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RECUO DE CERTO CRISTIANISMO

No documento anamariastephan (páginas 189-193)

Anjos e mensagens do além

RECUO DE CERTO CRISTIANISMO

Que cristianismo está em recuo? Hesito entre os termos “recuo” e “vazio”, tendendo mais para o último termo quando percebo que o lugar da ortodoxia ficou estremecido pelo afastamento de funções antes exercidas pelo cristianismo, com ênfase no catolicismo, como organizador social e cultural tal como acontecia nas gerações passadas. Sem que isso suscite comparações sobre “os velhos tempos” como época em que as coisas eram maravilhosas em detrimento do momento atual em que tudo está ruim. Há cerca de sessenta anos atrás as missas já eram chatas, os padres não eram escutados nas pregações, as missas “das crianças” não eram adaptadas para elas, etc. Mas eram lugares de encontros, de circulação das modas, das irreverências juvenis, das ousadias, das fofocas e dos flertes. Esse papel elas não mantém mais.

Quando buscarmos os motivos do recuo ao cristianismo tradicional, as discussões deveriam se voltar para o papel dos leigos, do público, dos jovens de décadas atrás. Isso é até reconhecido por autores como Ribeiro de Oliveira (2012)

A força da Igreja, de qualquer igreja, está no que os protestantes chamam de congregar, ou seja, juntar pessoas que possam participar e sentir-se igreja. Creio que a experiência mais bem sucedida na Igreja Católica foram as Comunidades Eclesiais de Base, seguida dos grupos de oração, grupos de pastorais, que hoje chamam de novas comunidades. Esses programas buscam juntar pessoas leigas que se reúnem, celebram, leem a Bíblia para, a partir disso, influenciar no mundo. Aí está a força de uma igreja, a força pentecostal. A força pentecostal das igrejas evangélicas não é o número de pastores, mas o número de obreiros, que são pessoas leigas, que têm um entusiasmo pela religião. Trata-se da força de expandir da igreja para o mundo. Isso quer dizer: uma igreja é forte quando tem grupos de leigos que se reúnem para atuar no mundo. Hoje o que vemos é a força de atrair para dentro, ou seja, o bom católico é aquele que está na igreja. Isso aí é o definhamento da instituição. Na hora que os responsáveis pela igreja no Brasil levarem a sério esses dados geracionais, ou seja, a desafeição religiosa de jovens e adolescentes, espero que deem um recado a essa pastoral maluca que eles têm, que gasta todos os recursos para construir seminário e formar mais padres (OLIVEIRA, 2012)

Nos depoimentos obtidos junto aos jovens, o papel de organizador social e cultural dos tempos idos não é muito bem percebido hoje, mas surge na forma de um incômodo indeterminado – como quando o padre não quis (ou não pôde) batizar uma criança sem documentos –, uma carência de suporte para se posicionar frente à inapelável fragilidade e frente à perenidade do mundo (Bauman, 2005, p.155), a inconsistência das relações humanas e a insustentabilidade dos projetos biográficos.

Sem o auxílio de religiões a transformação dessas instabilidades em força de vida se dá com mais dificuldade, quando chega a acontecer. Considerando a dispersão do religioso, os jovens quedam mais confusos. E, enquanto tal, o futuro vem nas improvisações discursivas e nas repetições de fórmulas e ditos populares, assim como se aceitando qualquer das poucas oportunidades existentes no campo do trabalho e das relações sociais.

Nem todos os adolescentes são assim, imediatistas. Coincidentemente, também quanto ao futuro, aqueles que possuem estabilidade atual, conseguem ver o futuro num projeto de vida: quando a defasagem e aprendizagem não os afastam da possibilidade de planejar, eles se movimentam no sentido de uma profissão estável e reconhecida: um deles fez curso de técnico em plataforma de petróleo, outra fez

curso técnico em nutrição, é muito comum os cursos de informática e de computação, assim como os cursos técnicos de enfermagem e de comércio. O futuro como projeto depende então da escolarização e o apelo à religiosidade é um apelo de fortalecimento (Deus vai me ajudar) individual e familiar. Nesse tipo de previsão de futuro, raramente os adolescentes estão sozinhos: sempre é um projeto do coletivo familiar.

Outros pensam o futuro como sonho, quase sempre sonhos individualizados, solitários: a menina que sonha em ser médica sem ter conseguido chegar aos 17 anos ao fim no ensino fundamental, o garoto que sonha em ser jogador de futebol sem nunca ter jogado fora do bairro (dizem que neste caso é possível a existência de olheiros de grandes clubes), as meninas adolescentes mães que dizem que vão continuar estudar (isso é extremamente comum, e elas afirmam que os filhos não irão atrapalhá-las muito, “só um pouquinho enquanto ela está muito pequena, depois que ela for para a creche, eu volto a estudar” (Ju, 14 anos). Provoquei um pouco mais e perguntei quem iria sustentar ela e a filha para poder continuar o estudo. Não fiz por maldade, mas Ju, abaixou a cabeça, torceu as mãos, depois olhou para o vazio e não me respondeu com palavras. Só balançou os ombros e sorriu sem graça. Outras adolescentes com filhos foram mais irreverentes, dizendo a gente dá um jeito, ele vai para a creche e minha mãe vai ter de me ajudar. Até recentemente creches era importantes para mães trabalharem, hoje é para as mães estudarem.

Mas elas não têm nem creche para seus filhos, nem educação efetiva, nem

empregos nem outras ajudas possíveis. A escola que poderia suprir o vazio também está afastada das discussões mais próximas a essas necessidades do mundo contemporâneo, e existem dúvidas sobre se ela poderia presidir esta discussão tendo em vista seu também afastamento do campo da moralidade institucional, como as religiões também se afastaram dela.

O interessante é que nem a religião e nem a escola, mesmo em suas limitações de eficiência e de consistência acadêmicas, deixam de ser privilegiadas enquanto mediadoras convencionais, ocupando talvez um nicho menor no conjunto de suas falas e expressões, mas são mediações permeadas por mágoa e rancor. Os padres que não visitam os paroquianos, a escola que não ensina, os sacramentos não são realizados, a disjunção entre aprendizagem e trabalho são criticamente

colocados não como cobrança somente, mas como ausências a que devem se conformar e, ao mesmo tempo, terem suas importâncias minimizadas para que o que resta ainda possa proporcionar uma mediação diferenciante quanto ao futuro. Ainda são instrumentos de prospecção do desconhecido. Sem escola a gente não é nada. A gente não aprende nada, mas precisa do diploma se não dá nem para ser varredor de rua. Se Deus quiser. Com a graça de Deus. O Senhor vai me ajudar. Sem Deus eu não sou nada. Deus é que sabe.

Isso não quer dizer isso que a religião possa ser confundida com algo semelhante a muletas usadas para o enfrentamento de um futuro improvável, pois tal metáfora pressupõe alguma deficiência humana (longe vão os tempos em que fazia parte do vestuário da moda) e eu não pretendo me fixar fatalistitamente em qualquer debilidade ontológica. Penso que a religião não “funciona” como muletas para as pessoas que convivi durante a pesquisa. Ela parece mais instrumento de convergência de mundos desfocados, que oferece maior segurança para que escolhas sejam feitas, uma vez que a baixa qualidade em geral de suas vidas no que tange à baixa escolaridade, à flutuação do mercado de trabalho, ao comprometimento da saúde e outras mazelas inerentes à pobreza e à reclusão às fronteiras sociais e culturais, limita as opções e a fruição das benesses porventura existentes. Usam a religião como espaço intervalar que minimamente facilita a incerteza dos dias atuais. Visão 3D.

Nesse vácuo, as pessoas tateiam em busca de um mínimo de tranquilidade. No caso dos jovens a religião tradicional pouco instrumentaliza essa busca. Não porque ela não possa fazê-lo, mas lhe custaria a perda do distanciamento que ela mantém desde longo tempo dos problemas da comunidade do bairro, especificamente na sua parte alta. Numa conversa com André em julho de 2011, ele relatou que os padres da Capela Imaculada Conceição quase não têm contato com a população além da missa semanal, pois eles ficam no seminário e de dois em dois anos são substituído sem que tenha se formado qualquer vínculo para além das beatas que frequentam a Igreja até sem mesmo haver padre.

Existem nessa Capela algumas ações sociais voltadas para as crianças e jovens, mas são desenvolvidas por voluntários e não se organizam enquanto proposta institucional. Outro jovem, Felipe, voluntário social trabalhando na Capela

Imaculada Conceição com aulas de violão, que oferece junto com um colega que ensina capoeira, disse que a paróquia de São Mateus tem dinheiro, mas que não destina nada para o Chapadão, onde está a Capela.

Além do mais, nesta parte do bairro não existem igrejas de outras denominações. Disseram-me que já existiram anteriormente, mas não se mantiveram em funcionamento. Vi até uma placa indicativa de um local de culto, mas está abandonado há muito tempo. Quanto às religiões afrobrasileiras, existem alguns praticantes nos fundos de quintais, mas eles não são citados pelos adolescentes quando se lhe indagam sobre as religiões do bairro. Ou são desqualificadas. Somente a Capela Imaculada Conceição permanece. Quem pertence à outra religião deve buscá-la em outros locais da cidade ou até mesmo na parte baixa do bairro, desde que aceite a ameaça de outros adolescentes de outras ruas. Esta questão da existência de brigas de gangues é bastante controversa, mas existe uma tendência bastante acentuada de permanência dentro das fronteiras simbolicamente estabelecidas.

Seja qual for a crença religiosa existe sim um afastamento das atribuições cabíveis às religiões até mesmo nas possíveis disputas do mercado de bens simbólicos. Isto levanta algumas perguntas que deem conta dessa situação: qual o nicho ocupado pelas demandas da juventude nas propostas institucionais religiosas? Existe alguma ação para além da referência indiferenciada quanto à faixa etária e às subjetividades? O “recuo” do catolicismo, neste bairro e neste momento, pode sinalizar para dificuldades institucionais instrumentais de compreensão dos jovens? Como se faz essa religiosidade sem religião? Parece que se movimentando entre elas e captando o que lhes serve no momento bem delimitado da demanda pessoal.

No documento anamariastephan (páginas 189-193)