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3.2 URBANO E AMBIENTAL: A LEI EM QUESTÃO

3.2.1 Algumas Considerações Acerca da Lei

Há diversas interpretações acerca da lei. Em uma perspectiva positivista, o texto encerraria um sentido intrínseco em si mesmo. Outras abordagens, que privilegiam o entendimento da lei através de um espectro mais amplo de considerações, distinguem as noções de princípios e de regras.

Canotilho (1992, pg. 173-174) esclarece que há um aspecto qualitativo que distingue o princípio da regra. Os princípios são normas jurídicas compatíveis com vários graus de concretização. As regras, por sua vez, são normas que “prescrevem imperativamente uma exigência (impõe, permitem ou proíbem)”, a qual é ou não é cumprida. A convivência de diversos princípios traz à baila a aceitação do conflito, ao passo que no caso das regras, o conflito é contraditório. Os princípios coexistem. As regras antinômicas excluem-se.

No âmbito dos princípios se aceita o balanceamento de valores e interesses, mediante o peso e a consideração de outros princípios eventualmente conflitantes. Em caso

de conflito entre princípios, esses podem ser objetos de ponderação e de harmonização, pois os mesmos contêm exigências ou padrões que devem ser realizados de maneira abrangente, co-existente e não excludente.

No caso das regras, cabe a lógica do tudo ou nada. As regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra tem validade, deve cumprir-se na medida de suas prescrições. As regras contêm fixações normativas definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias. Os princípios suscitam questões de validade e peso (importância, ponderação, valia). As regras colocam apenas questões de validade. Se elas são incoerentes devem, então, ser alteradas.

O autor (CANOTILHO, 1992, pg. 174-175) prossegue, afirmando que qualquer modelo ou sistema jurídico de uma dada sociedade não pode ser orientado apenas por princípios nem por regras somente. Um modelo ou sistema constituído exclusivamente por regras conduziria a um sistema jurídico impraticável. Exigiria uma “disciplina legislativa exaustiva e completa – legalismo – do mundo e da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas”. Não haveria qualquer brecha para a complementação e o desenvolvimento de um sistema, tal qual o constitucional, que é necessariamente um sistema aberto. Um legalismo estrito de regras “não permitiria a introdução dos conflitos, das concordâncias, do balanceamento de valores e interesses, de uma sociedade pluralista e aberta. Corresponderia a uma organização política monodimensional”.

Por outro lado, um modelo ou sistema baseado exclusivamente em princípios levaria a conseqüências também inaceitáveis. A indeterminação e a inexistência de regras mais precisas e específicas associada à coexistência de princípios conflituosos conduziria a um sistema falho e, provavelmente, incapaz de lidar com sua própria complexidade.

Segundo Lorenzetti (1998), a Constituição Federal Brasileira de 198886, centro do ordenamento jurídico à qual todas as demais legislações devem se reportar, está pautada pela constitucionalização do direito privado. Nela estão dispostos os princípios, regras e elementos fundamentais, os quais são escrutinizados e consolidados através de regulamentações específicas.

86 Na definição estrita de Silva (2003, pg. 37), a Constituição é a lei fundamental do Estado e aquela que organiza seus elementos essenciais, ou seja, as normas que regulam a forma do Estado (seu governo, seus órgãos, seus limites de ação), o modo de aquisição e exercício do poder, os direitos fundamentais dos cidadãos e suas respectivas garantias. Anteriormente a 1988, as constituições visavam mais o conjunto de normas que organizava os elementos constitutivos do Estado.

O estudo da construção sócio-histórica das noções de direito aponta para o desenvolvimento de três gerações de direitos. Os direitos fundamentais de primeira geração são os direitos e garantias individuais e políticos clássicos, surgidos institucionalmente a partir das constituições. Referindo-se aos chamados direitos fundamentais de segunda geração, que são os direitos sociais, econômicos e culturais, surgidos no início do século, Cavalcanti (1966, pg. 202) argumenta que

o começo do nosso século viu a inclusão de uma nova categoria de direitos nas declarações e, ainda mais recentemente, nos princípios garantidores da liberdade das nações e das normas da convivência internacional. Entre os direitos chamados sociais, incluem-se aqueles relacionados com o trabalho, o seguro social, a subsistência, o amparo à doença, à velhice, etc.

Por fim, mais recentemente, se protege constitucionalmente como direitos de terceira geração os chamados de solidariedade ou fraternidade, que englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, a uma saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos e os direitos difusos (MORAES, 2006, pg. 26-27), que para Vigliar (1997, pg. 42), seriam os interesses de grupos sem vínculo jurídico ou fático muito preciso, como é o caso das questões ambientais. Longe de constituírem campos lineares, autônomos e não conflitantes, as diferentes gerações de direito pautam interpretações que, quando aplicadas em eventos concretos, podem divergir entre si configurando uma colisão de direitos. Nesse caso, uma reflexão contextual da matéria em questão torna-se imprescindível, assim como a ponderação de diversas possibilidades de aplicação das leis. Como a C.F. abarca as três noções de direito, a prevalência da noção de direito a ser aplicada na realidade concreta dependerá da ponderação e interpretação de cada caso.

No tocante aos aspectos legais que influenciam o ordenamento do território, há a incidência das três noções de direito. No caso de ocupações humanas em áreas ambientalmente frágeis, tais como áreas de preservação permanente, percebemos nitidamente esse embate. A fim de explorarmos um pouco melhor alguns debates que podem auxiliar na reflexão sobre e no enfrentamento da problemática urbano-ambiental brasileira, procederemos no item seguinte a uma discussão geral acerca das legislações urbana e ambiental e algumas inter-relações entre elas.

Porém, antes, lembramos, com base em Hesse (1991, pg. 14-15), que a norma constitucional deve estar sintonizada com a realidade. A essência da norma deve residir na intenção de sua vigência. Essa pretensão de eficácia não pode ser separada das forças sociais e políticas e das condições históricas de sua realização, que estão de diferentes

formas pautadas em uma relação de interdependência, criando dinâmicas que não podem ser desconsideradas. Se as relações culturais, sociais, políticas e econômicas imperantes são ignoradas pela Constituição, a mesma carece do “imprescindível germe de sua força

vita, [pois] a disciplina normativa contrária a essas leis não logra concretizar-se” (HESSE,

1991, pg. 18).

Gostaríamos de frisar a importância do exercício democrático e da apropriação da lei por parte dos atores sociais, representantes dos mais variados interesses. A lei, per si, não pode concretizar seja a função social da propriedade urbana, o acesso democrático à cidade ou a um meio ambiente urbano adequado. Seu conteúdo deve ser assimilado, construído e posto em prática pela sociedade, a fim de que seu princípio primordial seja cumprido, assim como novas noções e conquistas de direito sejam construídas pelo movimento conjunto da sociedade. Inscreve-se, neste debate, a constituição de uma cidadania ativa, emancipadora e transformadora da sociedade.