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Conversa de surdos

No documento anamariastephan (páginas 83-86)

Dona, eu não gosto de falar de religião, não. Esse troço é muito chato. Foi essa uma das primeiras respostas que tive quando comecei meu trabalho de campo no Bairro Dom Bosco, em maio de 2010. E aí? Como prosseguir? Será que os outros adolescentes, além da garota que me deu a resposta acima, pensavam da mesma maneira? Não gostar de falar sobre religião significa não ter religião? Chato, se referia à pesquisa ou à religião?

Este capítulo dialoga com jovens cujas idades variam entre 14 e vinte e um anos e que, num primeiro momento, foram selecionados para serem interlocutores desta pesquisa em razão de sua participação em grupos musicais, ou então por

serem filhos das mulheres que participam das atividades da ABAN60. Durante o

percurso da pesquisa aconteceu uma diferenciação sutil entre os adolescentes e alguns deles, em algum momento se posicionaram como não tendo religião, mesmo que tais afirmativas fossem capazes de oscilações e duplos pertencimentos. Não me baseie em respostas definitivas, mas sim nessa área discursiva de oscilações de vários ângulos e interações múltiplas.

A resposta da garota acima, e outras não tão claras e objetivas, me alertou para as dificuldades que teria se colocasse a religião como mote principal dos depoimentos. Numa fase do trabalho de campo em que já havia me convencido da baixa produtividade das perguntas diretas sobre as maneiras de ser religioso dos adolescentes nos dias atuais, mudei os eixos de relações e apostei na musicalidade do bairro como nova via capilar de penetração no mundo simbólico através da qual

poderia conhecer os meandros de uma religiosidade liquefeita61, mutante62 e

mudante63.

Os meandros dessa religiosidade estão inseridos numa trama histórica que remontaria ao final do século XIX, com a abolição da escravidão, industrialização, migrações internas e externas, configuração fundiária, etc. Nenhum desses condicionantes foi de fato afastado e ainda hoje insistem em aparecer nos relatos familiares e coletivos, assim como nos raros documentos mais antigos. Volta e meia surgem novos dados desse percurso em pesquisas acadêmicas sobre o bairro e levantamento documental das instituições municipais.

Não desejando ir ao século XIX nem trabalhar num raio de abrangência tão aberto de possibilidades, esse capítulo é um relato de uma derivação nos objetivos inicias desta pesquisa. Inicialmente não pensava em focalizar separadamente jovens sem religião ou mesmo com pertencimentos religiosos muito instáveis e 60 Cf ABAN p. 67

61 Bauman, Z.(2001,9) considera a “fluidez” ou “liquidez” como metáforas adequadas para se captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras na história da humanidade.

62

Mutante: adj. e s.m. e s.f. (Animal ou vegetal) que apresenta caracteres novos em relação ao conjunto de seus ascendentes. http://www.dicio.com.br/mutante/

63 Mudante: mudança de endereço e/ou de afiliação.

transitórios. Hoje, este capítulo, além de focalizar os jovens do REGAEBAM, é também dedicado aos que se dizem sem religião, porque o campo de indagações que se abriu durante os seus depoimentos era muito intenso e não deveria ser confundido com as demais formas religiosas. Este campo de indagações também se tornou mais independente e melhor delineado quando ocorreu ser confrontado com os dados de Censo do IBGE de 2010.

É um capítulo multivocal, pois não serei a única personagem a ter voz e poder de escolhas dos componentes da narrativa, haja vista que alguns depoimentos foram obtidos por via indireta através de vídeos e entrevistas feitos pelos próprios adolescentes com colegas por eles mesmos escolhidos para dar conta de várias outras narrativas subsumidas na narrativa final. Além disso, vozes de pessoas mais velhas se imiscuirão no texto, quer sejam a fala das mães, das avós e de moradores do bairro, que falam do tempo de hoje e do de outrora.

Esse capítulo é um desdobramento que começou a se esboçar quando trabalhava como analista educacional na Escola Estadual Dom Orione, fechada em agosto de 2009. Incomodou-me muito o fechamento da escola, mesmo após intensa movimentação política com publicação de denúncias sobre a degradação física e pedagógica, mobilização da população, etc. Nada disso adiantou.

Num conjunto de justificativas incoerentes, de desrespeito e violências múltiplas, eu me perguntava frequentemente se aqueles adolescentes inquietos, contestadores, briguentos, usuários de drogas, agressivos com os professores e com péssimo rendimento escolar eram sempre assim ou, se em casa, sem provocações e sem disputas, eles eram também difíceis de serem compreendidos. Enfim, como era construída e mantida a dimensão simbólica de suas vidas, seus valores sociais e sua relação com a cultura local e da cidade de entorno. Como viviam as rotinas cotidianas de pessoas pobres e estigmatizadas.

Então, quando precisei de um foco para a pesquisa, retomei as experiências educacionais e os questionamentos anteriores e localizei no REGGAEBEM, um grupo musical formado pelos mesmos jovens que eram alunos da antiga escola, uma possível ancoragem material, uma entidade que poderia ser disponível à etnografia pretendida nos espaços de convivência de sujeitos qualificados pelas carências e pelas visões equivocadas sobre eles. Foi entre os participantes do REGGAEBEM e outros que já não estavam mais no grupo em 2010 que, no desenrolar da pesquisa,

localizei alguns que estavam à margem de atividades religiosas, outros de frequentação intermitente, outros inovadores “bricoleurs”, sincretizadores ou qualquer denominação que assinale a efervescência incerta quanto aos produtos elaborados. Daí o recurso ao estudo das suas religiosidades como pré-texto e catalisadoras das interações sociais e denunciadoras das capilaridades de suas relações materiais e simbólicas.

Reforço que não é pretensão dessa pesquisa a religião em si mesma, enquanto sistemas de fé e de crenças, mas o seu uso enquanto instrumento, filtro e recurso para a compreensão daqueles que também por mim inicialmente foram descritos pelos signos de negatividade: despossuídos, baixo desempenho educacional, violentos, etc. Como ela, a religião, é o pano de fundo dessa pesquisa, essa discussão impõe escolha de conceitos e ideias articuladores do cotidiano redesenhado pelas religiosidades, seus compromissos e suas invenções. Esse campo de pesquisa, composto de adolescentes e religiões, é pura areia movediça, como senti posteriormente: ambos em movimento de mudanças acentuadas, vão se modelando reciprocamente, e não dão apoio para caminhantes desavisados, como fui no início desta pesquisa e até hoje sou em alguns assuntos.

Quero contar a história desta etnografia neste e no próximo capítulo que obedecem a uma ordem cronológica das inserções no campo de estudo. O primeiro grupo permite uma discussão sobre as nuances da denominação “jovem sem religião”. No terceiro capítulo aparecem aqueles que declaram pertencimento religioso mesmo que minimamente configurados. Ambas as categorias são somente pretexto para reflexões sobre as diferenciações das crenças e invenções de adolescentes no Chapadão, pois permitem o intercâmbio de personagens e de roteiros.

No documento anamariastephan (páginas 83-86)