo com o que seu colega me contou: abandonou a casa em que vivia com a namorada e voltou aos endereços variáveis de antes por atrito com a sogra a respeito de fofoca produzida por ele sobre a relação dela com um vizinho, negada pela sogra. Por causa disso, a atual mulher também não quer nada com ele e, pior, disse ela ele agora esta mexendo com macumba! Ele está enrolado, tem que pagar duas pensões e ele está ameaçando as duas ex-mulheres com feitiços da macumba. Anda com as guias e diz que é pai de santo. Mas ninguém viu ele frequentar outros terreiros. Ele era da Igreja.

Não conheço a segunda mulher dele, mas a primeira, Rose, era acessível por conta da convivência na ABAN e das visitas à casa de sua avó. Fui conversar com ela porque queria saber como era alguém se sentir ameaçada pelas forças da “macumba”, mas ela não queria nem falar sobre o pai do seu filho. Depois, acedeu em conversa comigo, mas somente sobre as ameaças que havia recebido e ela disse que ia falar para saberem a “beleza” que era Paulo.

Ela me disse que tinha medo, sim dos despachos com o nome dela, de botar seu nome na boca de sapo e de desejar mal para ela. Ela me disse que o mal tem força e que o demônio tenta as pessoas e as desarma. Mesmo sendo católica e rezando muito com sua avó e outras pessoas da família ela se sentia ameaçada, pois quem diz que faz maldade pode fazer mesmo, roubar meu filho, me bater na subida, etc. Disse que ele está com raiva porque ela entrou na justiça para conseguir a pensão do filho e que ele ficou danado na vida. E que agora, com a “outra” fazendo mesma coisa que ele vai se ferrar. Mas que mesmo assim ele não devia falar que vai fazer trabalho para ela. Que ela não merece.

Nessa conversa surgiram vários pontos para reflexão: religião como instrumento de amedrontamento, desconhecimento das religiões africanas por pessoas de origem africana, o desamparo não corrigido pelo cristianismo, uma fé com pouco poder frente aos mistérios e aos espíritos das outras religiões não cristãs. Entre estas, principalmente entre as neopentecostais e a católica, não existe uma diferença tão grande, e o trânsito entre elas não é prejudicado pelas linguagens e doutrinas, inclusive porque ambas tem o mesmo livro como fundamento, a Bíblia.

Montes (2000) fala mesmo de uma protestantização do catolicismo e uma catolização das igrejas pentecostais. Mas no que diz respeito aos mitos e ritos africanos o mesmo já não acontece e eles surgem como ameaças e como tal é usado pelas religiões neopentecostais (Montes, 2000, 117). Em contrapartida, quando se é afligido por algo alheio ao campo religioso recorre-se ao poder das entidades africanas para demandas situadas no dia-a-dia, como o abandono de um companheiro, brigas entre vizinhos e namoros indesejados dos filhos.

Qualquer que seja as situações, nas improvisações frente aos acontecimentos inesperados do cotidiano a religião é ainda uma ferramenta de acolhimento de indivíduos desorientados que formam núcleos muito pequenos de adesões a uma maneira particular de ver o mundo. Não é uma individualização estrita, pois deve haver compartilhamento de ideias, mas uma ressignificação comentada entre colegas sobre as percepções de mundo. Nos depoimentos e nas observações mais informais, a religião não é tomada como muleta para o avanço em terreno desconhecido e não nomeado, mas antes como óculos 3D que junta as dimensões e as tornam mais uniformes, resguardando os movimentos, seus panos de fundo em perspectiva (também em movimento), e valorizando os protagonismos e desvalorizando os roteiros (desde que seja mantida a velocidade e o heroísmo, qualquer história serve). O pecado aqui é estar fora dos modismos e ser pego pela polícia.

Outra observação é que a religião (Deus) não é mais salvacionista: não escutei nenhuma referência a ir para o céu depois da morte. Pelo que pude sentir, a morte é uma interrupção do presente e não algo para ser valorizado como futuro muito remoto. Há de se objetar sobre o salvacionismo evangélico. Mas mesmo no caso de evangélicos essa dimensão religiosa parece ter sido amenizada, nuançada e

matizada: a salvação é para agora, para endireitar a vida, para conseguir emprego, para sair das drogas, para parar de brigar com o marido, para os filhos voltarem para casa, para os filhos saírem do CERESP (Centro de Remanejamento do Sistema Prisional, composto, em Juiz de Fora, das penitenciárias José Edson Cavalieri e Professor Ariosvaldo Campos Pires) ou do Centro de Ressocialização para jovens infratores. Muito raramente a transcendência aparece ao longe na forma de alegação de justiça divina. Deus saberá recompensar..., A justiça de Deus não falha..., Deus tá vendo...

Onde está também o papel moralizador da religião? A moral deixa de existir enquanto tal, ou melhor, com eram enquanto as normas antigas, para se abrir aos novos comportamentos e atitudes. Não é freio social nem estabelece condutas, quanto muito marca as rupturas das rotinas cotidianas com as comemorações e feriados.

Também não são atitudes de escolha como num mercado de crenças: mais parece uma canibalização, onde heróis e criminosos, normas e crenças, são ingeridos, digeridos e modificados, nem sempre, todavia, em energia vital, mas às vezes em roteiros para a morte. Não existe propriamente a possibilidade de escolha entre várias possibilidades, mas aproveitamento do que está disponível.

Sem a escusa da eternidade as religiões vão se transformando lenta e inexoravelmente, mas isso parece ser campo de reflexões advindas de uma etnografia de imersão antes que preocupações eclesiásticas. Quanto a elas, a adolescência não existe enquanto potencial inovador, mas somente como um hiato temporal nas biografias, também como uma moratória aos tempos da responsabilidade adulta.

Com efeito, quando a incerteza aumenta para além de certo limiar e se associa não apenas com a ideia de futuro, mas com a própria realidade cotidiana, pondo em causa a dimensão do que é considerado óbvio, então o “projeto de vida” tem seu próprio fundamento subtraído. Além disso, quando a mudança, como ocorre em nossos dias, é extraordinariamente acelerada, e o dinamismo e a capacidade de performance são imperativos, quando o imediatismo é um parâmetro para avaliar a qualidade de uma ação, investir num futuro a longo prazo acaba parecendo tão pouco sensato quanto adiar a satisfação. As ações instrumentais, ao contrário, são guiadas pela racionalidade do objetivo e pressupõem a capacidade de se posicionar

no interior de um horizonte temporal distinto do aqui e agora. ... Nesse horizonte temporal comprimido, o próprio significado da idade juvenil se transforma. Quem a vivencia tende a apreciá-la mais por aquilo que pode oferecer no presente do que pelo tempo futuro que ela virtualmente descortina. (LECCARDI, 2005, 36)

Não a vê como momento em que se escreve a história das religiões de maneira a desmistificar o pecado, abrir mão da salvação eterna, não moralizar, não sendo produto de livres escolhas nem de bricolagens, mas de canibalização. Apesar disso a religião resiste, mas demanda novas metáforas e outra gramática da fé e das crenças. Outra poética. Tipo “parangolé”! Invenção e criação que volteiam os três eixos acima: a) “recomposição-inovação” do religioso, b) recuo de em certo cristianismo e c) a individualidade, a subjetividade, os itinerários pessoais.

As questões de convivência, enfocando as relações entre os jovens e os espaços de entorno, como são vistos pelos vizinhos e como estes os veem, assim como algumas incoerências advindas do olhar preconceituoso sobre os jovens do bairro Dom Bosco demandou uma etnografia dos movimentos, dos trajetos e os locais percorridos pelos jovens fora do bairro e o uso por eles dos dispositivos sociais e culturais como a escola, o trabalho, o lazer. Também as mediações clientelistas e negociações no mundo do trabalho e, principalmente, buscaram compreender o contexto de mudanças mais vasto das religiosidades dos jovens adolescentes como uma carga que, se abandonada, os torna mais leves para suas irreverências mas mais limitados em relação às visões de mundo e de si mesmos.

Afinal, a religião “habita”100 o mundo adolescente, mas não é mais senão

complemento, não é mais um conhecimento tão importante como o era nas gerações passadas, mas ainda não se prescindiu dela na atual mas não para todos e nem o tempo todo

No início desta pesquisa, quando escrevia os capítulos 1 e 2, não percebi a dimensão religiosa num mundo tão profano. Mas ela existe sim, apesar de muito atenuada enquanto articuladora cultural e social, e individualizada ao extremo a ponto de se conversar muito pouco mesmo entre amigos e colegas sobre as formas

100 No sentido tomado por Mafra (2007) que diz que “O habitar [do latim habitare] se refere a esta

medida primordial, que fala da medida com que o homem se quer medir”.

pessoais da crença. Quando falam sobre religião é mais para críticas aos padres e pastores e numa dimensão de cotidianidade.

O estudo das relações sociais dos adolescentes, internas e externas ao bairro, mediadas pela religião, passa pela compreensão das relações familiares. No início do ano de 2011, comecei a participar da reunião com um grupo de mulheres, mães de alguns dos adolescentes/sujeitos desta pesquisa. Nas conversas que ali aconteciam comecei a perceber que as igrejas (instituições) são arcabouços discursivos fortes com padrões formais de referências dogmáticas, pois a religiosidade é vivenciada subjetivamente. Sobrevivem então como máscaras, como fórmulas mágicas decoradas, disparadas por um mecanismo reativo a algumas situações: existe um discurso pronto, convincente, que elimina qualquer possibilidade de se incluir na conversa algum questionamento sobre religião. É como se ela fosse inata, atemporal, mágica, no sentido que permite vislumbrar um futuro, substitui projetos pessoais e desculpabiliza possíveis fracassos: - “Se Deus quiser...”. Ao mesmo tempo, os gestos e os olhares intencionados surpreendidos juntamente com expressões desse tipo precipitam um potencial de energia que dá suporte a investimentos descobertos de suportes materiais, como trajetos de flechas lançadas ao longe (no tempo e no espaço).

Essas ambivalências, dentro e fora, estranho e estrangeiro, sociedade e comunidade, fechado e aberto, perpassaram todo o trabalho de campo e essa pesquisa que não pretendeu naquele momento tentar desfazê-las. Os grupos não estiveram estáticos e mudaram de posição na enunciação discursiva. Nesta dinâmica quem “dança” fácil é a pesquisadora: recusando se manter posição epistemológica fixa, uma hora se percebeu oscilando entre compreensão, compaixão, repulsa e revolta, muitas vezes sentiu o tema como impossível de realização. Nesse ponto, Roy Wagner (2010), forneceu alguns dos instrumentos de controle (relativo) sobre os campos (posição da pesquisa frente aos sujeitos e aos eventos do cotidiano) contidos nos conceitos de modos de ação generalizante e convencional e o diferenciante ou não convencional sendo que o primeiro distingue o símbolo e a coisa simbolizada e o segundo engloba aquilo que simboliza e ambos os conhecimentos me foram necessários para conter as ambivalências e as oscilações. Quase aprendi andar sobre gelo fino (Bauman, 2001, p, 36) ou sobre águas pantanosas ou achar caminho em meio à neblina.

No documento anamariastephan (páginas 193-200)